quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

MEMÓRIAS CURTAS

Uma vez por mês o Prof. Vitor Guita traz-nos à memória, recordações do passado

Janeiro implica um virar de página ou mesmo uma troca de calendários. O princípio do ano é dado a novos projectos e a iniciar outros rumos, sem abandonar muito das nossas rotinas, como se a vida fosse em grande medida, um ritual.
Estávamos nós nestas divagações diante da Papelaria Mira, quando fomos assaltados por uma idéia que pode parecer um tanto ou quanto extravagante.
Imagine, estimado leitor que, em vez de se orientar por um calendário, o ritmo dos dias, das semanas e dos meses era marcado pela montra de um estabelecimento comercial. Idéia estranha, não é?
Pois foi essa a sensação que tivemos ao longo de muitos anos, deixando-nos guiar pelas montras dessa conhecida papelaria, como se ela fosse uma espécie de bússola do tempo.
Em finais de Setembro, princípio de Outubro, o espaço envidraçado enchia-se de pastas, livros e cadernos, lápis, canetas e outro material, anunciando o início do ano escolar. Havia igualmente um lugar reservado para as prestigiosas canetas Parker, isqueiros e outros artigos das melhores marcas. Passadas umas semanas, sabíamos que o Natal estava à porta pela presença das figuras do presépio, pelas bolas e fios de tons de ouro e prata, mas também pela bonecada e outros brinquedos que despertavam a cobiça da miudagem. Vêem-nos à lembrança o Loto, o Jogo da Glória e outros passatempos da Majora, Recordamo-nos ainda dos bonecos e bonecas de cartão, que deram lugar aos de plástico, antecessores dos bebés chorões, a quem bastava tirar-lhes a chupeta ou virá-los de barriga para baixo para desatarem numa berraria. Para as meninas havia ainda pequenos fogões, máquinas de costura, peças de vestuário em papel para recortar, serviços miniatura em plástico e alumínio.
Para a rapaziada habituada a brincadeiras simples com piões, fisgas e caricas, berlindes e botões, aspirar a um avião, a uma mota ou a um carro de chapa metálica, era uma coisa de sonho. A primeira mota de corda que tivemos foi comprada na Papelaria Mira, Uma bomba! Porem com tanta volta que a mota deu em salas, pátios e corredores, a corda saiu da engrenagem e foi o relojoeiro Fuas quem fez o milagre de a voltar a pôr a rodar.
Quem trabalhou na papelaria diz que, na véspera de Natal, a loja só fechava à meia-noite, à espera dos clientes de última hora que vinham comprar os últimos presentes.
Passado Janeiro, a papelaria mudava de visual, prenúncio de outro tempo. Como se quisessem, também elas, brincar ao Carnaval, as montras apareciam enfeitadas com máscaras e chapéus os mais variados, bisnagas e pistolas de água, confettis e serpentinas, bombas, rabisca-pés, estralinhos e estraletes de riscar a parede, garrafinhas de mau-cheiro.
Nos dias de Carnaval, o 1º andar da papelaria era alvo de uma corrida aos cerca de vinte dominós de cetim preto que havia para aluga. Nada de mascaradices “made in China”. Os dominós eram feitos à mão por engenhosas costureiras. Segundo nos foi dito, só a traça se atreveu, ainda não há muito tempo, a pôr fim à existência dos fatos.
O comércio dos artigos carnavalescos, justificava um cuidado particular com a sua apresentação. O Carnaval era uma época de muito movimento e mais uma oportunidade de fazer negócio. Era de arromba a animação nas Colectividades e em diversas casas particulares. Em muitas delas, mesmo nalgumas mais humildes, punha-se a mesa no sábado e assim durava até quarta-feira. Eram muitas as pessoas que se mascaravam, de forma espontânea, ou que gostavam de pregar a sua partida.
Alem de ter interesse na venda de artigos carnavalescos, Américo Mário Varela de Mira, era, ele próprio, um amigo da folia. O Mequito, seu filho mais velho, confidenciou-nos que o pai Américo gostava de se juntar e parodiar com amigos em Montemor ou ir até Évora, a casa da família da D. Palmira, onde se realizavam uns bem animados assaltos. À conta das brincadeiras carnavalescas, arranjou-se uma mão cheia de casamentos.
