terça-feira, 4 de setembro de 2018

MEMÓRIAS DO HELDER SALGADO


                                  Eu, padeiro me confesso.
Um dos ofícios que exerci foi o de padeiro, ou melhor de ajudante.
O meu pai, natural e vindo do Alandroal, aqui se sitiou, aqui casou e, em Terena, nasci eu. Foi um homem ativo, trabalhador e, em modéstia, empreendedor.
Alguém que me conheceu de perto e comigo lidou, teve um dia, a meu respeito, esta expressão: - é mesmo filho do pai -.
Em meu entender esta frase é sinónimo de uma dupla homenagem, primeiro ao meu pai, por ser quem era e a mim por ser quem sou, um fiel herdeiro da sua personalidade e dos seus atos.
A primeira compra que o meu pai fez, foi uma padaria. Havia duas padarias em Terena, lá em cima, na Vila e esta cá em baixo, na Estrada Nova, na rua João Anastácio Rosa, cujo nome da rua se julga ser de um antigo jornalista do Século, oriundo da freguesia de Terena.
O meu pai comprou esta última, a senhor do Alandroal, que partiu para Angola e se chamava Francisco da Quinta. Não cheguei a saber se este último nome era alcunha ou nome próprio. Recordo o nome dos empregados deste senhor, o tio Chico, o padeiro e o Zé Maria, o ajudante, de Bencatel, que depois vendia bolos.
O meu pai contratou um padeiro de Cabeça de Carneiro, de nome José Romão, excelente e esforçado profissional, que com o meu pai de ajudante, ganhou uma medalha de ouro, num concurso em Évora. Na delegação do Ministério da Economia.
O meu pai, sem ser oficial daquele ofício, ajeitava-se muito bem a tender, mas eu, muito novinho ainda, não posso dizer o mesmo.
Se encher o forno de lenha já requeria algum esforço, o que mais custava era varrê-lo. Utilizava-se um varejão forte e comprido, onde, a uma das pontas, se atava uma saca de serapilheira ou um cobertor velho, molhados em água, que os tornava pesados, depois com um certo jeito, acantonava-se a cinza e os resto das brasas deixadas escapar pelo esborralhador, que também não era nenhum brinquedo.
O que quero evidenciar, nesta pequena crónica recordativa, eram as minhas idas á farinha.
Não conheci outra fábrica de farinação, senão a São Paulo em Vila Viçosa.
Para fornecer a padaria de farinha ia ter com o meu avô Salgado, ao Monte, muito próximo do Alandroal. Levava cinco mil e quinhentos escudos   (5.500$00) para carregar catorze  (14) sacas de farinha, sete em cada carro. Esta operação era repetida todas as segundas feira, que coincidia com o dia de cinema no Alandroal, claro não perdi nenhum filme, e, criei um role de amigos.
Nem tudo foram rosas, tive, também, alguns dissabores.
O meu pai ordenava que nas subidas mais ingremes me descesse e auxiliasse a mula, de nome Mugina, a primeira cria da égua que comprámos para lhe vender as crias. Na ladeira de Pardais, por a considerar pouco acentuada, não me desci. A mula escorregou no alcatrão e ajoelhou. Saltei do carro e travei-o, agarrei o varal esquerdo e gritei para a mula se levantar, e, seguimos até Terena. 
Num outro dia já no alto da ladeira de Carambô, tinha-me descido e ao subir, pelo varal esquerdo deixei-me enlear na arreatas e caí, correndo o risco de ser pisado pela roda. Nessa altura a moda no calçar nos rapazes, eram as botas mexicanas, que tinham um elevado e forte tacão. No chão e quase a ser atingido pela roda, encolhi as pernas, sendo as botas pisadas.
A mula parou a pouca distância, e, eu com enorme dificuldade subi para o carro. Por este atraso, o meu avô parou e esperou que eu chegasse. Ao olhar para o pé, mandou-me tirar a bota. Quando cheguei a Terena o pé parecia um trambolho. Tiraram-me do carro e o meu pai observou o pé e mandou-me fazer certos movimentos - Não está partido, concluiu - e o inchaço acabou por desaparecer com as benzeduras - linha torcida, nem recobro, isto mesmo é que eu cozo - foi o que delas me ficou na lembrança.
Nesta recordação gravei na memória um episódio engraçado, daqueles que nos sucedem quando nos julgamos ou queremos ser mais no que em verdade somos. Tinha os meus catorze, quinze anos, um adolescente a julgar-se já homem. Naquela segunda-feira, perto da cruz do Acúrcio, em Pardais, o cantoneiro arranjava a berma da estrada. Em Vila Viçosa comprei uns óculos de sol, vaidade. Quando regressei, e, como a mula segurava melhor o carro metendo uma roda na berma, deixei-a ir esquecendo-me do cantoneiro. Quado o avistei puxei a mula, pela rédea, para dentro da estrada. Quando passei pelo cantoneiro este disse-me, - Com os óculos vês mais mal. Apanhei um calafrio de todo o tamanho.
Depois comprámos uma carrinha de caixa aberta, Austin de 1500Kg onde se passou a transportar a farinha. Foi o progresso que acantonou a mula e o carro de varais, mas que não me fez esquecer estas recordações, nem as amizades que então conquistei e ainda hoje conservo.
Hélder Salgado.
30-08-2018




 



1 comentário:

Anónimo disse...



OBS.

Com este cartão de cidadão, dá para reforçar a ideia que assim como o pão

é filho da farinha, e o lume é filho da lenha,por ora, um pai

padeiro ainda tem muitas probabilidades de ter um filho padeiro. Honra

seja pois feita a estas linhagens sem as quais História e estóreas não havia.

É,aliás, mais uma daquelas "leis da vida" quando nos aparece assim descrita

pela caneta oportuna e mensagem forte de um amigo.

Cumprimentos

ANB