quarta-feira, 4 de julho de 2018

MEMÓRIAS CURTAS - Vitor Guita

Junho está aí de novo, pos então, e com ele a chegada do estio, do tempo da ceifa, das tiradas de cortiça, dos santos populares, da Feira de S. João, da época dos exames…Tudo temas aliciantes para avançarmos com mais umas Memórias Curtas. A dificuldade está na scolha.
Ainda sugestionados pela nossa última crónica, que se ocupou do movimento estudantil em França, no Maio de 68, e incentivados pela recente festa anual dos antigos alunos do Externato Mestre de Avis, que teve lugar na Pedrista, escolhemos recuar até aos anos do liceu, melhor dizendo, ao tempo do colégio.
Se em França, no país das liberdades, os estudantes contestavam a imposição de certas regras e exigiam alterações profundas e imediatas, por cá a mudança levaria mais algum tempo.
A voz doce da cantora Françoise Hardy tocava nos corações mais sensíveis, sobretudo os dos adolescentes. 
A letra da famosa canção “ Tous les enfants et les filles de mon âge” apelava a um novo tipo de relacionamento entre rapazes e raparigas, caminhando pelas ruas de mãos dadas, olhos nos olhos, enamorados, livres e felizes…
Em muitas escolas portuguesas as regras do jogo continuavam a ser, nos anos 60, rapazes para um lado e raparigas para outro. Nada de misturas.
À semelhança de muitos outros estabelecimentos de ensino, o nosso colégio não fugia a essa regra. No pátio do recreio, uma densa barreira de verdura estabelecia uma espécie de apartheid. Era extremamente difícil qualquer aproximação física e mesmo o contacto visual fazia-se apenas através de uma cancela e de um arco de cedro. Outras vezes, espreitava-se por entre uma zona mais desfalcada de arbustos. Extramuros a vigilância era igualmente apertada, Havia sempre uns “olheiros” que, ao encontrarem na rua um par de namorados, não resistiam à tentação de fazer chegar a informação aos ouvidos do director. Ai da menina que se revelasse “desalvor(e)ada ou levianazinha.
Em 1964, numa festa do Externato Mestre de Avis, os alunos parodiavam a situação numa desgarrada humorística:
O papagaio do colégio,
Que anda sempre a espreitar,
 para ver se apanha algum
Com uma menina a falar.
Mais espreitadela, menos espreitadela, o facto é que o Mestre de Avis marcou uma época no ensino em Montemor e, atrevemo-nos a dizer, a nível regional. Correndo o risco de repetirmos coisas já anteriormente ditas, sublinhe-se que o colégio de Montemor era conhecido pela boa preparação que dava aos seus alunos, nomeadamente para a realização dos exames no Liceu de Évora. Longe de se pensar em rankings das escolas, sucedia que, quando saiam os resultados dos exames nos claustros ou à porta do Liceu, alunos, pais e professores exultavam com as classificações obtidas pela generalidade da rapaziada. Nessa altura um quinze ou um dezasseis já eram consideradas notas extraordinárias.
Se recuarmos umas décadas, quem quisesse fazer exame de admissão ou completar os vários ciclos do ensino liceal tinha que percorrer os cerca de trinta quilómetros de asfalto que separavam Montemor da cidade de Évora, A seguir a S. Matias. O alcatrão dava lugar a um ruidoso piso de paralelepípedos. A súbita trepidação e o ruído dos pneus faziam acelerar as batidas do coração. Évora estava cada vez mais perto e aproximava-se a hora de todo o nosso saber ser posto à prova.
Quem não possuía carro, sujeitava.se aos horários espaçados das carreiras da Setubalense ou pedia boleia a um colega mais afortunado.
Nós aproveitávamos frequentemente a generosidade de alguns amigos, nomeadamente do João Carlos Alfacinha e da família. O Dr. Vicente fazia o favor de nos levar no seu Austin de cor clara e estofos avermelhados. Manhãzinha cedo, lá estávamos nós à porta do médico, sempre com um olho na casinhota do Casanova, ainda assim o cão não viesse de lá para nos abocanhar. Infundados receios. O Casanova nunca nos beliscou.
 O médico era cuidadoso na condução. O andamento do automóvel dava para apreciar calmamente a paisagem, não fosse o nervoso miudinho que nos atormentava só de pensar nos exames. Já sabíamos o caminho de cor: Ponte de Évora, Pégoras, Santa Sofia, Patalim, Alto da Abaneja, S. Matias, S. José de Pera Manca e, finalmente, a cidade muralhada.
Se as provas eram à tarde, tínhamos que suportar um calor tórrido, que fazia derreter o piso alcatroado. O alcatrão e não só. Comprámos, certa vez, uma caneta de tinta permanente, na feira de Maio, a um vendedor com sotaque espanholado. O feirante oferecia três canetas da marca Erro a quem comprasse apenas um exemplar. A ingenuidade própria da idade levou-nos a embarcar no negócio.
Sucedeu que, numa das viagens vespertinas a caminho de Évora, debaixo de um sol inclemente, a caneta cinzenta começou a curvar, a curvar assemelhando-se a uma pequena banana madura. Foi com ela que tivemos que fazer a prova, até que, mesmo no fim, o depósito da tinta rebentou. Deixamos o resto do episódio à imaginação do amigo leitor.
A experiencia dos exames em Évora era penosa. A solenidade do momento obrigava-nos a enfiar fato, camisa e gravata. Os sapatos eram os mais novos que havia, por vezes apertados que nos fazia escorregar pela íngreme e polida calçada que acedia ao liceu. Não sabemos bem porquê, mas temos a sensação de já termos falado nisto, tal foi o trama da situação.
Um dos momentos considerados mais positivos ou mesmo desejados era o tempo de intervalo entre duas provas. Durante alguns minutos eramos apaparicados por familiares e amigos, como aqueles boxeurs que, a meio do combate, Têm que ser refrescados e massajados. NO nosso caso, estávamos autorizados a ir ao bar do Liceu comer e beber aquilo que mais desejássemos. Nesse dia era uma festa. Tínhamos direito a pedir bolos, gelados, refrigerantes, sanduiches. Tudo à descrição. Guardamos belas recordações especialmente dos sumos borbulhantes, super-frescos: Sumol, Fruto Real, Laranjina C. Esta última merecia a nossa especial simpatia, pela garrafa redondinha e rugosa como a casca de um citrino.
Voltando de novo ao colégio, o Externato Mestre de Avis, que abriu portas em 1953, dispunha de salas confortáveis, laboratórios, um amplo e bem equipado ginásio, uma sede para rapazes e outra para raparigas. O recreio, como foi dito, era distinto para os dois sexos. 
O moderno complexo estava ainda equipado com ringue de patinagem, caixa de saltos, campo de jogos, secção infantil. Depois, surgiu um belíssimo conjunto de piscinas alimentadas por um poço gigantesco e dispondo de uma estação de tratamento de águas. Enquanto as piscinas não abriam à generalidade da população escolar, alguns arriscavam uns mergulhos clandestinos durante a noite. Outos igualmente impacientes, iam parodiando em verso:
Ai quem me dera
As piscinas recordar,
Onde eu, um dia,
Sonhei que andava a nadar.
A estudantada, com o seu olhar crítico, sempre gostou de caricaturar a escola e os seus mestres. Há imagens que perduram para toda a vida. Despedimo-nos com algumas estrofes dedicadas a um dos professores mais populares e sábios que leccionaram no Mestre de Avis. Referimo-nos ao Dr. Gabriel Paiva Domingues, que está certamente na lembrança de muitos montemorenses.
Bata branca, ponteiro em riste,
Ceroulas a sair da bota.
Nunca ninguém o viu triste.
A seguir ao verbo être, vinha sempre uma anedota

