Uma vez por mês
o Prof. Vitor Guita traz-nos à memória, recordações do passado
Num dos raros dias chuvosos do princípio de Novembro,
estivemos em Patalim. Lugar inspirador. Apesar de sabermos que era água de
pouca dura, só o facto de vermos o ribeiro correr durante vários instantes
mereceu um entusiástico brinde ao melhor vinho que havia ali à mão. Já tínhamos
saudade de ouvir os pingos da cuva, de sentir o cheiro da terra molhada, de
ouvir o murmúrio da água a correr por entre as pedras do regato.
O vínico aroma que exalava o copo e a percepção que
estávamos perto do dia de S. Martinho fizeram-nos recuar aí uns quarenta e tal
anos e recordar as voltas que dávamos à procura de água-pé ou de provar o vinho
novo. Umas vezes íamos até às Silveiras; outras vezes fazíamos uma autêntica
peregrinação até às Cortiçadas.
A poucos quilómetros do Patalim, fica a Herdade das
Cortiçadas, com o seu mote tipicamente alentejano, a imponente adega e a vinha
a seus pés. Ao longo dos tempos, a adega tornou-se particularmente conhecida
pela qualidade dos sus vinhos.
Recuando no tempo, recordamo-nos de que, antes de chegarmos
ás Cortiçadas, o caminho estava recheado de personagens, de episódios, de
lugares, alguns dos quais ficaram para sempre gravados na nossa lembrança.
Depois de curvarmos em direcção a S. Sebastião da Giesteira,
desviamo-nos frequentemente por um caminho térreo ate ao monte das Valadas de
Cima. Era ali que vivia um homem que tinha por única companhia a Feia, uma
corpulenta cadela que infundia respeito. Junto à velha casa havia um hortejo,
de onde trazíamos repolhudas couves, rábanos, espinafres…uma cabazada de
hortaliça, tudo por tinta escudos. O solitário hortelão, que antes fora
cantoneiro, chamava-se Felício J. Teófilo Ramalhinho, mas havia quem lhe
chamasse o “Trinta” devido à sua pronúncia muito peculiar, que mais parecia a
de um sadino. Além do cultivo das hortícolas, Felício Ramalhinho fabricava
licores artesanais a partir de poejos e outras ervas que macerava numa porção
de aguardente. Numa casa interior, coberta por telha-vã e que dava a idéia de
ser o lugar de pernoita do hortelão, viam-se peles secas de cobras pendentes da
trave e das ripas do telhado, como se fossem cortinas a servirem de ornamento.
Ao ver o nosso olhar estupefacto perante aquela coabitação com os répteis, o
amigo Felício exultava de contentamento, perdido de gozo: 2 são as minhas
mulheres, as minhas amantes! Durmo com elas todas as noites!”.
De novo regressados à estrada de alcatrão, avançamos mais
uns escassos quilómetros até chegarmos à rampa que conduz à adega.
O Monte das Cortiçadas foi um grande assento de lavoura de
que fazia parte herdades como a Defesa, o Paço, entre outras. Propriedade da
Sociedade Agrícola Ribeiro Ferreira, a Herdade das Cortiçadas passou a
Cooperativa por volta de 1975, tendo regressado alguns anos depois, à posse dos
antigos donos. No início da década de 90, a empresa agrícola foi adquirida por
Jorge Manuel Ferreira Martins, e são as
suas duas filhas que actualmente conduzem os destinos da empresa,
modernizando-a, mas sem deixar perder a tradição. Falou-nos, entre muitas
outras coisas, das uvas recalcadas
Quando se fala com as pessoas mais velhas a propósito da
antiga adega do vinho das Cortiçadas, há nomes que parecem estar na ponta da
língua. Referimo-nos ao feitor Casquinha e ao adegueiro Jassé, personagens bem
conhecidas das redondezas. Entre alguns contactos que fizemos, falámos com
Manuel Caetano, que foi, também ele encarregado da adega e da restante
atividade agrícola. Sentados à mesa da cozinha, na sua casa de S. Sebastião da
Giesteira, o amigo Caetano foi desfolhando memórias da poda, da vinha manual,
do transporte da uva, da fabricação do vinho. Falou-nos, entre muitas outras coisas,
das uvas recalcadas com processos muito tradicionais, servindo-se de rodos de
madeira. Depois, referiu alguns conhecidos enólogos com quem trabalhou e com os
quais mantem profunda amizade.
