segunda-feira, 7 de maio de 2018

MEMÓRIAS CURTAS - Vitor Guita

São os loucos de Lisboa
Que nos fizeram duvidar
Que a terra gira ao contrário
E os rios nascem no mar.”
Em Abril, fomos de novo até à ribeira. Num dia frio e chuvoso, pusemo-nos a contemplar o castelo, o Alamansor e a ouvir música, refastelados no conforto do carro. Rui Veloso e a Ala dos Namorados cantavam “os loucos de Lisboa”. Às tantas começámos a trautear, gesticulando essa bela canção que passava na rádio. Quem por ali transitava havia de pensar que não estávamos no nosso perfeito juízo.
Atentámos bem na letra da cantiga, que nos pareceu estar em contradição com a realidade que tínhamos diante dos nossos olhos. O mundo pode andar às avessas, estar de pernas para o ar, mas o Almansor, “o rio da minha aldeia”, corre, com toda a certeza para o mar.
Já que estávamos em maré de fantasias, idealizámos a folha A4 que leváramos para rabiscar as  nossas Memórias transformada num pequeno barco de papel, daqueles que fazíamos quando eramos miúdos. Depois, imaginamos o baú das nossas memórias completamente à deriva, arrastadas pelas águas do rio. Sem rumo pré-definido, deixamo-nos ir na corrente. Onde seria que iríamos parar?.
Passamos por baixo da velha ponte de ferro e da ponte de Lisboa. Vimos antigos moinhos já parados. Lá mais à frente o rio ganhou volume quando a Ribeira de lavre se lhe quis associar. A união faz a força. Ao longo do curso do rio, fomos ouvindo chamar-lhe Ribeira de Canha, Ribeira de Santo Estevão e de novo Rio Almansor. Perto de Samora Correia, de braço dado com o Sorraia, desembocámos no Tejo. Em breve achamo-nos naquele estuário imenso que mais parece um pequeno mar e a que alguém chamou o “Nilo Português”. Cada vez mais perto da foz, frente a Cacilhas, decidimos dar uma guinada em direcção ao Alfeite, em cuja Base Naval passamos alguns dos momentos mais marcantes da nossa existência.
O facto de estarmos em Abril fez-nos recuar até 1974, à madrugada do dia 25.
Cada um viveu o 25 de Abril á sua maneira e terá certamente memórias para contar.


