Esta época do ano, já o dissemos noutras circunstâncias,
mexe connosco. Entre muitas outras razões, porque é altura de rumarmos ao
cemitério, de homenagear os que já partiram. A visita aos lugares onde repousam
os nossos entes queridos leva-nos sempre a percorrer o labirinto de campas,
algumas delas amontoadas em cima umas das outras. É um ritual a que nos
habituámos, umas vezes seduzidos pela beleza dos ornatos, outras vezes atraídos
pela qualidade poética de certos epitáfios.
Desta vez na tarde do dia de Finados, deu-se a coincidência
de estarmos a ler um livro de poesia de António Gedeão. Um dos poemas
intitulados Pedra Lioz, faz alusão aos que trabalham árdua e pacientemente a
pedra.
A dado passo do texto poético, diz-se:
(…)
Mas no silêncio da
nave,
Como um cinzel que
batuca,
soa sempre um truca
truca,
lento, pausado, suava,
truca truca truca
truca
Anjinhos de longas
vestes
E cabelo aos caracóis,
Tocam pífaros celestes
Entre cometas e sóis.
(…)
No desmedido caixão,
Grande senhor ali jaz.
Pupilo de Santanás?
Alma pura de eleição?
Dom Afonso ou Dom João?
Para o caso tanto faz.
As inspiradoras palavras de Gedeão, juntamente com as
impressões que trouxéramos da visita ao cemitério de S. Francisco, levaram-nos
a pensar noutros homens de cujas mãos saíram tantas estátuas e ornatos em pedra
mármore que, ainda hoje, maravilham o olhar de tanta gente.
A nossa lembrança
voou direitinho para mestre Frederico, uma figura bondosa e serena, um artista
que nos habituamos a admirar desde o tempo da juventude.
A idéia saiu reforçada pelo facto de nos termos encontrado
com o João Carlos Rosado, filho do mestre e nosso amigo de longa data. O João
ajudou-nos a esculpir com palavras, por vezes emocionadas, o perfil do seu
progenitor.
Nascido em Estremoz, a 23 de Setembro de 1913, Frederico
António Rosado, ficou órfão de pai, tinha apenas 4 anos. Depois de frequentar a
3ª classe e de ter trabalhado algum tempo como marçano, foi convidado a entrar
na oficina de canteiro do Srº José Caetano Godinho. O proprietário da oficina,
homem experiente na “Arte de Cantaria”, rapidamente se apercebeu das qualidades
do principiante. Foi ele quem o iniciou nos trabalhos mais árduos e exigentes,
tendo-lhe transmitido os “Segredos da Arte”.
Os méritos do jovem Frederico foram compensados pelo
reconhecimento do patrão, que o nomeou encarregado da oficina, quando perfez 17
anos.
Depois, as suas capacidades de trabalho e perfeição levariam
mestre Prudêncio, escultor de profissão, recém-chegado dos estúdios das Belas
Artes, a convidá-lo para reproduzir em mármore, algumas peças de arte que havia
feito com gesso. Foi o início de um percurso que levaria o aprendiz de canteiro
ornatista transformar-se em escultor de mármores.
A profissão que abraçou não impediu Frederico António Rosado
a participar em múltiplas actividades de cariz voluntário, Foi músico na Banda
do União (uma das Sociedades recreativas estremocense); jogou futebol no Clube
dos Encarnados de Estremoz, tendo passado duas épocas no Belenenses;
desempenhou a tarefa de maqueiro na Delegação de Estremoz da Cruz Vermelha
Portuguesa…
A morte do filho mais velho, com 17 anos, vítima de doença,
foi factor determinante para que, em 1963, aceitasse o convite do Sr. Sertório
Augusto Borda d´Água para vir trabalhar nas oficinas do Rossio, em Montemor –
Novo, vila que tão bem o acolheu e que se tornou na sua terra de adopção. Nela
viria a falecer no ano 2000.
Mestre Frederico esculpia nessa altura, uma estátua de Nossa
Senhora da Conceição, que ficou inacabada.
Muitas das suas obras encontram-se espalhadas de norte a sul
do país, especialmente em cemitérios, dado ser o mercado de maior procura de
estatuetas, crucifixos e outros ornatos em mármore.
Do seu currículo consta outro tipo de obras, em tamanho
natural, que podem ver-se em:
Galveias (na praceta de acesso norte) estátua alegórica
encomendada pelo Senhor Marques Ratão.
Funchal (no Hospital da Irmandade) estátua de S. João de
Deus.
Coimbra – estátua da Rainha Santa Isabel.
Montemor-o-Novo (Galeria particular de Manuel Casa Branca)
estátua inacabada de Nossa Senhora da Conceição.
Ainda somos capazes de recuperar com nitidez, como se
estivesse ressente a imagem de mestre Frederico. Com a sua boina preta,
inseparável, ali estava ele munido da sua maceta, de 2Kg, ponteiros, escopros,
badames, violino e cruzeta. Ao longo da vida, com milhões de delicadas
pancadinhas o mestre estremocense foi 2descobrindo as obras de arte que estavam
no interior dos disformes blocos de mármore”.
O canteiro ornatista/escultor costumava responder aos que
lhe chamavam “Artista” ou “Mestre” e a muitos que paravam para admirar a
perfeição das suas obras de arte: “Limito-me a retirar o excesso de pedra que
as esconde. As estátuas estão lá dentro”.
Nos últimos anos de actividade, com as mudanças na empresa,
mestre Frederico ficou a trabalhar por conta própria. Transformou a oficina do
seu atelier, tendo passado a fazer aquilo que queria, como queria e ao ritmo
que queria, sempre apaixonado pelo mármore. Ali reproduzia esculturas e os mais
diversos ornatos. A sua longa experiência permitia-lhe, em muitos casos,
dispensar desenhos ou qualquer outro tipo de modelo e passar directamente para
o trabalho na pedra. Para inscrever os dizeres numa lápide ou num pedestal,
mestre Frederico utilizava frequentemente métodos simples, rudimentares,
servindo-se de fitas de carnaval para marcar as letras e os respectivos
intervalos. Um saber de experiência feito!
O trabalho de cantaria exige um compromisso entre o esforço,
por vezes vigoroso, e a delicadeza que são necessários para esculpir matéria
tosca, que, pelos vistos, não será tão tosca como parece.
E pronto estimado leitor. Vamos ter que ficar por aqui.
Muitas coisas ficaram por dizer acerca do canteiro/ornatista/escultor que um
dia, decidiu vir para Montemor. Acima de tudo um Homem Bom.
Utilizamos no início destas Memórias, palavras de um grande
poeta. Apetece-nos terminar com o enorme talento oratório do Padre António
Vieira:
“Arranca o estatuário
uma pedra dessas montanhas – tosca, bruta, dura, informe- e depois de desbastar
o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem,
primeiro membro a membro, e depois feição por feição, até á mais miúda.
Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afina-lhe o
nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe
os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos,
aqui despega, ali enruga, acolá recama e ali fica o homem perfeito, talvez um
santo que se pode por no altar (…)”
Até breve
Vitor Guita
In Montemorense –
Novembro2018
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