quinta-feira, 7 de março de 2019

TRILOGIA DA “PEREGRINAÇÃO” – Por Rufino Casablanca

NARRATIVA E FILME DE CURTO FÔLEGO E AMBIÇÃO MENOR
   Lendas e narrativas Orientais (ou portuguesas?) transpostas para a Sétima Arte com liberdade artística.                                     
 (ou como o Fernão, o Cristóvão e o Diogo escaparam da castração num ignoto arquipélago do Japão)
O Fernão, o Cristóvão e o Diogo, não são um Fernão, um Cristóvão ou um Diogo quaisquer.
O Fernão é Fernão Mendes Pinto.
O Cristóvão é o Cristóvão Borralho.
E o Diogo é o Diogo Zeimoto.
Todos eles foram ilustres portugueses que demandaram mares Orientais lá pelos idos de quinhentos e por lá pintaram a manta, aliás, várias mantas, entre as quais se conta o facto de terem deixado um grande rasto de mestiços euro/asiáticos e que por essas indignas cenas terem escandalizado primeiro, e depois apiedado, um futuro Santo.  
Todos eles produziram grandes escritos e outras obras de grande primor artístico, mas lamentavelmente nenhum deixou para a posteridade aquela parte em que estiveram quase a ser capados.
Apenas escaparam à castração porque lhes valeu a intervenção de um padre jesuíta que, afinal, e como mais tarde se verificou, os tinha no sítio.
Porque eles não se atreveram a deixar testemunho da cena, aqui fica o relato dos acontecidos:
Quando os três acima referidos estavam presos por vadiagem – ou algo semelhante – ali pelo Estreito de Malaca, numa prisão do Reino do Sião, conseguiram fugir e embarcar num junco chinês que zarpava para um Oriente, ainda mais oriental, nessa mesma noite.
Bem enganados estavam, pois o capitão do junco, um chinês sem vergonha, ao passar por aquela cidade que é hoje de Hô-Chi-Minh, e que nessa época tinha outro nome, vendeu-os como escravos a um japonês que, por sua vez, os embarcou para o Império do Sol Nascente.
Ora esse japonês era um grande magnata da guerra que tinha como base territorial um arquipélago a sul da Ilha Grande do Nippon.
Era um grande senhor da guerra, com grandes exércitos, muito poder, muitos súbditos, muitas mulheres e filhos e, sobretudo, filhas.
Calhou bem porque o trabalho doméstico era muito e aqueles três ajeitavam-se bem na cozinha e na arrumação dos quartos daquela enorme família.
Pouco tempo passou até as japonesinhas, filhas do magnata, começarem a mostrar-se com a barriga a crescer.
Foi só por essa altura que esse mesmo magnata se apercebeu do trabalho nocturno que os três escravos tinham vindo a desenvolver.
E a sentença foi lavrada mesmo sem julgamento: “capar aqueles três sacanas”
É então que aparece o tal padre jesuíta. Chamava-se Francisco Xavier. Desembarcara de um grande navio, acompanhado de outras gentes estranhas, vestidas com grandes labitas negras e vinha evangelizar os gentios daquelas ilhas.
Vinha trazer a terras do oriente a Luz da Santa Fé Católica Apostólica Romana.
E conseguiu. Pelo menos em parte.
O primeiro a converter-se foi o magnata, logo seguido da restante família.
Os três escravos, embora a custo, e depois do tal padre muito parlamentar com o magnata, foram perdoados, e os seus filhos, que entretanto tinham nascido, já foram baptizados como bons cristãos.
E lá escaparam à capação, mas assim que tiveram oportunidade fugiram daquelas ilhas.
“Nunca fiando”, diziam para se confortarem com o facto de serem ingratos e mal agradecidos. Sobretudo em relação ao tal padre.
O Fernão Mendes Pinto, como todos sabem, tornou-se escritor de muito êxito, sendo a “Peregrinação” o seu principal livro, ainda hoje um best-seller, bastas vezes editado ao longo dos séculos e de forma repetida.  
O Cristóvão Borralho regressou a Lisboa e além de poeta brejeiro, deixou escrita muita obra de cordel que ainda hoje atrai muitas donzelas sedentas de aventura e romantismo, à Feira do Relógio, aonde existe uma barraca de feirante alfarrabista especializada nesse tipo de literatura. Além disso, fez-se artesão de sombrinhas japonesas que vendia às damas da corte e da melhor sociedade da capital que, aliás, o estimavam muito, dizendo-se à boca pequena que ainda por lá encheu algumas barrigas. Como se vê, era um tipo sem emenda, este tal Cristóvão Borralho. Morreu de velho, rodeado de filhos e netos e até a rainha se fez representar no funeral.
O Diogo Zeimoto, foi o que teve mais azar: no regresso a Lisboa, a caravela em que viajava, naufragou junto às costas orientais africanas – ali por aonde é hoje a Etiópia, mais ou menos – e aonde uma tribo de negros canibais o apanhou, e que depois de o cozer em lume brando, temperado com especiarias várias, se deleitou, comendo-o. Salvou-se a sua obra, que consistia em dentes de marfim trabalhado à mão, graças ao abnegado esforço de um marinheiro audaz que, chegado a Lisboa, a entregou ao Rei, seu Senhor, Essas obras fazem hoje parte do acervo do Museu de Arte Antiga.   
E o Padre Jesuíta, aquele que em última instância os salvou da capação, como é claro e há muito sabido, resultou em São Francisco Xavier.

