quinta-feira, 2 de agosto de 2018

LUGAR AO SABER

          Baseado em Textos do Dr. Alexandre Laboreiro.
                                   Portuguesas com História

                        Guiomar Nunes
Qual é o primeiro dever do homem? A resposta é breve: ser ele mesmo
Henrik Ibsen (dramaturgo Noruegues 1828-1906)

Ouviu, e ouviu…aguentou as negações daquele a quem chamava marido sem nunca ter consumado o casamento, nem tão-pouco partilhado a mesma casa. Ele dizia que não, berrando, ali mesmo, na igreja, perante Deus e o Bispo de Coimbra. Jurara que nunca com ela se casara, que não a amava, nem sequer a conhecia. Mas ela serenamente, provou o contrário, revelando documentos íntimos e oficiais. O prelado escutou os pares, leu as provas e ordenou que se juntassem marido e mulher. O rapaz, a quem a família já arranjara outro consórcio, talvez por nada querer com descendentes de Judeus, ficou transtornado. Então a rapariga pediu licença ao Bispo para dar uma palavrinha ao moço. Afastaram-se os dois, não se percebeu a conversa, mas ela, de repente, fez um gesto brusco com o braço e ouviram-se gritos. Vingara-se de Heitor, assim, com uma pequena navalha – rasgando-o de orelha à boca –enquanto episódio temático que conduziria Guiomar, no futuro, a um lugar privilegiado na inspiração dos poetas, bem como assumiria a situação de figura relevante, nas análises históricas do final da Segunda Dinastia –nos estudos historiográficos dos nossos analistas (ao debruçarem-se sobre os factos que, de forma imediata, antecederam a perca da nossa independência).
E quem seria esta Guiomar rebelde que viria a ser “internada num convento”? Era filha do nosso primeiro Sábio – de renome internacional (no âmbito da história da nossa ciência); filha do Dr. Pedro Nunes (matemático, filósofo e cosmógrafo-mor) – inventor do nónio, que viria a permitir ao ser humano, a possibilidade de medir – com mais precisão – os espaços; com forte implicação no âmbito da condução náutica. Pedro Nunes – figura importante nos reinados de D. João III, D. Sebastião e Dona Catarina de Áustria.
Sendo assim, não teria Guiomar tido quaisquer problemas financeiros na sua infância: atendendo a que o pai, Pedro Nunes, para alem da figura de relevo na Corte, descendia de uma família privilegiada de Judeus – tendo o seu avô sido médico pessoal do Rei. Porem, Guiomar seria fruto de um verdadeiro amor: entre o Pai, Pedro Nunes, e a Mãe (castelhana, que Pedro Nunes conhecera em Salamanca, em 1523) – onde Pedro Nunes viveu algum tempo, em pesquisas na Universidade Salamantina; tendo Pai e Mãe regressados juntos a Portugal. E seria desse amor verdadeiro (entre Guiomar, a Mãe e Pedro Nunes, o Pai) – que nasceria a “nossa” Guiomar-Filha, que herdaria o nome da Mãe.
Ora, Heitor (o  renegado “homem de duas caras”, para Guiomar) vivia com a mãe na mesma rua, e nas proximidades da casa onde Guiomar vivia com o pai. Essa vizinhança despoletaria a aproximação, o namoro, as galanterias, as cartas de amor, a assinatura do compromisso do casamento. Porem, a família do rapaz – desprevenida – reagiu mal ao namoro entre Heitor e Guiomar; mandou o rapaz para fora da cidade, e arranjou-lhe mesmo um outro casamento (de maior conveniência). Assim perante tal incongruência, Guiomar e Pedro Nunes exigiram que se cumprisse a promessa. Perante isto, os noivos foram chamados à presença do Bispo de Coimbra. Assim, a Igreja achava-se repleta de povo. Porem em lugar de destaque, encontraríamos o Bispo, alguns dos seus oficiais, dois ou três criados, o jovem citado para responder em justiça canónica, a queixosa (a nossa jovem Guiomar) e o irmão desta (Pedro Áreas) – que a acompanhava em lugar do sénior Pedro Nunes. Por sua vez Heitor de Sá ( rapaz) fez-se acompanhar por muitos familiares, que não se cansavam de gritar o apoio ao rapaz.
Ora por sua vez, Manuel de Menezes personificava a justiça eclesiástica, fazia perguntas: Guiomar diz que sim, que Heitor é o marido; este argumenta em contrário, exalta-se e grita-lhe ofensas.
Guiomar mostrou ao Bispo duas cartas de amor e o contrato de casamento, ante seu pai. Enquanto Manuel de Menezes lia as provas, o povo murmurava e os Sá provocavam estardalhaço. E pior se viu, quando o prelado deu razão à esposa e sentenciou o marido a recebê-la no prazo máximo de seis dias. Aí porem, Heitor berrou ainda mais, lançou injúrias – recusava-se a aceitar a decisão. Então, Guiomar – pelo contrário – mantinha-se calma, e até pediu ao Bispo uns momentos para dar uma palavrinha ao marido. Assim, mal se chegou junto dele, sacou por debaixo do manto o canivete, e desferiu-lhe um golpe na cara. A arma tinha-a no estojo, à cintura. Pode parecer premeditado, mas –à época – era comum cada pessoa andar com um objecto cortante (da família das facas). Guiomar desferiu o golpe, e lançou-se – de joelhos- aos pés do Bispo (tendo porem antes ajoelhado face ao altar, pedindo misericórdia.)
O Bispo por sua vez, previu a vingança da família de Heitor – que exercia forte pressão nas autoridades administrativas laicas.
Porem, Guiomar decide – convictamente- ingressar num Convento e vivenciar a sua existência, à plena luz da crença em Deus. E assim ingressaria no Convento de Santa Clara, em Coimbra (com pleno assentimento paterno),
Em contrapartida, no âmbito de uma arrogância (até mesmo catalisada pelo ódio ao facto de Guiomar ter ascendência judaica) Heitor, os seus amigos, parentes e apoiantes arquictetavam ataques, esperas e desforras de vingança – a ter lugar em “esperas” no trajecto entre o Mosteiro e a ponte de Santa Clara. Ora a narrativa sobre o acutilamento (ou golpeamento) seria escondida  ou “apagada” durante decénios – a fim de não molestar casos de injustiças nunca justiçados. O seu conhecimento mais claro ocorreria nos finais do séc. XIX; premonitório: é a Democracia que se cimenta.
José Alexandre Laboreiro
In “Montemorense” – Julho 2018



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