segunda-feira, 26 de novembro de 2018

VASCULHAR O PASSADO

Uma vez por mês Augusto Mesquita recorda-nos pessoas, monumentos, tradições usos e costumes de outros tempos
         Tributo aos 60 anos do Rancho Folclórico Fazendeiros de Montemor

A dança é uma das expressões artísticas mais antigas. Na pré-história dançava-se pela vida e pela sobrevivência. Diferentes fontes arqueológicas em pinturas, gravuras e esculturas, apresentam imagens de músicos, instrumentos e dançarinos em acção.
A dança teve forte influência nas sociedades ao longo dos tempos. Como via de socialização e disseminação de cultura, proporcionou ao mundo o conhecimento sobre a diversidade cultural dos diferentes povos, especialmente através das danças folclóricas. Estas, são uma forma de dança social que se desenvolveu como parte dos costumes e tradições de um povo, e foram transmitidas de geração em geração.
A UNESCO declara que o folclore é sinónimo de cultura popular e representa a identidade social de uma comunidade através de suas criações culturais, colectivas ou individuais, e é também uma parte essencial da cultura de cada nação.
Foi em Ponte de Lima que pela primeira vez surgiu em Portugal um rancho folclórico devidamente organizado e trajado. Com efeito, o jornal humorístico “O Sorvete” que se publicava no Porto, dava a conhecer na sua edição n.º 123 de 4 de Setembro de 1892 a deslocação àquela cidade do “Grupo de Lavradeiras de Ponte de Lima.
Em Montemor-o-Novo, até meados do século passado, era hábito, durante a apanha da azeitona, das ceifas, e da tirada da cortiça, os trabalhadores organizarem os tradicionais bailaricos. Estes, eram quase sempre abrilhantados pela harmónica bocal, mais conhecida por “gaita de beiços”, e também pelo harmónio e pela concertina. Nas adiafas oferecidas pelos patrões no final dos trabalhos, também não faltava o baile.
Pelo Carnaval, eram cinco dias de folia e não podia faltar a “bailação”, principalmente nos salões do Valmeque e dos Henriques. Nestes bailes carnavalescos, em que o pessoal das “Fazendas de Montemor” participava, em vez da valsa, do tango e do bolero, eram dançadas e cantadas modas antigas, passadas verbalmente de pais para filhos, como por exemplo os”três tempos”, os “dois pulinhos”, a “polca”, e a “desgarrada alentejana”, entre outras.
O folclorista Feliciano Rabaça do Carmo depois de obter autorização  para utilizar o Salão do Monte dos Henriques, convocou vários dançarinos das fazendas para uma reunião, que tinha como objectivo criar um rancho folclórico. Luís e Joaquim Carvoeiro e a irmã Angelina, Matateu e as irmãs Leonilde e Maria Perpétua, Domingos Cinzas e a irmã Umbelina, e Idalina da Pontinha marcaram presença naquele plenário no qual foi decidido fundar um rancho folclórico. Após a deliberação, passou-se de imediato ao trabalho. Na presença do acordeonista José Antas, Feliciano Rabaça pediu aos presentes que executassem as danças e cantares oriundas das fazendas. Depois de terem registado os sons e as letras das modas executadas, Feliciano Rabaça marcou o primeiro ensaio para o Monte dos Henriques.
Sessenta e seis anos depois do aparecimento do Grupo de Lavradeiras de Ponte de Lima, a Vila Notável passou a contar com o seu representante na área da dança e da música folclórica portuguesa, ao qual foi dado o nome de “Rancho Folclórico Fazendeiros de Montemor-o-Novo” A palavra "rancho" identifica grupos de trabalhadores que desempenhavam tarefas agrícolas por conta dos proprietários das terras, e “fazendeiros”, porque a maioria dos componentes do rancho folclórico  residiam nas “fazendas” (pequenas propriedades rurais agrícolas, geralmente compostas por um monte e um terreno destinado à prática da agricultura).
O Rancho Folclórico “Fazendeiros de Montemor-o-Novo” foi fundado no ano de 1958. A sua organização e primeiros ensaios efectuaram-se no Salão de Festas do Monte dos Henriques, gentilmente cedido para o efeito pelo seu proprietário Senhor Manuel Leal, mais conhecido por Manuel dos Henriques. Ali funcionou a primeira sede do novo agrupamento folclórico, idealizado e cuidadosamente organizado por dois montemorenses resolvidos a não olhar a sacrifícios para mostrarem a conterrâneos e aos estranhos a beleza, movimento e vida das autênticas danças tradicionais do nosso povo - os senhores Feliciano Rabaça do Carmo e José Antas. Este, foi durante anos o exímio acordeonista do Rancho; aquele, foi durante vários anos o seu incansável e competentíssimo ensaiador.
Seria extenso e difícil recordar aqui o seu percurso, desde os primeiros ensaios no Monte dos Henriques à luz do petróleo, com seis pares apenas, o acordeonista e o ensaiador, até aos delirantes aplausos que lhe tributaram vinte cinco mil pessoas no Palácio de Cristal, do Porto ou à sua triunfante exibição na RTP. Lembremos somente alguns factos que estão gravados a letras de ouro no seu historial.
A primeira apresentação em público foi no 68.º aniversário do Círculo Montemorense “Pedrista”, em Janeiro de 1959. Ainda não havia fardas propriamente ditas, remediando-se cada elemento como podia. O êxito obtido foi todavia completo. A sua actuação agradou imenso aos associados e convidados da Pedrista. A simpática fadista Hermínia Silva que participou no espectáculo, convidou os “Fazendeiros” a actuarem no seu Restaurante Pôr do Sol em Benavente. Fruto do mérito, e também da empatia criada, os “Fazendeiros” eram presença assídua em Benavente, já com o cantador António José Cinco-Réis integrado no Rancho.
Em 1959 o rancho passa a ensaiar na Sociedade Pedrista, e esse facto levou Feliciano Rabaça  a   criar o Rancho Infantil “Ceifeiras e Ganhões”.