Enquanto decorria o nosso diálogo, juntou-se à conversa
Maria Vitória Caetano, mulher do nosso interlocutor. Maria Vitória lembrou o
tempo em que era a cozinheira do pessoal que vinha sazonalmente trabalhar na
vinha das Cortiçadas. Era também ela que tratava da roupa das camas de cerca de
uma vintena de homens. Chegou a vir gente do Vale de Santarém e da região de
Alcobaça.
Quando passámos à descrição mais detalhada da adega,
vieram-nos de imediato à lembrança as imagens, que ainda guardamos do magnífico
lugar: o edifício de pé direito, a estrutura de madeira que suporta o telhado,
s enormes depósitos de madeira e de cimento…e os cheiros, aqueles cheiros que
estão tão presentes!...
Voltemos a Patalim, nosso ponto de partida. Assim que
revelámos que queríamos ir até às Cortiçadas, um dos nossos familiares não
resistiu a contar um episódio que se passou com ele há quase oitenta anos, na
Herdade do Paço, uma das que integrava o vasto complexo agrícola. Viajámos
pelas veredas da memória, até ao início da década de 1940, a um Alentejo que
marcou várias gerações de camponeses.
Como aconteceu a muitas outras crianças do campo, Manuel
Joaquim Serranito entrou no mundo do trabalho como ajudante de gado. Por volta
dos dez anos, era o ajuda do tio Artur, pastor de um numeroso rebanho de
ovelhas.
Manuel Serranito lembra-se de andar atrás dos animais e
começar a ouvir um ruído longínquo e estranho que se assemelhava a uma medonha
tempestade. À medida que o ruído se aproximava, uma nuvem gigantesca ia
obscurecendo tudo o que havia ali à sua volta. Estranhamente não havia chuva,
nem relâmpagos nem trovões. Viviam-se tempos de guerra, e os aviões não paravam
de cruzar os céus a caminho de uma Europa a ferro e fogo.
Certo dia, o tio Artur deu ordens ao seu ajuda para tomar
conta do rebanho, já que ele queria ir à Festa de S. Sebastião. O cão de
orelhas fitas, parece também ter entendido o recado. Missão falhada. O Serranito
deixou-se dormir e, quando acordou, já o sol raiava. Sobressaltado,
apercebeu-se que as ovelhas tinham dizimado um meloal inteiro, abóboras, uma
seara de feijão…ficaram-lhe para sempre gravadas as palavras do tio Artur, como
se tratasse de um pesadelo: podes ir-te embora. Já não preciso de ti.
Sem trabalho, com uma família numerosa e um terrível medo do
pai, urgia que o Manel encontrasse um novo ganha-pão. Valeu-lhe o tio Joaquim
da Pedra, que o recomendou ao General da Moita, a precisar nessa altura de um
gaiato para carregar água para o Monte da herdade. O Serranito fartou-se de
bulir, mas foi o principio de uma vida globalmente bem sucedida.
Não queríamos terminar estas Memórias sem fazer referência
ao santo que está na origem de tanta festa.
S. Martinho nasceu na Hungria, no dia 11 de Novembro do ano
316, tendo falecido na cidade francesa de Candes. Foi a enterrar na cidade de
Tours cuja basílica se transformou num grande centro de peregrinação.
Filho de um legionário romano, o jovem Matinho, montado no
seu cavalo, viu um mendigo encharcado e tiritando de frio à beira da estrada.
Ceio de compaixão, o militar desceu do cavalo, cortou metade da capa com a
espada e cobriu com ela o mendigo. Foi então que Deus decidiu afastar a
tempestade, fazendo brilhar um sol radiante como nos dias de verão. Daí a
expressão Verão de S. Martinho ou ainda Verão dos Marmelos, por ser época
propícia à apanha destes e doutros frutos.
S. Martinho é padroeiro de soldados,, cavaleiros, alfaiates,
pedintes, produtores de vinho, donos de restaurantes, etc, etc…
E pronto leitor amigo. Até breve
Vitor Guita
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