EDUARDO LUCIANO
Os livros, as leituras, os
leitores e os que acham tudo isso desnecessário
Há uns anos comprei um livro de um
jovem autor premiado e não consegui fazer o que faço sempre, começar e acabar a
leitura da obra. Tentei várias vezes e não conseguia acertar com o ritmo da
escrita, encontrar aquele fio que nos apetece puxar, até que nada reste do
novelo da escrita do outro e tudo fique composto em múltiplas imagens do lado
de quem lê.
No
final do ano passado voltei a tentar e desta vez consegui sentir o ar que
naturalmente passa entre as palavras de quem escreve com talento e terminei a leitura
da obra que andou comigo em casas e estantes diferentes, guardada para quando
eu tivesse a maturidade suficiente para aprender o que, estando ou não escrito,
aquela soma de caracteres me ensinou.
Acabei
de ler um outro romance do mesmo autor e desta vez não tive qualquer
dificuldade em retirar prazer da leitura, em partilhar em voz alta passagens
que entendi poderem dar origem a reflexões sobre características e vivências de
personagens, em suma, que permitisse aprendizagem partilhada.
Nos
últimos três meses li apenas seis livros, o que significa que estou a ler mais
devagar e provavelmente a retirar mais prazer do que leio, o que me permite
cimentar melhor a dimensão da minha ignorância.
Vem
esta conversa a propósito de um texto do meu amigo Samuel, que partilhei na
minha página de uma rede social e de alguns comentários que a mesma suscitou.
Fi-lo
por ter achado estranho que dois adultos, licenciados, um professor de
história, não fizesse a mais pálida ideia de quem tinha sido Mao Zedong. Fi-lo
porque me apanhei a reflectir sobre a improbabilidade daquelas pessoas
conseguirem ler, por não possuírem as necessárias ferramentas de conhecimento
para navegarem no que não está impresso no papel, ainda que tenham quinze ou
dezassete anos de escolaridade.
Levei
logo com o julgamento sumário de que a minha preocupação era de que as pessoas
não se interessavam sobre a “história do comunismo”, de que se eles não sabiam
quem era o Mao não era grave, porque eu também não sei como se chama a mulher
do George Clooney e teria falhado clamorosamente uma pergunta para a qual a
maioria sabe a resposta.
Estas
observações revelaram apenas que quem as fez não consegue sequer vislumbrar as
razões do meu espanto, que nada têm a ver com uma postura de culpabilização das
pessoas que se arriscaram a participar num programa de televisão sujeitando-se
ao escrutínio de milhões de sabichões.
Talvez
a observação que mais me preocupou foi aquela que sugeriu que o conhecimento do
passado não servia para nada e seria mesmo uma verdadeira perda de tempo.
Lembrei-me de imediato de afirmações de jovens brasileiros que não tendo
passado pela ditadura militar emitiram opiniões em sua defesa, de gente que
todos os dias anda a dizer que no tempo do Salazar é que era bom ou a confundir
miséria (dos outros) com honestidade, de professores que conseguem falar da
segunda guerra mundial sem referir uma única vez o papel do exército vermelho
na derrota do nazismo, dos que alcunham de ditadura qualquer regime de que não
gostam, ou de comunismo tudo o que lhes cheire, ainda que vagamente, a oposição
ao capitalismo.
A
minha preocupação não é com a ignorância de dois jovens sobre a história do
século XX, todos somos ignorantes sobre muitas coisas, mas com o facto da coisa
se transformar em “normalidade”, como se saber ler e escrever fosse coisa de
uma elite intelectual.
Quando
o meu amigo Chico me emprestou, aos 15 anos, uma obra de Remarque talvez
soubesse que quarenta e quatro anos depois eu não desistiria de um livro apenas
porque o meu ritmo era diferente do ritmo do escritor.
É
por isso que os meus filhos se queixam de que as prendas de aniversário e de
natal são, invariavelmente, livros.
Para
terminar esta crónica, que já vai longa, deixo-vos um facto histórico: o
Partido Comunista Português celebrou ontem noventa e oito anos, quarenta e oito
dos quais debaixo de uma ditadura fascista, com gerações de militantes e
dirigentes perseguidos, presos, torturados e assassinados.
Não se trata
da “história do comunismo” em Portugal. Trata-se da história do povo português
na sua luta pela liberdade. Ficam com esta informação, quanto mais não seja
para não falharem se esta pergunta vos sair num programa de televisão.
E
já agora, pesquisar no motor de busca da internet não costuma ser suficiente.
Até
para a semana
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