Fazendeiros na RTP
Fora de portas, a primeira apresentação fez-se no Ginásio do Liceu de Évora. Já havia parte das fardas (calçado e chapéus); o restante vestuário continuava a ser propriedade dos elementos do rancho. A exibição na Cidade-Museu agradou imenso. O êxito foi subindo sempre, à medida que se sucediam as actuações. Em 1960, entre outras, salientou-se a apresentação no Casino da Nazaré, com resultado que fez sensação. Em 1961 foi pela primeira vez exibir-se na RTP, onde voltou em 1963. Pelo facto da televisão no nosso país (inaugurada em 7 de Março de 1957) existir apenas para um número muito reduzido de portugueses, motivado pelo elevado custo dos televisores, o empresário Jaime Nogueira, instalou no Largo da República um televisor, permitindo desta forma aos seus conterrâneos, assistirem à actuação dos “Fazendeiros de Montemor”. No Largo do Almansor encontrava-se muita gente anónima amante do folclore.
A extraordinária actuação na RTP levou os responsáveis pela Feira Popular de Lisboa a convidarem os “Fazendeiros” para se exibirem naquele concorrido local, onde no dia 14 de Setembro de 1963 obtiveram mais um enorme êxito.
Nesse ano de 1963, por divergências com a Direcção da Pedrista, o rancho passa a ensaiar na Associação Operária.
Os “meninos da vila” ingressaram nos “Fazendeiros”. Pelo facto de alguns elementos fundadores do rancho terem emigrado, Feliciano Rabaça foi forçado a reforçar-se com elementos do Rancho Infantil e com outros jovens da Vila Notável: José Tivo, Fernando Emilio, Victor Guita, Primitivo Salgueiro “Boga”, Manuela Salgueiro, Chica Coveira, Natividade Rito “Vidá”, Adelaide Teixeira do Ó e a Gena, fazem parte do extenso rol de montemorenses que passaram pelos “Fazendeiros” na primeira fase.
Durante dois anos os “Fazendeiros” representaram o Alentejo em festivais de folclore, efectuados no Pavilhão dos Desportos em Lisboa.
Em 1965 o rancho deslocou-se novamente à capital a fim de disputar a eliminatória referente ao IV Festival de Folclore Nacional. O público, que enchia por completo o Pavilhão dos Desportos, pôde ver e aplaudir os vinte e três agrupamentos etnográficos que representavam as províncias da Estremadura, Ribatejo, Alto Alentejo, Baixo Alentejo e Algarve.
Feita a chamada, eles lá foram com um sorriso de confiança, e empunhando  o estandarte que levava gravado o nome da nossa Terra. Dançaram em primeiro lugar a “polca das mudanças”, seguindo-se-lhe “os três tempos”, “rodado dos quatro” e por último cantaram a “desgarrada alentejana”. Terminada a exibição, o público, de pé, ovacionou durante largo tempo o embaixador de Montemor-o-Novo e do Folclore do Alto Alentejo. Na classificação referente à nossa província, os  “Fazendeiros” obtiveram o primeiro lugar.

