O Estranho Caso De Frio Do Norte
Uma trapalhada
com alguns anos começa agora a bater certa…, sempre bateu certíssima…, mas com
rapaziada desta não há relógio que não se atrase… ou pare. Até o tempo pode ser
congelado… o tempo de muitos factos que uns poucos não querem que conte… ou
desconte.
Imagine-se
que há quem queira fazer desaparecer o tempo…, limpar o calendário, sem mais
nem menos…, tal dia… às tantas horas e tantos minutos… no trigésimo milionésimo
segundo não houve tempo, nada aconteceu. Só que o tempo da verdade nem sempre
está de acordo…
…
Zézito
adoece
Um fenómeno
paranormal aconteceu naquela tarde em casa de Dona Laura.
Era, talvez,
a tarde mais quente e abafada daquele estio que teimava em empurrar todo o
calor do mundo para a aldeia de Frio Do Norte, encravada entre as serranias da
Cuscovilhã e do Fundadão.
Dona Laura
fora buscar quatro mantas…, quatro…, arrecadadas desde o início da Primavera,
que também já fora quente, no guarda fato do sótão, para aquecer o pobre do
Zézito, acometido desde essa tarde por um frio mais gélido que o despejado do
Polo Norte em plena invernia, atingindo-o com particular sofrimento nos fundos
do espinhaço.
Zézito tremia
que nem varas verdes, sob o olhar preocupado e intrigado da mamã Laura: um
tremedor tão intenso não batia certo com o clima sufocante daquela tarde em
Frio Do Norte. E já fora solicitada a pôr-lhe dois sacos de água quente nos
fundos do referido espinhaço.
-Ó mamã…,
deite-me mais uma mantinha, por favor, que só eu e Deus sabemos o que este meu
frio interior me está a castigar…, balbuciou Zézito com a voz entrecortada pelo
bater dos dentes e do queixo.
«Ó filho…, tu
exageras…, são esses teus nervos quando te surge o mais pequeno probleminha na
vida. Põe os olhos no teu tio de Cacais…, põe os olhos nele…, Zézito…, com
aquela idade não há frio nem estio que o apoquente…, e desde que comprou o “Cavallino
Rampante” anda sempre descapotável, faça sol ou faça chuva!».
-Ó mãezinha…,
o meu tio tem um animal equídeo em casa?..., quem sabe se foi por isso que o
meu primo se pirou para a Chinatong…
«Ó Zézito…,
estás mesmo a delirar com esse “mal do frio”…, Cavallino – automóvel de luxo…,
aqui para nós…, onde vai ele arranjar a massa?».
-Ó ma…ma…mã…,
então tem algum mal o ti…ti…tio andar a governar-se?... mais uma mantinha por
favor… e também mais um saquinho de água bem quentinha, que me sabe tão bem nos
fundos.
«ÁÁÁÁÁÁ»,
gritou Dona Laura do fundo do corredor dos quartos, que dava para uma saleta
anexa à cozinha da mansão dos Susas, onde tinha ido encher um saco de água
quente que deixou cair no soalho com grande estardalhaço…, «é gripe 3A sem
dúvida alguma… vamos já avisar o Dr. Jorge para se pôr em campo no ataque a
esse maldito vírus da 3A».
Dona Laura
falou na direcção da porta do quarto de Zézito, sem se atrever a aproximar do
aposento: «fica deitadinho meu filho…, a mamã vai procurar o Dr. Jorge para te
vir consultar».
Zézito, abafado por três mantas da serra, até à ponta
dos cabelos, ainda contrapôs: -ó mamã… e o saquito de água quente?…
Dona Laura já
não ouviu este último pedido do filho, com tonalidade de lamechas, pois tinha
saído porta fora, movida pelas suas desgastadas e sempre dolorosas articulações
dos joelhos, mas de momento animadas por uma vitalidade e força poderosas,
deixando a léguas de distância os remédios do Dr. Jorge.
O Dr.
