A verdade é que a memória se constrói de grandes e pequenas
coisas ocorridas num passado remoto, mas também num tempo mais ou menos
recente, sendo que há momentos que funcionam como marcos de referencia ou, se
se quiser, como autênticos pontos cardeais.
Sophia de Mello Breyner Andresen deixou escrito que “as coisas do passado ficam para sempre numa
história exacta”.
Faz agora vinte anos, andávamos num vaivém permanente entre
Montemor e Parque das Nações a fim de fruir ao máximo esse extraordinário
evento que foi a Expo98.
A memorável Exposição Internacional, considerada a maior ou
uma das maiores do mundo até aquela data, transformou em muitos aspectos a face
de Lisboa e ficou na lembrança de mais de 11 milhões de visitantes nacionais e
estrangeiros.
Quem não se lembra das fotos com o Gil, dos vulcões de água,
do pavilhão da Utopia, da pala do Sisa Vieira, da torre Vasco da Gama e do
teleférico panorâmico, do exotismo dos pavilhões da China e de Macau? A Expo
foi pretexto para se construir o majestoso Oceanário, a moderna Gare do Oriente,
já para não falar da nova travessia sobre o Tejo.
A animação era constante, com concertos e espectáculos de
toda a ordem, a que se juntavam dezenas de bares e restaurantes dispersos pelo
recinto, permitindo provar os mais diversos sabores do mundo.
Quem não se recorda também dos Oralhapos, aquela espécie de
monstros simpáticos, meio humanos, meio animais, que apanhavam de surpresa os
visitantes? Ou então, ao fim da tarde , o desfile da Peregrinação pelas
principais avenidas da Expo, num cortejo de máquinas fantásticas e figuras
estranhas? O desfile terminava obrigatoriamente junto ao rio, com a exibição do
colossal Rhinoceros, besta mecânica animada por um grupo numeroso de artistas.
Se tudo isto já era razão suficiente para que a Expo ficasse
gravada na nossa lembrança, há um motivo muito particular que tornou a
experiência absolutamente inesquecível. É que em 1998, tivemos o privilégio de
sermos, conjuntamente com um grupo de jovens montemorenses, intervenientes
directos na grande festa. O grupo de Teatro da Escola Secundária de
Montemor-o-Novo, que dirigíamos nessa altura, fora convidado para actuar no
recinto da Expo, levando à cena o Poema Ecológico, peça que se enquadrava às
mil maravilhas no espírito do evento, já que a água era um dos temas dominante.
A representação teve lugar nos Jardins de Timor, um espaço cénico lindíssimo, à
beira rio, com uma área relvada e outra densamente povoada por vegetação de
outros continentes. Estava ali o cenário perfeito!
A circunstancia permitiu que todos nós pudéssemos conhecer
os bastidores da festa: os camarins, os refeitórios e outros espaços por onde
passavam os mais diversos artistas e grupos de toda a parte. A euforia de poder
gozar aquela oportunidade única fazia esquecer as intermináveis filas que era
necessário, muitas vezes, suportar. Para quebrar alguma sensação de tédio,
havia a animação da rapaziada que, ao som de batuques, esfuziava de alegria.
A actuação dos jovens actores de Montemor agradou à equipa
de programação da Expo, que voltou a convidar o grupo para estar presente no
dia da Festa de Encerramento. A Exposição fechou portas já na madrugada do dia
1 de Outubro de 1998, com um espectacular fogo de artifício.
A paternidade da idéia da Expo, por alguns considerada uma
obra megalómana e despesista, pertenceu a António Mega Ferreira e Vasco Graça
Moura. Pretendia-se daquele modo, assinalar os 500 anos dos Descobrimentos
Portugueses.
Como é sabido o espaço escolhido foi a zona Oriental de
Lisboa. Antes da existência do Parque das Nações e da Exposição, o cenário era
bem diferente. Muitos dos nossos amigos leitores lembrar-se-ão. De que a
paisagem de toda aquela área tinha características suburbanas, com algumas indústrias,
refinarias, contentores, entulhos, terrenos semiabandonados. Aliás, aquele lado
nascente da Capital foi descrito, noutras épocas de forma pouco elogiosa,
quando comparada com a velha Lisboa das Crónicas. Almeida Garret, por exemplo,
nas Viagens na Minha Terra, escrevia há mais cento e setenta anos: “da fundição para baixo tudo é prosaico e
burguês, chato, vulgar e sensabor”.
As obras que se iniciaram em 1993, transformaram em cerca de
cinco anos, muitas dezenas de hectares. Um gigantesco trabalho de reabilitação
veio revolucionar aquela parcela da cidade.
Os trabalhos duraram até à última hora. Na véspera, segundo
notícias que ia m saindo, ainda havia pinturas e outras obras por fazer. Os
mais cépticos afirmavam que não haveria inauguração na data prevista.
Enganaram-se porém. No dia 22 de Maio de 1998, a Expo abriu as portas a uma
multidão que, durante 132 dias, rumou até ao Parque das Nações. Cerca de centena
e meia de bandeiras de diversos países ali presentes eram testemunho da
universalidade do acontecimento. Os portugueses tinham mostrado ao mundo que,
quando querem, são capazes de realizações extraordinárias.
Antes de terminarmos estas Memórias, permita-nos, estimado
leitor, que demos um salto no tempo, até aos dias de hoje: Volvidos vinte anos,
o Poema Ecológico voltou à cena, mas agora representado pelo Grupo de Teatro da
Universidade Sénior do G.A.M.
Nos dias 22 e 23 de Junho, os nossos seniores apresentaram a
peça no Terreiro do Convento da Saudação. A esplanada de Verão do Espaço do
Tempo encheu-se de publico que não poupou aplausos.
O texto da peça é inspirado no texto do Chefe Seatle e numa
outra missiva bem mais contemporâneas, da autoria de Júlio Roberto. As duas
cartas são de uma poesia, de uma profundidade e de uma actualidade
absolutamente extraordinárias. Numa altura em que as alterações climáticas, a poluição
dos rios e oceanos, a destruição das florestas e outras questões ambientais
estão na ordem do dia, o Poema Ecológico faz cada vez mais sentido.
Em 1854, o Presidente americano tinha feito uma oferta de
compra de uma grande extensão de terras índias, em troca da criação de uma
reserva para o povo indígena. A resposta do Chefe Seatle levantou questões muito
pertinentes.
Em muitas outras sábias afirmações, o índio dizia que o ar
tinha um valor inestimável para o seu povo, e que o homem branco parecia não
estar consciente do ar que respira: “Homens,
árvores, animais, todos partilham o mesmo alento”.
Noutro ponto da carta, Seatle afirmava que, para os índios
os rios eram sagrados e que, portanto, deveriam ser respeitados e tratados com
a mesma doçura com que se trata um irmão, e alertava: “Poluam os vossos leitos, e uma noite morrerão afogados ns vossos
próprios resíduos” ou “ Tudo o que
acontecer à Terra acontecerá aos filhos da Terra”.
E pronto, amigo leitor. Boas férias e, se for caso, que
sejam num rio ou numa praia sem poluição.
Até Setembro
Vitor Guita
Transcrição do Montemorense Julho 2018
– Autorizado pelo Autor
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