EDUARDO LUCIANO
HIPOCRISIA COLECTIVA
As
últimas semanas foram marcadas por alguns acontecimentos que tiveram o condão
de revelar como o exercício da hipocrisia pode ser um desporto que toca a quase
todos, manifestando-se através de notícias, comentários a notícias e debates
sobre alegados factos e de como através dessa actividade frenética se deixa de
pensar e discutir sobre o essencial.
Morreu
um dos homens mais ricos de Portugal. Enquanto viveu foi justamente alvo de
críticas pela forma como essa fortuna foi acumulada, de como defendia um modelo
de economia assente no pagamento mínimo aos seus trabalhadores, de como
explorava os pequenos produtores que vendem as suas produções para
comercialização nos hipermercados de Belmiro de Azevedo em condições contratuais
draconianas para quem produz, para gáudio também dos coleccionadores de
descontos ocasionais.
Morto
o homem, foi tratado quase como herói nacional pela comunicação social
dominante, que os seus pares dominam, e defendido pelo os que na véspera teciam
críticas.
Quando
na Assembleia da República o PCP votou, coerentemente, contra uma proposta de
voto de pesar que enaltecia a pessoa e a sua actividade empresarial, a
discussão passou a ser sobre essa posição que alguns, erradamente, entenderam
como de desrespeito pela perda de uma vida.
Curiosamente
acharam legítimas as opiniões emitidas pelo falecido aquando da morte de Álvaro
Cunhal.
Dias
depois faleceu um carismático músico e tivemos um coro imenso de gente que
nunca o apreciou, que nunca ouviu com atenção uma única música dos Xutos, que
criticou o seu percurso de vida, a manifestarem pesar pelo seu desaparecimento
a confessarem-se admiradores de músicas e atitudes que antes repudiavam.
Ao
Zé Pedro nada disso lhe causa agora qualquer tipo de incómodo, mas a mim,
confesso, incomoda-me esta histeria crescente e acrítica que acompanha o que
parece ser socialmente correcto, ou melhor, o que parece ser bem aos olhos do
vizinho do lado.
Esta
semana foi dado conhecimento de alegadas irregularidades na gestão financeira
de uma instituição dirigida por uma senhora que durante 15 anos foi cliente e
fornecedora dos diversos poderes que governaram o país.
De
repente toda a gente desatou a condenar, sem julgamento, o comportamento da
senhora, não conseguindo separar o que é do foro exclusivamente privado do que
é uso indevido do dinheiro que os doadores, entre eles o Estado, lhe confiaram
para a prossecução de um fim que é obrigação constitucional do Estado.
Caiu
um Secretário de Estado, há um Ministro em apuros, um deputado que ia ser
nomeado dirigente da associação em causa recusou a nomeação, jornais e
telejornais mostram fotografias que nada acrescentam ao apuramento de factos e
que apenas servem para uma espécie de linchamento moral dos envolvidos.
Alegremente
discute-se o preço do camarão, dos vestidos ou dos carros e os indignados de
sofá pedem, no mínimo o esfolamento vivo de todos os envolvidos.
Entretanto,
entre dois comentários nas redes sociais, vão ao supermercado do senhor que
faleceu comprar pacotes de arroz que entregam nas mãos de uma qualquer outra
senhora cuja actividade se rege pelos mesmos princípios da que acabaram de
apedrejar, ou sentam-se em frente à televisão a ver uma gala, num qualquer
casino, para angariar dinheiro para dar mais arroz e feijão para os pobres por
si escolhidos.
Belo
movimento de hipocrisia colectiva.
Até
para a semana
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