 Nós cumpríamos serviço militar na Força de Fuzileiros do Continente, comandada, nessa atura, pelo então Capitão de mar-e-guerra José Baptista Pinheiro de Azevedo.
A esca determinou que Fôssemos um dos oficiais de serviço à aquela unidade militar. Numa das passagens pela messe, talvez por volta das 3 horas da madrugada, fomos surpreendidos pela telefonia, que emitia comunicados em nome do Posto de Comando das Forças Armadas. O locutor anunciava que as Forças Armadas tinham iniciado uma série de acções que visavam libertar o País do regime há logos anos no Poder. O mesmo Comando pedia às forças militarizadas e policias que não interviessem para, assim, se evitar derramamento inútil de sangue. Ainda segundo o comunicado, as forças militares deviam manter-se nos quartéis e aguardar ordens do Comando do MFA. Foi ainda transmitido que todos s militares deviam apresentar-se imediatamente nos seus aquartelamentos e aguardar instruções. Além disso, solicitava-se aos médicos e enfermeiros a sua comparência nos hospitais, para o caso de haver efusão de sangue. Pedia-se à população que se mantivesse calma e recolhida nas suas residências.
Fomos acordando os oficiais e outro pessoal que se encontrava na unidade. Depois começou um corrupio de viaturas e de marinheiros aporta de armas. Eram oficiais, sargentos e praças que se iam apresentando. Foram dadas ordens para que, à semelhança de outras unidades militares, a Força de Fuzileiros do Continente entrassem de prevenção.
A tensão aumentava a cada minuto. Respirava-se um ambiente de grande incerteza. A sensação que tínhamos era a de que estávamos prestes a viver um acontecimento que poderia mudar o rumo da História de Portugal.
Não conseguimos precisar as horas do dia, mas a determinada altura soube-se que forças de artilharia tinham saído de Vendas Novas em direcção a Almada para ocupar o morro do Cristo Rei. O conflito entre militares podia estar iminente. Competia à Marinha controlar a barra do Tejo. Era por ali que entravam e saiam os navios. Além do mais sabia-se que estava uma fragata fundeada no Tejo, pronta para o desse e viesse. Pairava no ar a possibilidade dos fuzileiros terem de intervir nos acessos à ponte e noutros lugares. Tanta gente jovem a saber manejar com armas, explosivos…Temia-se o pior. À mínima precipitação, teria havido 25 de Abril, mas não seria a mesma coisa. Apesar de estarmos tão perto do epicentro da revolução, sabíamos pouco mais do que aquilo que era transmitido pelas rádios e televisão. Dentro do quartel vivia-se como se estivéssemos em clausura, à espera de ordens. Só os altos comandos estavam a par de toda a situação.
Na tarde do dia 25, começou a sentir-se alguma descompressão. A coluna de Salgueiro Maia tinha neutralizado algumas forças opositoras e ocupado o Quartel da GNR, no Largo do Carmo. O movimento revolucionário ia consolidando posições, o povo estava na rua e chegavam notícias de que tinha havido rendição no Carmo. Já perto do anoitecer, foi recebida uma mensagem relâmpago, onde se dizia, de forma muito telegráfica, que a Marinha reconhecia o novo regime saído do 25 de Abril.
Como é sabido, Pinheiro de Azevedo deixou o comando da Força de Fuzileiros para integrar a Junta de Salvação Nacional, de que faziam parte o General Spínola e outros oficiais. A altas horas da noite, Spínola lê a Proclamação da Junta perante as câmara da RTP.
Entretanto, unidades de fuzileiros eram chamadas para ocupar as instalações da PIDE/DGS. Outras foram escaladas para libertar os presos políticos e para desempenhar mais umas quantas missões. Alguns dos almirantes e generais mais influentes do anterior regime foram, mais tarde, trazidos para a messe de oficiais, devendo os subalternos mudar de quartos, para o rés-do-chão.
Na parada, no refeitório e noutras instalações das praças, sentia-se algum alvoroço. Nos plenários de marinheiros, reivindicava-se, entre outras coisas, igualdade de tratamento para todo o pessoal da Marinha. Alguns exigiam o fim das messes e defendiam instalações iguais para oficiais, sargentos e praças.
Por outro lado, circulavam na unidade, de uma forma mais ou menos clandestina, panfletos de forças políticas que afirmavam não estar em curso nenhuma revolução. Segundo essas forças, “a camarilha spinolista era igual à camarilha marcelista” e outras afirmações do género.
Os grupos e as idéias fervilhavam por todo o lado, mas havia que manter alguma organização dentro das unidades militares, nomeadamente nas da Marinha.
Já que falámos de Marinha, este ramo das Forças Armadas acabou de comemorar, em 2017, os seus 700 anos de existência, É mesmo considerada a mais antiga ou uma das mais antigas marinhas do mundo.
A primeira batalha naval de que há conhecimento deu-se ao largo do Cabo Espichel, durante o reinado de D. Afonso Henriques. A esquadra portuguesa era então comandada por D. Fuas Roupinho.
Foi o Rei D. Dinis quem decidiu, pela primeira vez, dar uma organização à nossa Marinha. Através da Carta Régia, no ano de 1317, o Rei nomeou o genovês Manuel Passanha como primeiro Almirante do Reino.
Como vê estimado leitor, começámos a escrever num tom ligeiro, cheio de fantasia, e acabámos fazendo referências à História, e a outras coisas muito sérias. Assim aconteceu
Até breve
Vitor Guita
In Montemorense edição Abril 2018 – Transcrição cedida pelo Autor


Sem comentários: