Uma vez por mês
o Prof,. Vitor Guita traz-nos à memória, recordações do passado
Era uma vez…
Numa tarde de Verão,
De verão alentejano,
De verão canicular,
Sem um rasto de vida
pelo chão,
Sem um risco de asa
pelo ar,
Sem uma folha que
bailasse
Num vento que não
soprava,
Sem uma nuvem que
pintasse
O céu quieto e parado,
Sem um grito que se
ouvisse
No aberto descampado
…………………………………….
Que calor!
Onde há uma gota de
água? Onde?
Estas inspiradíssimas palavras do professor Carlos Cebola,
em especial a sequiosa súplica que se ouve no final, motivaram-nos para falar
do tema água ou da falta dela. Além disso, o cenário desolador provocado pela
seca severa que nos tem assolado veio reforçar essa nossa intenção.
Ah! Se ao menos soubéssemos, como os índios, fazer a dança
da chuva ou se tivéssemos o poder divinatório de saber onde a água se esconde
nos interstícios da terra?!...
Dizem que há quem tenha o dom extraordinário de, com uma
simples vara, uma corrente de relógio ou um rudimentar arame, descobrir a
presença da água subterrânea. São conhecidos por vedores.
Fomos á procura de Manuel Lourenço Casmarrinha, que nos
disse ter esse raro condão de detectar os veios de água, o ponto exacto onde
eles se cruzam, de calcular a profundidade e o caudal das nascentes.
Manuel Casmarrinha nasceu no monte dos Poisos, á extrema da
Adua, e viveu grande parte da infância e juventude no Reguengo e, mais tarde,
no Monte dos Cavaleiros. Aos doze anos, guardava um rebanho de porcos na
Herdade da Giblaceira, quando uns amigos o convenceram a ir dar serventia para
Almada, numa grande empresa de construção. Ao fim de pouco tempo, o rapazote já
trabalhava com um Dumper e, passados mais uns dias, era capaz de saltar para
cima de uma recto-escavadora e operar com a pesada máquina. Admirados com o
desembaraço do rapaz, longe da terra, os mais velos diziam que o gaiato tinha
fugido à mãe. Aos dezoito anos frequentou no Bombarral um curso de operador das
poderosas máquinas STET. Entre largas centenas de formados, o jovem Casmarrinha
ficou muito bem classificado ou, tentando reproduzir as suas palavras “no meio
daquela moinagem de gente, foi por daí fora”. Depois da tropa, começou a
trabalhar para a firma José Joaquim Cornacho & Filhos, ainda as oficinas e
o cais eram no Monte Novo da Conceição. Manteve-se naquela casa até aos setenta
anos.
Pelo meio meteram-se quatro anos a trabalhar como operador
de máquinas na Suíça. O português da máquina 177 ganhou a admiração dos
helvéticos. Naquele país as tubagens passavam todos por debaixo do chão: águas,
telefones, electricidade… se um trabalhador, durante uma escavação, tivesse o
azar de danificar uma conduta, tinha de arcar com 50% do prejuízo. Não dava
para brincar. Por vezes, alguns colegas de trabalho tinham a pouca sorte de dar
uma dentada com a máquina num dos tubos com fios, dando a sensação de estarem a
puxar as tripas de uma vaca. Em situações duvidosas, o nosso emigrante
socorria-se dos seus dotes de vedor, adivinhando onde passavam as condutas.
Suiços , Franceses e outros trabalhadores ficavam boquiabertos com a eficácia
do português. Seria que a máquina estava equipada com alguma coisa que as
outras não tinham? Um arame ou corrente de relógio eram, muitas vezes, o
segredo do negócio.
Manuel Casmarrinha era conhecido pela sua grande capacidade
de trabalho, chegando a produzir num só dia o que podia ser feito em dois.
Alguns chamavam-lhe “os quatro braços”.
O amigo Manuel confessou-nos que durante anos esteve longe
de imaginar que tinha esse extraordinário dom de conseguir marcar os sítios
onde devia ser feita a captação da água. Foi no Torrão, durante uns trabalhos,
que aprendeu a arte com um individuo de Loures que andava a marcar e a abrir
poços naquela zona.
