segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

VASCULHAR O PASSADO

Uma vez por mês Augusto Mesquita recorda-nos pessoas, monumentos, tradições usos e costumes de outros tempos

                   Quinta da Amoreira da Torre e as Estátuas Romanas
 Segundo Mestre Túlio Espanca, a Quinta da Amoreira da Torre, antiga herdade agrícola e de recreio, está documentada desde 1321, quando pertencia ao Cabido de Évora, e é constituída por um núcleo original quatrocentista e quinhentista, ao qual se acrescentaram novos elementos nos séculos XVII, XVIII e XX.
Em 1437 a propriedade pertencia a D. Tareja, ama da Infanta D. Isabel, e cerca de quarenta anos depois, D. Fernão Martins de Mascarenhas era designado como donatário das terras.
O conjunto arquitetónico mais arcaico inclui a torre ameada que dá o nome à propriedade, a capela, o pombal, a alameda de loureiros, e a cerca com contrafortes cilíndricos e remates cónicos, elementos datáveis do início do século XVI, bem como a designada Fonte da Rainha, ainda de cronologia quatrocentista, assinalada por um elegante templete tardo-gótico em brecha da Arrábida.
A torre senhorial, de tradição medieval, é flanqueada por duas alas residenciais de tipologia barroca e neoclássica, com portal setecentista, completadas por diversos anexos distribuídos em torno de um pátio interior aberto por portão de aparato.
Ao longo da fachada posterior corre um largo tanque, que deita água sobre os jardins, alimentando diversos tanques de rega e recreio que, juntamente com as áreas verdes e pomares originais, já quase desaparecidos, contribuíram para a criação de um espaço paradisíaco, de ressonâncias islâmicas, no meio da aridez da planície envolvente.
A ermida, consagrada a Nossa Senhora da Penha de França, foi reconstruida, na quase totalidade, depois de 1687, a expensas e devoção da Condessa de Santa Cruz, mulher do 5.º Conde do mesmo título, D. João de Mascarenhas.
A sua festa era celebrada, com solenidade, no dia 15 de Agosto pelos beneficiados da Paróquia de Nossa Senhora da Vila e tinha missa dominical rezada à custa dos proprietários e dos lavradores vizinhos. A capela foi desafectada no séc. XIX, e perdida a sua piedosa imagem padroeira, que a doadora mandara fazer por cópia da titular de Lisboa.
A propriedade manteve-se na posse dos Mascarenhas desde o Séc. XVI, até ser adquirida em 1895 pelo importante proprietário e influente político Cipriano da Costa Palhinha, que D. Carlos I agraciou com o viscondado da Amoreira da Torre.
                                                           As Estátuas Romanas
Gabriel Pereira, escritor, tradutor e arqueólogo eborense, publicou  no Diário do Alentejo em Dezembro de 1886, um texto sobre a Quinta da Amoreira da Torre – e as Estátuas Romanas, do
qual seleccionei algumas passagens:
A Quinta da Amoreira da Torre fica a 4 quilómetros de Montemor-o-Novo na direcção de Arraiolos. Está numa grande planura, entre vastas folhas de lavoura, cortadas pelas sinuosidades da ribeira. Fez-me lembrar aquela linha de verdura coleando entre as terras limpas de certo conservador que chamava às ribeiras e às extremas das propriedades as serpentinas do campo. Tem um grande ar nobre o palácio da quinta, com a sua vasta quadra; o palácio ocupando um lado inteiro, sobressaindo a meio do edifício a alta torre quadrangular. O lado oposto do edifício dá para um enorme lago, cercado de jardins, hoje transformados em hortejos. Restam alguns pés de murta, seculares, enormes; e uma fonte, uma pequena construção elegante, cujos arcos e colunas são de pedra da Arrábida.
À entrada dos jardins uma ermida abandonada. Nada mais nos fala das passadas grandezas. Recentemente, há poucos anos, houve uns arranjos ou concertos burgueses que tornam o edifício habitável, e aproveitáveis as vastas oficinas que cercam a quadra.       
Àquela quinta ligam-se recordações históricas; ali pousaram reis, duques e condes, e houve festas campestres de grande explendor.
Vou explicar porque eu levava no meu plano visitar a quinta da amoreira. Consta que  D. Francisco de Mascarenhas (1530 - 1608), senhor da Amoreira da Torre, alcaide-mor de Mértola, era homem amador de antiguidades; e querendo enobrecer a sua casa da Amoreira, onde muito residia, para ali levou de Mértola antiguidades notáveis, estátuas e lápides.
Em 1758, o povo de Montemor-o-Novo por ocasião do atentado contra el-rei D. José I, correu em massa à Quinta da Amoreira da Torre e quebrou, destruiu brazões, móveis, objectos de arte, jardins, etc., e decapitou o marquês e a marquesa...
  Não teria ficado cousa alguma, não restaria algum fragmento dessas antiguidades achadas em Mértola, e tão importantes que o alcaide-mor, homem ilustrado, as fizera transportar em tempo de péssimas estradas para a sua quinta de Montemor, a boas 30 léguas de distância.
Nos estudos sobre Montemor coligidos pelo sr. Dr. Lopes Praça há uma leve referência a uma ou duas estátuas que parece que ainda ali existem. Vamos verificar, disse eu com o meu album.
Expus o meu problema ao hortelão. Se havia estátuas, grandes bonecas ou pedras com letras, ou figuras? Ora talvez saiba, talvez tenha ouvido dizer; e dizem que veio o povo e quebrou tudo; são coisas velhas...
Pouco a pouco o homem convenceu-se de que não era beleguim, começou a entender-me; depois apareceram umas mulheres.