Gabriel, nome de arcanjo,
Tinha um saber superior.
Não era propriamente um santo,
Mas um grande, um enorme professor.
E pronto. Ficamos por aqui, evocando um dos nossos grandes mestres.
Até breve
Vitor Guita
In Montemorense- Junho 2018- Transcrição autorizada pelo Autor


1 comentário:

Anónimo disse...

OBS.

Dá gosto e uma imensa saudade ler coisas assim onde vem, literariamente falando, ao de cima quase tudo o que era bom, tudo o que era dificil e tudo o que nos marcou dando por isso sentido às aprendizagens da vida que fomos fazendo.Trazendo-nos, até hoje, bem ensinados e suficientemente educados.
Não sou de Montemor. Sou do Alandroal onde também existiu um colégio assim, o Externato Diogo Lopes Sequeira. Embora sem a escala e a grandeza do seu colégio de Montemor com piscina e tudo...e sem apartheid.
Enquanto lá andei,no EDLS, havia um professor que era médico e um que era veterinário. Assim como havia uma excelente professora da Primária, em Matemática, e até havia uma licenciada em Românicas que dava Português com um andamento superior vinda da Faculdade de Letras de Lisboa (posteriormente a nossa escola).
Significativo eram também que os resultados no Liceu de Évora embora não sendo excepcionais também eram acima da média quase bons. Tivemos também Recitas e Paródias no fim dos anos escolares onde se apresentavam os talentos que todos os adolescentes transportam dentro de si. É uma questão, ontem como hoje, de os ver desabrochar e pôr em acção.
Rosália e Luisa foram duas das nossas ninfas... só me estou a lembrar destas.
Para não destoar do seu magnífico texto, vou só acrescentar que se não fossem estes Externatos, sem grandes fins lucrativos, maior teria sido o atraso de um país como o nosso (sem Serviço Nacional de Educação- SNE) e maiores teriam sido as perdas educativas e sociais do tempo e nas decadas de F. Hardy... ou da Simone ou do eborense Francisco José.
Mesmo para finalizar, digo que se dá o caso das nossas gerações terem sabido preservar as boas memórias de um tempo em que a vida era bastante difícil para quem, por gosto e por amor nos pariu, foi educando e foi instruindo numa época em que não havia tanta intoxicação material.
Para dizer e não parecer que sou mais um saudosista havia mais beleza do que fealdade nas relações sociais e humanas do que haverá hoje... E havia mais gaiatos e mais gaiatas.Assim como havia uma maior convivência com quem nos rodeava e nos dava um certo sentido de orientação para o futuro.
Um futuro que correu tão depressa que hoje já parece um passado distante
De facto, todas as epocas tem a sua imagem de marca. A nossa foi a que descreve sem quaisquer lagrimas no canto do olho.
Foi belo,foi também injusto,foi participado, não foi democrático mas foi
melhor assim!
Cumprimentos
ANBerbem