quarta-feira, 6 de março de 2019

MEMÓRIAS CURTAS - Prof Vitor Guita

Foi uma das noites de luar mais bonitas dos últimos tempos.
É, pelo menos, a opinião de alguns que presenciaram o invulgar cenário nocturno que teve lugar no passado mês de Janeiro. Uns chamaram-lhe super Lua; outros apelidaram-na de Lua sangrenta ou Lua de sangue de lobo.
Para quem não aprecia linguagem ou práticas sanguinolentas, o nome até nem tem nada de bonito. Os mais supersticiosos dirão mesmo que a designação não augura nada de bom.
Foi a 21 de Janeiro que tudo aconteceu: Para os astrónomos, habituados a observar estes fenómenos, a super Lua ocorre, de longe em longe, quando o satélite da terra, na sua trajetória. elíptica, mais se aproxima de nós. A Lua cheia apresenta-se maior e mais brilhante do que é habitual e adquire, durante algum tempo, uma tonalidade avermelhada.
Nessa madrugada não pregamos olho, acompanhando, minuto a minuto, o extraordinário cenário que tínhamos diante dos nossos olhos. Fomos acompanhando o paulatino movimento da Lua, as suas várias nuances, assim como o reflexo, cá em baixo, da sua luz.
Ocasiões houve, de maior claridade, que parecia estarmos a assistir ao romper do dia. Noutros momentos, o espaço circundante tingiu-se de vermelho, reflectindo a cor da Lua. Fazia lembrar um cenário de teatro que vai cambiando misteriosamente de luz e de cor.
Como se tudo isto não bastasse, a altas horas da madrugada ocorreu um eclipse lunar, quando o satélite entrou num cone de sombra da Terra. Um espectáculo surpreendente!
Entre os mais antigos existe a crença de que a lua interfere nas condições meteorológicas e no desenvolvimento das sementes, das planta e também no ciclo animal, ser humano incluído. É como se a Lua dirigisse, lá do alto esta complexa orquestra que é a natureza.
Ainda não há muito tempo, um velho amigo nosso afirmava: “Vai chover brevemente. A Lua já deu rumores.” Verdade seja dita, também ouvimos alguns que nos disseram: “Nunca ligues nada a isso. É tudo conversa”.
Acredite-se ou não, o facto é que a crença de que a Lua influencia as culturas remonta a tempos muito distantes. Vários povos do mundo, ainda hoje, semeiam e plantam respeitando as fases da Lua. Apesar de escassearem provas científicas, há quem confirme ter aumentado as suas produções a partir do momento em que começou a dar mais atenção às virtudes lunares.
Numa das nossas frequentes caminhadas ao Monte das Alpistas, onde costumamos ir à rocura de produtos da terra, detivemo-nos ali alguns instantes para conversar com Alexandrino Vedorias e Rosária Bravo, nossos velhos conhecidos e portadores de uma sabedoria que se vai esfumando no tempo. Apesar da idade que não perdoa, marido e mulher teimam em manter a sua horta bem tratada. Não se dá o trabalho feito! Exclama frequentemente o casal de hortelões.
As coisas já não são o que eram, mas há saberes e praticas que não se perdem. Fazer os alfobres ou plantar couves, alfaces e outras plantas com folhas susceptíveis de espigar deve ter lugar no minguante. O mesmo deve acontecer com o plantio de cebolas.
São inúmeros os provérbios que ouvimos acerca da Lua e de outros astros, assim como aqueles que giram em torno do cultivo das hortas e do campo em geral:
“Janeiro quente traz o diabo no ventre”
“Não há luar como o de Janeiro nem sol como o de Agosto”
“Em Janeiro sobe ao outeiro. Se vires terre(j) ar põe-te a cantar, se vires verdejar, põe-te a chorar”.
A certa altura apercebemo-nos de que Rosária Bravo gostaria de interromper por momentos a conversa sobre o mundo das crenças e das influencias lunares, manifestando vontade de descer do céu à terá para falar da sua vida. Memórias de uma vida dura!
O seu nascimento teve lugar no Monte da Ribeira, sítio escuso, na vizinhança do Monte do Pé Bom e dos Mortórios, o mesmo será dizer, já perto do limite das Fazendas.
Havia no monte apenas duas u três moradias, mas não faltava gente, incluindo gente nova e bem animada. Ali por aqueles lados viveu a família Carvoeiro, de onde saíram alguns dos melhores bailadores de fandango da nossa região.
Ao longo do tempo, Rosária Bravo teve saltitar atrás da família, entre a Quinta dos Cavaleiros, o Monte do Picatojo, até se fixar no Monte das Alpistas. Com oito ou nove anos, já estava fartinha de carregar pesos à cabeça, vergada à dureza do trabalho. “Muitas vezes, a cambalear, parecia uma bêbada estrada fora! Outras vezes, nas manhãs frias, nem sentia as mãos engadanhadas de tanto arrancar sargaços”. Depois vieram-lhe à lembrança as longuíssimas caminhadas até às proximidades do Ciborro. As mulheres iam a pé, os homens em carroças carregadas com mantimentos. Se algum carreiro bebia um copo a mais pelo caminho, a jovem Rosária saltava para cima da carroça e era ela que conduzia as mulas. O destino era a Herdade de Cruzetes, onde ela e as companheiras iam juntar cortiça.
Quando se chegava ao trabalho já toda a gente ia moída. Porém, lá vinha a voz do manajeiro: “Vocês deviam trabalhar mas era com uma pedra ao pescoço”.
Foram muitas noites mal dormidas, em cima de molhos de cevada. O barulho das patas das bestas não deixava pregar olho.
Rosária Bravo fez de tudo ou quase tudo: Até ceifar arroz, metida nos camalhões, enterrada em água e lama. De vez em quando lá vinham os trenós, carros sem rodas, puxados por juntas de bois.
No tempo da azeitona, a nossa camponesa chegou a andar na apanha quinze semanas a fio, molhada, a cheirar a fumo. Em dias de muita chuva, corria-lhe a água preta do chapéu para dentro da tijela da sopa. “Quem é que deixou aqui ficar esta?” gritava o manajeiro. Não podia ficar uma azeitona no chão. Hoje, e já estamos em Fevereiro, vêem-se os olivais ainda carregadinhos.
Para o bem e para o mal, o mundo deu uma grande volta!
Alexandrino Vedorias quis associar-se a conversa, com o saber que a experiência lhe dá. Falámos do tempo em que as hortas eram cavadas “à manta”ou ao “montujo”, processo natural de tornar as terras mais fértil. “Hoje chegam-lhe adubos p´ra diante”. Aí por esses “vais”, em qualquer buraco corria água. Havia agriões por todo o lado.
A conversa arrastou-se por mais algum tempo. Entretanto fizeram-se horas de regressar a Montemor. Tínhamos que alinhavar umas quantas linhas acerca do que vimos e ouvimos, interligando tudo com os mistérios da Lua.
De acordo com o que foi anunciado, o céu aparecerá novamente iluminado por uma Lua de sangue no dia 19 de Fevereiro em 2021, segundo as previsões dos astrónomos, o satélite vai reaparecer excepcionalmente grande e luminoso.
Cá estaremos para assistir.
Até um dia destes
Vitor Guita
In Montemorense – Fevereiro 2019 (transcrição autorizada pelo Autor)


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