Manuel Casmarrinha, intrigado, punha-se a observar o homem,
quando este se punha às voltas no campo, empunhando uma corrente de relógio. Chegou
a pensar que o individuo não estava bom da cabeça. Ora fixava os olhos no chão,
ora apontava os olhos para os astros, especialmente para o lado do sol
nascente. Depois o homem dava passadas precisas, metódicas, em várias
direcções. Onde a corrente vibrava mais intensamente, o indivíduo de Loures
marcava o chão com pedras e torrões. Em determinados lugares, a corrente
enrolava-se com uma energia louca, produzindo uma música estranha. Tinha
encontrado um boi de água.
O montemorense enchia-se de interrogações e de espanto com
aquela espécie de feitiçaria.
É verdade que toda a vida ouviu dizer que os antigos
conseguiam idêntica proeza. E ele, seria capaz?
Decidido, foi direito a uma oliveira, cortou uma vara em
forma de Y e seguiu milimetricamente o percurso que o outro homem fizera.
Milagre dos milagres! No exacto lugar onde tinha sido feita a marcação, o
Casmarrinha sentia que também a sua vara de oliveira estremecia de forma
invulgar, inclinando violentamente o vértice para baixo. A tensão no corpo, o esforço
das mãos e dos braços eram enormes, mas o teste parecia estar a dar certo. Era
preciso anotar tudo.
Manuel Casmarrinha começou a ganhar influência com aquilo.
Até sonhava com poços, veios de água, nascentes…Hoje diz que já nem consegue
contabilizar os furos que marcou. Mais do que os cabelos que tem na cabeça! – Exclamou
ele divertido. Só no bairro onde vive actualmente, marcou cerca de uma dúzia.
Onde alguns afirmavam não haver uma gota de água, ele conseguiu um entorneiro.
O trabalho tem que ser sério, rigoroso. Não se brinca com a
carteira dos outros. O vedor admitiu já ter havido enganos nas quantidades de
água que previu, mas poços sêcos…nunca!
Aqui há anos, nas Alcáçovas, disse-nos ele, que, depois de
outros já terem esburacado o terreno todo, do furo que ele sinalizou saiu um
reboliço de água, ou como se diz na gíria, o tal boi de água. Chamaram-lhe
nessa altura “o bruxo de Montemor”.
Ficámos curiosos, quando Manuel Casmarrinha assegurou ter
sido ele que deu com a existência de água no cimo do cabeço de Nª Sº da
Visitação. Por momentos chegamos a duvidar. Água num cabeço?
Quis o destino que, enquanto decorria a conversa, se
Abeirasse de nós o amigo Manuel Gambóias, jardineiro de profissão e durante
cinquenta anos, encarregado da vigilância e conservação do Santuário. O
jardineiro confirmou tudo aquilo que ouvíramos antes e ainda deu mais algumas
achegas. No alto do morro só havia a água da cisterna. Escassa, ainda por cima.
O encarregado do Santuário já estava farto de passar as manhãs a carregar água
do sopé do outeiro lá para cima. Depois de convencido o Senhor Padre para a
necessidade de mandar abrir um poço, foi o Manuel Casmarrinha que, lá no alto,
fez a marcação do furo
Quando, na nossa ignorância, quisemos perceber o porquê da
existência de água num ponto tão elevado, a explicação surgiu rápida e
clarividente: “Nós não temos sangue apenas nos pés, pois não?!)
Bem a conversa aproximava-se do fim. Ainda quisemos ver
Manuel Casmarrinha em acção, num lugar meio escondido, ainda assim não viesse
alguém atrás de nós e tirasse partido das informações que o vedor ia dando. Por
norma, só os donos dos terrenos é que podem assistir às marcações.
Água não a vimos, é certo, mas que a vara de zambujo em
certos sítios fazia uma força dos diabos, isso é indesmentível.
Disse-nos o nosso parceiro de conversa que, ainda hoje, não
lhe lhe largam a porta de casa, a pedir-lhe o seu parecer.
Fantasia? Realidade? Sabedoria popular?
Foi acima de tudo uma boa história para contar.
Vitor Guita
Outubro 2017
In Montemorense – Autorizada transcrição pelo Autor
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