Só se forem as figuras do marquês e da marquesa, disse uma delas.
Pois vamos a ver isso, disse eu um tanto desanimado, não serão antiguidades de alta escola, mas talvez algumas esculturas curiosas.
Abriu-se um portão; achei-me na casa de entrada; fiquei extasiado, no êxtase arqueológico mais profundo.
A isto chamam aqui o marquês e a marquesa?
Sim senhor, sempre lhe ouvi chamar assim, e sempre lhe ouvi dizer que foi o povo que lhe tirou as cabeças quando soube que o dono desta casa era traidor ao rei.
São duas estátuas romanas esplêndidas; faltam as cabeças e as mãos, isto é, os salientes mais delicados e fáceis de partir; homem e mulher; as túnicas e mantos tratados com uma elegância admirável; duas esculturas de primeira ordem.
Aproximei-me para examinar as pedras e raspei um pouco...
Ah! Não são de barro, são de pedra; fui eu que as caiei ainda não há muito tempo.
Foi até com cal das Silveiras, disse outra mulher com ares de muita consideração pela dita cal.
Verifiquei serem de mármore avermelhado. Têm dois metros de altura: completas terias 2,30m. As atitudes cheias de nobreza escultural; as roupagens de grande perfeição; a estátua de mulher faz lembrar em posição e estilo a soberba estátua de Hera.
Animado pela famosa descoberta perguntei à boa mulher se por ser de muitos anos naquela casa ela não saberia de outras pedras com figuras ou letras...
Que tinha ideia de ver umas pedras esquisitas em certa oficina...
Fomos lá; desviaram-se uns feixes e madeiras velhas; apareceram as pedras. Não eram inscrições nem esculturas de importância artística ou científica; mas fizeram-me certa impressão aquelas pedras ali esquecidas e escondidas de há tantos anos. São os brasões das casas, das antigas casas nobilíssimas e opulentissimas, dos condes de Santa Cruz e dos duques de Aveiro.
A estátua do homem, deu entrada no Museu Nacional de Arqueologia em 1902, doada pelo Visconde da Amoreira da Torre.
 Segue-se a descrição da estátua doada, realizada pelo Museu Nacional de Arqueologia:
 Estátua masculina vestida de túnica e ampla toga com dobras dos panejamentos usadas segundo a moda imperial século I d. C. Falta-lhe a cabeça, todo o braço direito, o pulso e a mão esquerda, além dos pés e pernas que foram jarrelados por baixo dos joelhos encontrando-se assente sobre um plinto. Também a  a toga foi danificada em alguns pontos. O peso da figura descansa na perna esquerda, uma vez que a direita se encontra ligeiramente flectida, actualmente partida desde um pouco abaixo do joelho. Como é habitual nas estátuas togadas, o braço esquerdo – o único conservado – dobra-se e dirige-se para a frente segurando os compridos panejamentos da toga, encontrando-se partida  a borda interior desta. É possível que o braço direito caísse junto ao torso. A toga foi colocada à maneira clássica, com um “balteus” estreito, que passa pela anca direita e sobe em direcção ao ombro esquerdo, sobre o qual recai uma pequena prega da túnica. O “sinus” aparece descaído em arco sobre a perna direita, não chegando a cobrir a totalidade do joelho. O “umbo”, por sua vez, ocupa a sua característica posição centrada e apresenta a forma de “U”, no centro do torso. Na base do pescoço do personagem abre-se uma concavidade semi-circular destinada a receber uma cabeça amovível. A estátua serviu de suporte para as “cabeças retrato” de imperadores ou altos funcionários imperiais, exposta presumivelmente num contexto de culto ou homenagem pública à autoridade romana. (Segundo ficha do Catálogo de Escultura Romana do MNA, da autoria de José Luís de Matos). Esta peça faria parte integrante de um programa iconográfico estatuário juntamente com as  restantes de que falam André de Resende e Amador Arrais no século XVI ( ver Origem/Historial). Este tipo de escultura de vulto inteiro presta,  muitas vezes, alguma dependência em relação à arquitectura, estando prevista a sua colocação para um nicho, ficando por isso com uma parede pelas costas, deste modo o acabamento da parte de trás da escultura surge desprezado ou pouco cuidado como é o caso desta peça, que tem 1,68 m de altura, 81,9 cm de largura e 42 cm de espessura.
No Diário do Governo n.º 52, de 6 de Março de 1902, foi publicado um Louvor do Ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústrias ao Senhor Visconde de Amoreira da Torre pela oferta desta estátua. Em relação à outra estátua, não encontrei informação disponível.
Na segunda década do já referido século XX, a propriedade foi adquirida pelo Dr. Alfredo Augusto Cunhal que procedeu ao restauro do edifício da quinta, mediante projecto elaborado pelos arquitectos Raul Lino e  Jorge Reis. Os actuais proprietários da Quinta da Amoreira da Torre, são os bisnetos do Dr. Alfredo Cunhal.
Através dum processo iniciado em 1998 a Amoreira da Torre foi classificada Monumento de Interesse Público através da Portaria n.º 264/2014 de 10 de Abril, e o seu histórico jardim está registado na Associação Portuguesa dos Jardins Históricos.
A apreciada água da Amoreira da Torre foi disponibilizada há vários anos para o abastecimento público da nossa cidade.
Destas terras são colhidas as uvas que dão origem ao afamado vinho “Quinta Amoreira da Torre”, cujos rótulos, levam o nome de Montemor-o-Novo pelo país e também pelo estrangeiro.

Augusto Mesquita
Janeiro/2019


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