Com o enterro do Carnaval, adivinhava-se um cenário renovado nas amplas vitrinas da papelaria. A Primavera, também ela tempo de renovação, começaria em breve a dar sinais da sua presença, sempre cheia de encantos. Começava a altura propícia para ir ao campo desfrutar os prazeres da natureza, comer o borreguinho ou, por exemplo fazer uma pescaria.
Os amantes da pesca afluíam em grande número à papelaria Mira, atraídos pelas montras repletas de canas para todos os gostos, mingachos, carretos, anzóis e tudo aquilo que um pescador tem direito.
A actividade piscatória era intensa. Abundava o peixe nas barragens, nos pegos e até, em vários pontos do curso do rio, havia óptimos pesqueiros.
Como naquela altura eram poucas as pessoas que tinham carro, um grupo de clientes e amigos de Américo Mira decidiu associar-se e comprar um carro antigo que transportava um monte de gente. O automóvel era um Buick e foi baptizado, sabe-se lá porquê com o invulgar nome de Rapilan.
Grandes pescadores! Excelentes cozinheiros! O Mequita lembra-se, ainda rapazola, de ter aprendido a cozinhar com os veteranos da pesca e do petisco. Em dias de pescaria, uma das primeiras tarefas era mesmo acender o lume e tratar das penelas.
A propósito de pesca e de papelaria, estivemos a falar com o nosso velho amigo João Miguens Bastos, amante da arte de pescar e empregado, desde a primeira hora, da Papelaria Mira. Foi para ali ainda usava calções.
O João fez questão de nos dizer que era exímio a empatar anzóis, sendo muito requisitado pela clientela piscatória, que o gratificava pelo paciente trabalho.
Quisemos depois, folhear mais a fundo a “agenda do tempo” e conhecer melhor os primeiros tempos da papelaria.
António Mário Varela de Mira deixou a Bacosi, estabelecimento que existia na zona baixa da Rua Nova. Foi em 1953 que decidiu abrir uma papelaria no topo da mesma rua. Estabeleceu-se, de início, à esquina da Rua das Pedras Negras, onde funcionaram os escritórios de Salvador da Costa e onde é o actual armazém da firma.
Não levaria muito tempo para que a loja passasse à esquina oposta, onde, volvidos cerca de 65 anos, ainda se mantem com dinamismo.
O novo espaço, bem mais amplo e arejado do que o primeiro, tinha sido anteriormente um comércio de fazendas, propriedade de Francisco Magalhães.
Como já foi referido, João Miguéns Bastos fez parte da primeira equipa de empregados, juntamente com Esmeralda Gomes. Sucederam-lhe muitos outros colegas de trabalho que estão na lembrança dos montemorenses.
Em 1961, João Bastos foi rendido pelo nosso amigo e companheiro de escola António Sampaio, que já conta mais de meio século ao serviço da casa. Uma vida!
A loja do Sr Mira, gerida nos últimos anos pelos filhos António Mira (Toninho) e Américo Mira (Mequito), afirmou-se como espaço de referência para os amantes da leitura. Houve um tempo em que adquirir livros em Montemor não era tarefa fácil. As alternativas passavam pela papelaria do alto da Rua Nova, pela loja dos irmãos Benigno e Jerónimo Faria ou, em tempos recuados pela mercearia de Joaquim Rodrigues Amaro, onde além do Granito, do Poejo e de outros produtos também era possível adquirir livros e jornais.
Se fecharmos os olhos e recuarmos no tempo, somos capazes de ir buscar o cheiro dos livros, jornais e revistas, de visualizar capas, títulos, imagens que prenderam a nossa atenção. Antes de nos interessarmos pelos grandes clássicos, lembrámo-nos de ir à procura, à quinta-feira do Mundo de Aventuras e da literatura juvenil que estava na berra. Éramos igualmente clientes assíduos de colecções como As Raças Humanas, cromos da bola, etc.
As senhoras e as raparigas esperavam ansiosamente pela chegada da Crónica Feminina que, sejamos francos, também era devorada por muito público masculino.
À semelhança de algumas farmácias, alfaiatarias e de outros estabelecimentos da vila, a Papelaria Mira era ponto de encontro e lugar de tertúlia de funcionários das Finanças, do Tribunal, da Câmara, de algum professorado e muitos outros montemorenses.
E pronto! A conversa já vai longa. Ficaram aqui registados algumas lembranças da emblemática papelaria/livraria, seguramente um dos mais antigos estabelecimentos comerciais ainda vivos em Montemor.
O nosso próximo ponto de encontro será aqui, lá para o dia 20 de Fevereiro. Até lá.
Vitor Guita

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