Uma vez por mês o Prof. Vitor Guita traz-nos à memória, recordações do passado.
Os primeiros dias de Dezembro trazem-nos inevitavelmente à
lembrança memórias de dois importantes e apreciados feriados.
No primeiro de
Dezembro, costumamos assaltar o armário das recordações, não para procurarmos
saber se existiu, de facto o tal esconderijo do Miguel de Vasconcelos, mas para
recuperarmos memórias do tempo da nossa infância e outras coisas mais.
Logo pela manhã, enquanto na rua ecoavam os sons vibrantes
da Banda da Carlista, interpretando o Hino da Restauração, ouvíamos os mais
velhos vociferando contra os espanhóis, num tom marcial que quase fazia lembrar
os revoltosos de 1640. Tudo isto se passava à volta de uns cálices de
aguardente, de umas broas, de umas nozes e de uns figos secos. Bela maneira de
fazer a guerra!
A veia melómana de alguns levava-os a trautear o patriótico
hino ou a tentar imitar os instrumentos da filarmónica local:
pó,pó,pó…pó,pó,pó….
Fomos habituados, nós e outras gerações, a olhar para
“nuestros hermanos” com alguma desconfiança ou mesmo hostilidade. Não é que não
haja velhas razões históricas para tal atitude. Que o digam os portugueses de
seiscentos, massacrados com impostos e espoliados de casas e outros haveres
pelos “donos disto tudo”, quer dizer, pelos todos poderosos Filipes. É comum
ainda hoje ouvir vozes dizer que “ de Espanha, nem bom vento nem bom casamento”
e outras sentenças do género. Outros afirmam que mais valia D. João IV ter
estado sossegado, deixando-nos ficar sob o jugo dos espanhóis. Pontos de vista
diferentes!
A nossa experiencia pessoal diz-nos que, em cada espanhol
que conhecemos, encontramos sempre um amigo.
Mas…deixemos o dia 1 de Dezembro. Chegado o dia 8, não há
como evitar a memória dos festejos em honra de Nª Srª da Conceição. Ao longo do
dia, era constante a romaria até ao cimo da colina rodeada de oliveiras. Lá no
alto, para além das cerimónias religiosas, havia leilão de fogaças cuja receita
reverteria a favor da conservação daquele lugar de culto. Sempre que falamos
dos antigos festejos e de quem mais contribuía para a sua realização, há nomes
que são consensuais: Jacinta e Tadeia Cornacho, Flamina Seatra.
Quando experimentamos reavivar a memória que temos do espaço
conventual e das pessoas que lá viviam, uma das imagens mais fortes que nos
ocorrem é a da Srª Hermínia, uma idosa que habitava num recanto do rés-do-chão,
no interior do convento. A casa, de piso térreo, era humidade mal iluminada.
A Srª Hermínia era bastante solicitada por saber fazer
benzeduras e ajudar no tratamento da erisipela e de outras maleitas. Temos
idéia de vê-la acender pequenas flores secas em lamparinas de azeite.
Fora da casa sombria, havia um espaço ajardinado, com
placas-canteiros, árvores de fruto e arbustos. Também uma cisterna.
Falámos com algumas pessoas amigas que ali foram nascidas e
criadas ou simplesmente ali moraram. Por volta dos anos 50 viviam ali umas
dezenas de moradores. Foi o nosso amigo António Agostinho, com quem tivemos uma
conversa mais demorada, que nos ajudou a contar o número de famílias, e o nome
de quem habitava o lugar. É impossível nomeá-los a todos. Registamos alguns
nomes que achamos curiosos por estarem associados a profissões: Luís (gateiro),
João Lopes (cesteiro), José Joaquim (das vassouras e pincéis), Hemengarda (das
farturas). Mais abaixo, à beira da estrada, numa pequena casa isolada, viveu o
Canivete (sapateiro). O pai do António era popularmente conhecido por Luís
Gateiro por se ocupar a por gatos em alguidares de barro rachados, pratos e
travessas que pareciam condenados ao balde do lixo. Encarregava-se também de
rebitar panelas ou cafeteiras de alumínio e de fazer todo o tipo de consertos
em sombrinhas e guarda-chuvas. O nome da profissão acabou por contagiar o nome
dos outros membros da família, que passaram a ser conhecidos por Gateiros.
