Cláudia
Sousa Pereira
UMA FEIRA
ONDE MORRE GENTE NA ESTRADA
Tenho uma amiga que, em tempos, quando rematava as conversas sobre
as múltiplas disfuncionalidades de Portugal, assim um todo para designar
partes, exclamava: Portugal é uma feira onde morre gente na estrada! E tinha
razão.
Recuperados os corpos do desastre na
estrada entre as pedreiras de Borba, que agora descansem em paz e que as
famílias se despeçam nas cerimónias que ajudam nas despedidas definitivas, só
agora me parece o momento de passar às conversas a sério sobre o apurar de
responsabilidades e de quem terá de ressarcir os danos, aqueles que apenas
cobrem uma ínfima parte do que deve valer uma vida, equação impossível de dar
conta certa. Só agora, porque até agora, tudo – à excepção da informação sobre
o andamento das operações de resgate – tudo o que pudesse ser dito, para além
do lamento pela perda de vidas e o que apressasse as ditas operações, me
pareceu um já demasiado vulgarizado macabro espectáculo de abutres em pleno
banquete.
Mais uma vez, e desta quase
propositada e simbolicamente numa estrada de uma povoação famosa na região pela
sua Feira anual, as imagens e reportagens informativas atraíram a montagem do
espectáculo: uma feira onde morre gente na estrada… Rapidamente tantos se
precipitaram para participar que, inevitavelmente, se desumanizou aquilo que
era tudo, ao que parece, em defesa de seres humanos, os cidadãos eleitores
portugueses. Desumanizou-se para se transformar num trampolim de oportunismos
vários, com figuras disfarçadas (ou nem isso, assumindo mesmo a função) de
carpideiras. Falo dos que são, e exercem o poder de serem, contrapoder. Numa
altura em que apenas, em meu entender, o que importava era exigir que se
terminassem as operações que estão só agora terminadas. E em segurança,
sobretudo, já agora.
E agora, finda essa parte, agora
sim, quando a carne e os ossos já se enterraram, que não se despeguem todos os
sentidos do rumo que leva o apurar das causas, das responsabilidades de quem
poderia e deveria ter evitado um desastre naquela dolorosamente bela paisagem.
Ali, onde a marca, que fere, da pegada humana não pode ser apagada com um
sacrifício. Nem com o esquecimento de quem, ainda que por acidente e não por
vontade própria ou alheia, entregou a vida à terra esventrada. Não é assim que
se tratam os vivos, e muito menos os mortos que já não estão cá para serem
vistos e ouvidos. Apurem-se as responsabilidades deste, como de outros casos, e
peça-se então que todos cumpram as suas: as instituições nas pessoas que por
elas dão e se propõem a dar a cara, e o cidadão que espera que cumprir as suas
responsabilidades lhe não ponha, pelo menos, a vida em risco.
Até para a semana.
Sem comentários:
Enviar um comentário