terça-feira, 4 de dezembro de 2018

MEMÓRIAS CURTAS - Colaboração do Prof. Vitor Guita

Aí está Novembro. Chuvoso como pertence. Com ele, logo a abrir, chegou a festa religiosa em honra de Todos os Santos, seguida do dia de Finados. Depois,, foi a festa de festejar o São Martinho, com as tradicionais castanhas e água-pé. Vieram também as nozes, as romãs, os marmelos, os diospiros…Experimentámos apanhar as primeiras laranjas na esperança de hes encontrar alguma doçura.
Esta época do ano, já o dissemos noutras circunstâncias, mexe connosco. Entre muitas outras razões, porque é altura de rumarmos ao cemitério, de homenagear os que já partiram. A visita aos lugares onde repousam os nossos entes queridos leva-nos sempre a percorrer o labirinto de campas, algumas delas amontoadas em cima umas das outras. É um ritual a que nos habituámos, umas vezes seduzidos pela beleza dos ornatos, outras vezes atraídos pela qualidade poética de certos epitáfios.
Desta vez na tarde do dia de Finados, deu-se a coincidência de estarmos a ler um livro de poesia de António Gedeão. Um dos poemas intitulados Pedra Lioz, faz alusão aos que trabalham árdua e pacientemente a pedra.
A dado passo do texto poético, diz-se:
(…)
Mas no silêncio da nave,
Como um cinzel que batuca,
soa sempre um truca truca,
lento, pausado, suava,
truca truca truca truca

Anjinhos de longas vestes
E cabelo aos caracóis,
Tocam pífaros celestes
Entre cometas e sóis.
(…)
No desmedido caixão,
Grande senhor ali jaz.
Pupilo de Santanás?
Alma pura de eleição?
Dom Afonso ou Dom João?
Para o caso tanto faz.
As inspiradoras palavras de Gedeão, juntamente com as impressões que trouxéramos da visita ao cemitério de S. Francisco, levaram-nos a pensar noutros homens de cujas mãos saíram tantas estátuas e ornatos em pedra mármore que, ainda hoje, maravilham o olhar de tanta gente. 
A nossa lembrança voou direitinho para mestre Frederico, uma figura bondosa e serena, um artista que nos habituamos a admirar desde o tempo da juventude.
A idéia saiu reforçada pelo facto de nos termos encontrado com o João Carlos Rosado, filho do mestre e nosso amigo de longa data. O João ajudou-nos a esculpir com palavras, por vezes emocionadas, o perfil do seu progenitor.
Nascido em Estremoz, a 23 de Setembro de 1913, Frederico António Rosado, ficou órfão de pai, tinha apenas 4 anos. Depois de frequentar a 3ª classe e de ter trabalhado algum tempo como marçano, foi convidado a entrar na oficina de canteiro do Srº José Caetano Godinho. O proprietário da oficina, homem experiente na “Arte de Cantaria”, rapidamente se apercebeu das qualidades do principiante. Foi ele quem o iniciou nos trabalhos mais árduos e exigentes, tendo-lhe transmitido os “Segredos da Arte”.
Os méritos do jovem Frederico foram compensados pelo reconhecimento do patrão, que o nomeou encarregado da oficina, quando perfez 17 anos.
Depois, as suas capacidades de trabalho e perfeição levariam mestre Prudêncio, escultor de profissão, recém-chegado dos estúdios das Belas Artes, a convidá-lo para reproduzir em mármore, algumas peças de arte que havia feito com gesso. Foi o início de um percurso que levaria o aprendiz de canteiro ornatista transformar-se em escultor de mármores.
A profissão que abraçou não impediu Frederico António Rosado a participar em múltiplas actividades de cariz voluntário, Foi músico na Banda do União (uma das Sociedades recreativas estremocense); jogou futebol no Clube dos Encarnados de Estremoz, tendo passado duas épocas no Belenenses; desempenhou a tarefa de maqueiro na Delegação de Estremoz da Cruz Vermelha Portuguesa…
A morte do filho mais velho, com 17 anos, vítima de doença, foi factor determinante para que, em 1963, aceitasse o convite do Sr. Sertório Augusto Borda d´Água para vir trabalhar nas oficinas do Rossio, em Montemor – Novo, vila que tão bem o acolheu e que se tornou na sua terra de adopção. Nela viria a falecer no ano 2000.
Mestre Frederico esculpia nessa altura, uma estátua de Nossa Senhora da Conceição, que ficou inacabada.
Muitas das suas obras encontram-se espalhadas de norte a sul do país, especialmente em cemitérios, dado ser o mercado de maior procura de estatuetas, crucifixos e outros ornatos em mármore.
Do seu currículo consta outro tipo de obras, em tamanho natural, que podem ver-se em:
Galveias (na praceta de acesso norte) estátua alegórica encomendada pelo Senhor Marques Ratão.
Funchal (no Hospital da Irmandade) estátua de S. João de Deus.
Coimbra – estátua da Rainha Santa Isabel.
Montemor-o-Novo (Galeria particular de Manuel Casa Branca) estátua inacabada de Nossa Senhora da Conceição.
Ainda somos capazes de recuperar com nitidez, como se estivesse ressente a imagem de mestre Frederico. Com a sua boina preta, inseparável, ali estava ele munido da sua maceta, de 2Kg, ponteiros, escopros, badames, violino e cruzeta. Ao longo da vida, com milhões de delicadas pancadinhas o mestre estremocense foi 2descobrindo as obras de arte que estavam no interior dos disformes blocos de mármore”.
O canteiro ornatista/escultor costumava responder aos que lhe chamavam “Artista” ou “Mestre” e a muitos que paravam para admirar a perfeição das suas obras de arte: “Limito-me a retirar o excesso de pedra que as esconde. As estátuas estão lá dentro”.
Nos últimos anos de actividade, com as mudanças na empresa, mestre Frederico ficou a trabalhar por conta própria. Transformou a oficina do seu atelier, tendo passado a fazer aquilo que queria, como queria e ao ritmo que queria, sempre apaixonado pelo mármore. Ali reproduzia esculturas e os mais diversos ornatos. A sua longa experiência permitia-lhe, em muitos casos, dispensar desenhos ou qualquer outro tipo de modelo e passar directamente para o trabalho na pedra. Para inscrever os dizeres numa lápide ou num pedestal, mestre Frederico utilizava frequentemente métodos simples, rudimentares, servindo-se de fitas de carnaval para marcar as letras e os respectivos intervalos. Um saber de experiência feito!
O trabalho de cantaria exige um compromisso entre o esforço, por vezes vigoroso, e a delicadeza que são necessários para esculpir matéria tosca, que, pelos vistos, não será tão tosca como parece.
E pronto estimado leitor. Vamos ter que ficar por aqui. Muitas coisas ficaram por dizer acerca do canteiro/ornatista/escultor que um dia, decidiu vir para Montemor. Acima de tudo um Homem Bom.
Utilizamos no início destas Memórias, palavras de um grande poeta. Apetece-nos terminar com o enorme talento oratório do Padre António Vieira:
“Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas – tosca, bruta, dura, informe- e depois de desbastar o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem, primeiro membro a membro, e depois feição por feição, até á mais miúda. Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afina-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos, aqui despega, ali enruga, acolá recama e ali fica o homem perfeito, talvez um santo que se pode por no altar (…)”
Até breve
Vitor Guita
In Montemorense – Novembro2018


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