Esta narrativa é o resultado de bastas pesquisas que este esforçado escriba fez na Torre do Tombo e noutras bibliotecas de igual prestígio, assim como em muitas instituições japonesas de muita honra e dignidade histórica, para já não falar nos arquivos do Vaticano, cujos chefes, a muito custo e depois de muitas cunhas e empenhos, lá deixaram vasculhar aquilo que dizia respeito a São Francisco Xavier, o Apóstolo do Oriente
 Valeu-nos nestes apuros e em último caso, a vontade e o interesse em esclarecer a verdade histórica, de Sua Santidade o Papa João Paulo ll, a quem, em devido tempo e com o devido respeito, mostrámos este manuscrito, tendo, enfim, colhido a sua aprovação, após algumas emendas que ele julgou necessárias e inevitáveis.

Rufino Casablanca
Terena – Monte do Meio – Maio de 1999
 Pois bem (e aqui é que entra o cinema)
Cerca de 450 anos depois da época a que reporta a narrativa anterior, recebeu o autor uma missiva –  assim mesmo, à moda antiga, uma carta em papel –  com remetente de Los Angeles, Califórnia, em que se perguntava se era possível utilizar o trabalho –  depois de devidamente adaptado, é claro – para a realização de um filme em que determinado produtor de cinema estava interessado.
Respondido que sim, que havia interesse na adaptação da narrativa, seguiu-se o que nestes casos é usual: nomeados os advogados das duas partes, estabeleceu-se um contrato a que todos ficaram obrigados.
Devemos confessar que da parte do autor destas linhas, o contrato foi lido muito à pressa, em diagonal, pode dizer-se, tanto mais que o cheque, com aqueles milhares de dólares já estava em cima da mesa, milhares de dólares esses que estavam a fazer falta noutros sítios, pois como é sabido, o dinheiro nunca abundou por estes lados.
E agora o filme (rapidamente porque não nos queremos demorar muito por aqui)
 Título Original: “Saburu Contu”
Título Português: “Os Contos da Lua Cheia”
Ano de Produção: 1988
Idioma: Inglês – (inevitavelmente). Com um protesto do autor que pretendia que a fita fosse falada em português e japonês.
Enfim lá se fez um filme que pouco tem a ver com a verdade dos factos. Os argumentistas – gente completamente estranha à cultura portuguesa/orientalista – trataram o texto inicial de tal forma que o transformaram numa coboiada à japonesa. Uma coisa para esquecer. Até me envergonho de dizer que embora de forma minimalista também contribui para aquela M... (assim mesmo com M grande).
 RC

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