Jorge diz que não é caso para ele…
Naquela
abafada tarde em que nada acontecia, mas onde tudo podia acontecer, em Frio do
Norte, a criada do Dr. Jorge apanhou um tremendo susto com a presença
fantasmagórica de D. Laura que tinha devassado a casa por ali a dentro, e
chegara à cozinha onde a serviçal arrumava a loiça do almoço. Seria difícil saber
qual dos sons lançou mais decibéis para o éter: se o credo, Jesus, Maria,
Santíssimo… urrado pela boca de Feliciana, se o estardalhaço da pilha de pratos
que lhe saltaram das mãos para se espatifarem no chão.
-Credo Dona
Laura…, quem vai ouvir o Dr. Jorge quando souber que o seu serviço de
estimação tem mais de metade das peças
escaqueiradas?!
«Credo digo
eu rapariga, se não me dizes onde anda o senhor doutor… preciso que ele vá
consultar o meu Zézito, que não se encontra nada bem». Dona Laura fez uma
gesticulação facial de cara medonha, ao mesmo tempo que deixava escapar um
espirro estridente, o que levou Feliciana a recuar dois passos e a esconder a
boca e o nariz com a ponta do avental.
Apontando
para a porta da cozinha que dava para o jardim da mansão do médico, como que a
empurrar Dona Laura para fora da habitação, disse em voz de se ouvir bem por
toda a casa:
-O senhor
doutor Jorge anda a apanhar borboletas… e não gosta de ser interrompido…
«Ora… ora…
mulher!... o meu Zézito doente e ele anda a apanhar borboletas… eu já lhe dou
as borboletas…». E dito isto Dona Laura atravessou a porta da cozinha, com o
nariz empinado, e num ápice desapareceu da vista da preocupada Feliciana que
aproveitou para lhe seguir o rasto e pôr-se a jeito de ouvir a conversa entre
Dona Laura e o Dr. Jorge.
O clínico
falou com ar despreocupado, enquanto lançava a rede a mais uma borboleta: -ó
Laurita…, isso da gripe 3A é uma invenção daqueles malucos da DGI (Direção
Geral das Inventonas)… que não têm mesmo nada para fazer. Digo-te… a doença do
teu Zézito é outra… e não é doença que esteja nos cardápios da medicina. Tens
que ir a Lisboa falar com a Dona Candice I
Almedina, pois só ela tem poderes para resolver o complicado problema do teu
Zézito… Vai… e que Deus te acompanhe…
Dona Laura,
que era uma mulher inteligente, percebeu que o médico estava a falar a sério,
embora andasse a apanhar borboletas com um calor do caraças, o que mais
acentuava a cara de sabichão que toda a gente lhe conhecia.
Viagem
até à Capital
Foi o tempo
de ir a casa deixar o Zézito em “sossego”, porque o seu problema era complicado
mas não era doença ou qualquer pestilência maliciosa, assim o dissera o Dr.
Jorge, arrumar a trouxa e fazer-se ao comboio no Fundadão, rumo à capital.
Embora
viajasse na qualidade de mãe do Zézito, o 6º mais elegante Ali á á de que há
memória, a chegada de Dona Laura à cidade aconteceu sem qualquer sururu e, sem
mais delongas, ei-la a bater à porta do “Dona
Candice I Almedina Paranormal” nome pelo qual era
conhecido o gabinete da vidente mestra e seus acessores
Assim como
tinha entrado em casa do Dr. Jorge sem ser anunciada, Dona Laura entrou de
rompante no tal “Dona Candice I Almedina Paranormal”, abriu a porta desengonçada
(de tantas andanças para cá e para lá) do gabinete de Dona Candice, e dá de
caras com a dita em pose de transe histriónico, só podia ser, pois diz-lhe sem
papas na língua: « Dona Laurita…, estava neste preciso momento a adivinhar a
chegada de V. Exa., mãe do nosso querido e bem amado líder Zézito o 6º mais elegante».
Dona Laura
ficou encantada com os dotes de adivinhação de Dona Candice, o que lhe
transmitiu logo a certeza de que era ali que residia a resolução do grave
problema paranormal que afetava seu Zézito e sobre o qual o Dr. Jorge, por mais
boa vontade que tivesse, não pescava qualquer tipo de conhecimentos.
«Ora vejamos
então a natureza e transcendência do problema, ou seja, da grande trapalhada,
em que o “nosso” querido Zézito está metido». O enfase dado por Dona Candice à
palavra “nosso”, fez sentir no coração da mãe Laura que a chefe do dito
gabinete tinha por Zézito uma alta estima e consideração, como se de um filho
seu se tratasse.