            Feliciano Rabaça foi levado aos ombros
A actuação ocorrida em 16 de Agosto de 1965 em São Salvador da Aramenha (Marvão), foi de tal forma brilhante e do agrado do público, que este ao ouvir o último número da sua exibição - “olha ó chico, ó chico”, ocorreu direito ao estrado onde o rancho se exibia, e levaram aos ombros o ensaiador dos “Fazendeiros” pelas ruas da freguesia, indo a população em marcha juntamente com o rancho, cantando “olha ó chico, ó chico”

Medalha de Honra para os Fazendeiros
Mas, o auge das glórias foi conquistado na Feira Popular do Porto, no Palácio de Cristal, onde preencheu exclusivamente o “Dia de Évora”. Delirantemente aclamado por vinte cinco mil pessoas (algumas das quais invadiram o palco para os abraçar), recebeu do Governador Civil portuense a Medalha de Honra da Feira Popular do Porto e um brilhante Diploma. O sucesso foi tal, que todos – autoridades e multidão popular – pediram insistentemente nova apresentação no dia seguinte, o que veio a acontecer.
O Rancho Folclórico “Fazendeiros de Montemor-o-Novo” editou 5 discos de vinil (3 na Editora Valentim de Carvalho e 2 na já extinta Editora Alvorada do Porto).
Segundo me foi relatado, por impossibilidade de renovação dos fatos e calçado, em data que desconheço, o Rancho Folclórico “Fazendeiros de Montemor” suspendeu a sua actividade.
Uma pergunta deixo no ar: no tempo em que os subsídios eram uma miragem, como foi possível alcançarem sem qualquer apoio, este brilhante palmarés?
Em Março de 1991 Feliciano Rabaça do Carmo deixou-nos. A edilidade montemorense não esqueceu o notável trabalho por ele realizado em prol da nossa Terra, e deliberou homenagear este vulto da cultura montemorense, atribuindo o seu nome a uma rua da cidade.

A segunda fase
 Em 1993 Lino Malhão movido pelo seu amor ao folclore, com determinação e vontade em não deixar morrer as tradições e manifestações populares montemorenses, lança o desafio à juventude da terra, e em conjunto, deram corpo ao ressurgimento dos “Fazendeiros de Montemor” com o apoio do Grupo dos Amigos de Montemor-o-Novo que cedeu uma dependência do Convento de São Domingos.
Com o objectivo de relatar o renascimento dos “Fazendeiros”, enviei em 22 de Setembro último um e-mail aos responsáveis do rancho, solicitando-lhes que me esclarecessem algumas dúvidas. Mas, incompreensivelmente, continuo à espera da resposta.

                Agradeço à Dona Adelaide Rabaça o empréstimo de jornais, tanto de âmbito nacional, regional e local, que relatam actuações dos “Fazendeiros”, que o seu marido carinhosamente arquivou, e que serviram de base à elaboração deste artigo.

Augusto Mesquita
Novembro/2018
           














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