A família do nosso amigo António habitava numa pequena
parcela do 1º andar do convento. Sem luz electrica, para percorrer as tábuas
esburacadas do corredor, valia a iluminação que entrava pelo mirante. O António
não nos escondeu o medo que sentia, quando regressava a casa, depois do cinema.
Medo das sombras e dos ruídos. Medo das cobras.
Vivia-se em condições difíceis. Apesar de haver uma
cisterna, a água ia-se buscar à Quinta da Graciosa e os despejos faziam-se
barreira abaixo. Quem ali morava disfrutava, no entanto, de uma vastíssima e
bela paisagem.
Como já tivemos oportunidade de referir noutras crónicas, a
memória constrói-se a partir de experiências pessoais, de relatos que ouvimos,
mas também de fintes escritas.
Sem pretendermos ser muito exaustivos na abordagem histórica
do convento de Nsª Srª da Conceição (os historiadores já se encarregaram disso
com mais rigor), arriscamos fornecer alguns dados, especialmente a pensar nos
leitores mais curiosos e dos que estão mais distantes destas questões.
Chegaremos apenas ao ano de 1874, altura em que o edifício foi vendido em hasta
pública pelo Estado, passando desde aí, para as mãos de sucessivos
particulares.
O Convento foi fundado no século XVII, pelos frades
Agostinhos Descalços, que inicialmente viviam na vila, em pequenas casas
cedidas provisoriamente no sítio das Pedras Negras, na rua das Piçarras e na
Ermida de S. Lázaro.
Na sequência da petição à Câmara feita pelos religiosos,
foi-lhes cedido o sítio de Nª Sª da Conceição, no alto da colina, para ali
edificarem um convento. No alto do monte já existia, provavelmente desde o
século XVI, uma ermida dedicada à Virgem da Conceição, que os antigos
designavam de Amieira.
Chamados os representantes da nobreza e do povo, a licença
da Camara Municipal para a fundação do convento foi concedida, ficando acordado
que nem a Camara nem a população seriam obrigadas, em algum tempo, a
contribuírem para a obra. Com mais ou menos dificuldades o lançamento da
primeira pedra verificou-se no dia 29 de Maio de 1688, tendo-se dado início à
construção do convento. Depois de extinto o convento por falta de membros
religiosos, cerca de 1815, uma comissão de devotos de Nª Srª da Conceição,
pretendendo dar assistência ao templo e preservá-lo da incúria, solicitou mais
tarde a D. João VI licença para ali praticar o culto e autorização para
utilizar as águas da cisterna do pátio conventual. A licença foi concedida.
Como aconteceu com muitos conventos deste país, o de Nª Srª da Conceição não escapou à regra e
sofreu, especialmente durante as Invasões Francesas, grave delapidação dos
pertences sumptuários. Foi o Decreto do Governo de Junot, que determinou a
contribuição de guerra aplicável às pratas das Igrejas. Foi depois o saque da
divisão do general Loison, quando passava por Montemor a caminho de Évora.
Apetece-nos terminar com um excerto das Viagens na Minha
Terra, do romântico Almeida Garret:
O convento no povoado e o mosteiro na
erma animavam, amenizavam, davam alma e grandeza a tudo; eles protegiam as
árvores, santificavam as fontes, enchiam a terra de poesia e de solenidade (…)
Quando me lembra tudo
isto, quando vejo os conventos em ruínas, os egressos a pedir esmola e os
barões de berlinda, tenho saudade dos frades – não dos frades que foram, mas
dos frades que podiam ser.”
E pronto, estimados leitores. Ficamos por aqui. Para todos
um até breve.
Vitor Guita
In Montemorense –
Dezembro 2018
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