E quando Dona
Candice I Almedina disse com toda a convicção aquela frase lapidar: «ai no Zézito eu acredito»,
Dona Laura foi ao chão com estrondo, pois tinha acabado de desmaiar de comoção.
Dona Candice não hesitou e atirou-se para cima de Dona Laura, fazendo-lhe
respiração boca a boca ao mesmo tempo que ia massajando o peito da desmaiada
com o seu próprio, de boas dimensões para o efeito. Com tal peso em cima, e
porque o desmaio não passava de um chilique, Dona Laura acordou com a boca
cheia de Dona Candice, o que a fez pregar um enorme espirro muito a propósito,
dado o bafo estonteante da chefe do Dona
Candice I Almedina Paranormal… e desabafou: -foi assim que o meu Zézito
começou… com espirros… pensei logo que
era gripe 3A…
Nesse preciso
instante foi a vez de Dona Candice I Almedina se erguer com ar de cavalo
espantado – neste caso égua – e de cair abruptamente sobre o soalho do seu gabinete,
não sem antes deixar no ar uns fortes ÁÁÁÁÁÁ… (em crescendo), que ecoaram pelos
gabinetes vizinhos, carregados de angústia e apreensão.
Pinto Manhoseiro socorre…
Pinto Manhoseiro
entrou de chofre no gabinete da chefe do Dona
Candice I Almedina Paranormal,
de quem era chefe, e viu-se grego para libertar Dona Laura do corpanzil de Dona
Candice, o que veio a acontecer logo que dois estaladões saltaram, que nem
ginjas, das mãos do chefe da chefe do Dona Candice I Almedina Paranormal – ele…, um homem
pouco habituado a intervir e muito menos a bater (e neste caso por uma boa
causa, sem dúvida). Sem saber bem o que lhe tinha acontecido e mostrando uma
agilidade invulgar, ei-la de pé, arrastando o chefe para um canto da sala, ao
mesmo tempo apontando para Dona Laura, gritando com frenesim: «ela tem a gripe 3A…
AhAhAhAhAhAh…»!
Dona Laura
achou por bem intervir, para desfazer o equívoco, pois tinha a todo o custo que
evitar o pânico…, e que o mesmo se instalasse na cidade, sabendo ela – através
do seu Zézito – das fugas e escutas frequentes que aconteciam naquele gabinete
paranormal.
-Alto aí e
pára o baile…, que o nosso Dr. Jorge me afiançou a pés juntos que isso da gripe
3A é uma invenção para entreter o pagode.
Foi então que
o “Pinto” reconheceu a voz autoritária da interveniente: Dona Laura! E piou:
«olha a mãe do noxo primeiro… como está
o Xenhor Eng. Zézito… expero xer útil a V. Exa no que lhe aprouver…»
Dona Laura
ficou reconhecida por cumprimento tão “pintado” e aproveitou a ocasião para
informar Pinto Manhoseiro do transtorno que acometera o seu filhito…, e que o
Dr. Jorge não atribuíra a qualquer moléstia ou sarna física… sarna?... só se
fosse psicológica, pois alguém de muito
maus fundos andava a fazer tremer até aos fundilhos o ânimo do seu Zézito.
«Poixzzé…,
extou a perxeber… perxebo perfeitamente… vamos avocar o proxexo… perxebeu Dona
Candixe I Almedima… já para o DXI APRE… era o que faltava xe não xocorexemos o
nosso 1º e Grande Líder Eng. Zézito nas aflixões dos fundos…» - assim falou Pinto
Manhoseiro que pensava mandar mais do que não mandava.
Epílogo
Não se sabe o
que aconteceu no gabinete de “Dona Candice I Almedina Paranormal”, mas ao regressar a Frio do
Norte, pela linha que sempre transportou as fornadas dos altos dirigentes do “Paraíso”
(linha das Beiras), Dona Laura teve a grata satisfação de sentir o degelo nos
fundos “espinhaçais” do seu Zézito.
Bem dizia o
Dr. Jorge que não era caso para ele…, enquanto ia apanhando borboletas…
Óscar
Astúcio
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