CLÁUDIA SOUSA PEREIRA
RACISMO
E VIOLÊNCIA: UMA QUESTÃO DE ESCALA(DA)
No
Jamaica ou na Venezuela, em Paris ou em Elvas, com ou sem coletes, com ou sem
bandeiras, a violência estalou nos últimos tempos, em graus e relevâncias
diferentes, regionais, nacionais ou internacionais. Uma questão de escala,
portanto. Escala na consequência, mas também na causa, estou em crer, do lugar
e da influência do discurso do ódio.
O discurso do ódio não é só o
oposto do discurso do amor. Eles partilham o mesmo denominador das emoções
irracionais e, por isso, não condenamos os discursos quando se limitam, a prazo
portanto, à expressão íntima da paixão, da revolta, do luto. Expressão que,
quando ponderada e filtrada pelo uso da razão, se vai esvaziando para permitir
um convívio sustentável, um ambiente respirável. Se quiséssemos ser
fundamentalistas – e às vezes bem precisamos de saber, ou de nos lembrar, por
que é que não o somos – poderíamos afirmar que qualquer expressão que prometa
luta a alguma coisa se bandearia para o lado do discurso do ódio. Mas depois
temos as “lutas boas”: contra o cancro, contra a discriminação, contra a
poluição… E a paradoxal luta contra a violência.
Quando com Abril, meia dúzia de
anos depois do Maio, chegou o outro paradoxal “proibido proibir”, o verbo
deixou de circular clandestino, cuidadoso porque perigoso para os dominadores
e, efeito disso, para os dominados. Cantou-se em voz alta a ideologia que
combatia a deformação de carácter que a outra ideologia ensinava. O combate,
felizmente e apesar dos lutos – os reais, da morte, e não os figurados – o
combate fez-se com palavras. A palavra, na canção, tornou-se uma arma. As
paredes gritavam-nos aos olhos palavras que ditavam ordens contra a ditadura.
Pois… quando mergulhamos assim devagarinho nas palavras, começamos a perceber
as ratoeiras para a coerência, mesmo quando sabemos muito latim.
A escala em que usamos as
palavras são como a escala musical, quer-me parecer, eu que não percebo nada de
música e já quase não sei ler um dó ou um sol… Diz-me a enciclopédia do povo, a
que alguns académicos já começaram a prestar atenção porque mais vale entrar no
sistema para o melhorar do que ficar de fora a vê-lo degradar-se e contaminar
tudo o resto, falo da wikipédia, bem entendido, diz-me que “as escalas musicais
formam a base necessária para a formação de acordes e tonalidades”, que se pode
“utilizar mais de uma escala para formar linhas melódicas sobre uma mesma
tonalidade (…)ou ainda, explorando notas de tensão apropriadas sobre as cadências
harmónicas da tonalidade.” A escala dá-nos a medida, pois claro. E é por isso
que para refrear acções e reacções desmesuradas devemos medir as palavras. Para
que a acção e a reacção, a de violência claro que é que traz a morte e o ódio,
não se intensifique e se torne uma escalada.
Eu sou do tempo em que se dizia
que os jovens já não liam nem escreviam. Também estou no tempo em que a ciência
dos significados nos ensina a ler imagens para além de só olhar. Em que ver é
ler, porque ler resulta em interpretar, em dar sentido a significados que lá
estão, ou podem estar. Quando as pessoas olham mais do que só por olhar e vêem
também lêem. É certo que às vezes treslêem e por isso há discursos, mesmo os
das imagens, que não podem ser equívocos. E que não podem ser pronunciados,
sejam ditos ou mostrados, por quem tem a responsabilidade de ser responsável.
Se vamos dar a ler ou a ouvir a outros o que temos para dizer – a falar, a
cantar, a filmar – teremos de contar com as reacções que provocamos, mesmo quando
queremos ser contra. Porque o contra-poder também é poder. E é também por isso
que erramos menos quando queremos, por facilitismo, generalizar conceitos
usando-os no plural. (Pois, o que é de todos mais facilmente não é de ninguém
se as coisas dão para o torto.) Nesta sequência lógica poderia parecer, então,
que talvez já não haja racismo mas racismos. E ficaríamos todos muito mais
aliviados porque cada um de nós já terá algum dia em algum lugar tê-lo sentido
na pele e na alma, que estão ali tão próximas uma da outra como a sensação da
emoção. É uma espécie de remedeio. De dividir o mal pelas aldeias. Depois o que
é mesmo uma maçada é quando o mal alastra. E ganha escala.
Até para a semana.
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