quarta-feira, 8 de novembro de 2017

MEMÓRIAS CURTAS

Uma vez por mês o Prof,. Vitor Guita traz-nos à memória,                                           recordações do passado

Era uma vez…
Numa tarde de Verão,
De verão alentejano,
De verão canicular,
Sem um rasto de vida pelo chão,
Sem um risco de asa pelo ar,
Sem uma folha que bailasse
Num vento que não soprava,
Sem uma nuvem que pintasse
O céu quieto e parado,
Sem um grito que se ouvisse
No aberto descampado
…………………………………….
Que calor!
Onde há uma gota de água? Onde?
Estas inspiradíssimas palavras do professor Carlos Cebola, em especial a sequiosa súplica que se ouve no final, motivaram-nos para falar do tema água ou da falta dela. Além disso, o cenário desolador provocado pela seca severa que nos tem assolado veio reforçar essa nossa intenção.
Ah! Se ao menos soubéssemos, como os índios, fazer a dança da chuva ou se tivéssemos o poder divinatório de saber onde a água se esconde nos interstícios da terra?!...
Dizem que há quem tenha o dom extraordinário de, com uma simples vara, uma corrente de relógio ou um rudimentar arame, descobrir a presença da água subterrânea. São conhecidos por vedores.
Fomos á procura de Manuel Lourenço Casmarrinha, que nos disse ter esse raro condão de detectar os veios de água, o ponto exacto onde eles se cruzam, de calcular a profundidade e o caudal das nascentes.

Manuel Casmarrinha nasceu no monte dos Poisos, á extrema da Adua, e viveu grande parte da infância e juventude no Reguengo e, mais tarde, no Monte dos Cavaleiros. Aos doze anos, guardava um rebanho de porcos na Herdade da Giblaceira, quando uns amigos o convenceram a ir dar serventia para Almada, numa grande empresa de construção. Ao fim de pouco tempo, o rapazote já trabalhava com um Dumper e, passados mais uns dias, era capaz de saltar para cima de uma recto-escavadora e operar com a pesada máquina. Admirados com o desembaraço do rapaz, longe da terra, os mais velos diziam que o gaiato tinha fugido à mãe. Aos dezoito anos frequentou no Bombarral um curso de operador das poderosas máquinas STET. Entre largas centenas de formados, o jovem Casmarrinha ficou muito bem classificado ou, tentando reproduzir as suas palavras “no meio daquela moinagem de gente, foi por daí fora”. Depois da tropa, começou a trabalhar para a firma José Joaquim Cornacho & Filhos, ainda as oficinas e o cais eram no Monte Novo da Conceição. Manteve-se naquela casa até aos setenta anos.
Pelo meio meteram-se quatro anos a trabalhar como operador de máquinas na Suíça. O português da máquina 177 ganhou a admiração dos helvéticos. Naquele país as tubagens passavam todos por debaixo do chão: águas, telefones, electricidade… se um trabalhador, durante uma escavação, tivesse o azar de danificar uma conduta, tinha de arcar com 50% do prejuízo. Não dava para brincar. Por vezes, alguns colegas de trabalho tinham a pouca sorte de dar uma dentada com a máquina num dos tubos com fios, dando a sensação de estarem a puxar as tripas de uma vaca. Em situações duvidosas, o nosso emigrante socorria-se dos seus dotes de vedor, adivinhando onde passavam as condutas. Suiços , Franceses e outros trabalhadores ficavam boquiabertos com a eficácia do português. Seria que a máquina estava equipada com alguma coisa que as outras não tinham? Um arame ou corrente de relógio eram, muitas vezes, o segredo do negócio.
Manuel Casmarrinha era conhecido pela sua grande capacidade de trabalho, chegando a produzir num só dia o que podia ser feito em dois. Alguns chamavam-lhe “os quatro braços”.
O amigo Manuel confessou-nos que durante anos esteve longe de imaginar que tinha esse extraordinário dom de conseguir marcar os sítios onde devia ser feita a captação da água. Foi no Torrão, durante uns trabalhos, que aprendeu a arte com um individuo de Loures que andava a marcar e a abrir poços naquela zona.
Manuel Casmarrinha, intrigado, punha-se a observar o homem, quando este se punha às voltas no campo, empunhando uma corrente de relógio. Chegou a pensar que o individuo não estava bom da cabeça. Ora fixava os olhos no chão, ora apontava os olhos para os astros, especialmente para o lado do sol nascente. Depois o homem dava passadas precisas, metódicas, em várias direcções. Onde a corrente vibrava mais intensamente, o indivíduo de Loures marcava o chão com pedras e torrões. Em determinados lugares, a corrente enrolava-se com uma energia louca, produzindo uma música estranha. Tinha encontrado um boi de água.
O montemorense enchia-se de interrogações e de espanto com aquela espécie de feitiçaria.
É verdade que toda a vida ouviu dizer que os antigos conseguiam idêntica proeza. E ele, seria capaz?
Decidido, foi direito a uma oliveira, cortou uma vara em forma de Y e seguiu milimetricamente o percurso que o outro homem fizera. Milagre dos milagres! No exacto lugar onde tinha sido feita a marcação, o Casmarrinha sentia que também a sua vara de oliveira estremecia de forma invulgar, inclinando violentamente o vértice para baixo. A tensão no corpo, o esforço das mãos e dos braços eram enormes, mas o teste parecia estar a dar certo. Era preciso anotar tudo.

Manuel Casmarrinha começou a ganhar influência com aquilo. Até sonhava com poços, veios de água, nascentes…Hoje diz que já nem consegue contabilizar os furos que marcou. Mais do que os cabelos que tem na cabeça! – Exclamou ele divertido. Só no bairro onde vive actualmente, marcou cerca de uma dúzia. Onde alguns afirmavam não haver uma gota de água, ele conseguiu um entorneiro.
O trabalho tem que ser sério, rigoroso. Não se brinca com a carteira dos outros. O vedor admitiu já ter havido enganos nas quantidades de água que previu, mas poços sêcos…nunca!
Aqui há anos, nas Alcáçovas, disse-nos ele, que, depois de outros já terem esburacado o terreno todo, do furo que ele sinalizou saiu um reboliço de água, ou como se diz na gíria, o tal boi de água. Chamaram-lhe nessa altura “o bruxo de Montemor”.
Ficámos curiosos, quando Manuel Casmarrinha assegurou ter sido ele que deu com a existência de água no cimo do cabeço de Nª Sº da Visitação. Por momentos chegamos a duvidar. Água num cabeço?
Quis o destino que, enquanto decorria a conversa, se Abeirasse de nós o amigo Manuel Gambóias, jardineiro de profissão e durante cinquenta anos, encarregado da vigilância e conservação do Santuário. O jardineiro confirmou tudo aquilo que ouvíramos antes e ainda deu mais algumas achegas. No alto do morro só havia a água da cisterna. Escassa, ainda por cima. O encarregado do Santuário já estava farto de passar as manhãs a carregar água do sopé do outeiro lá para cima. Depois de convencido o Senhor Padre para a necessidade de mandar abrir um poço, foi o Manuel Casmarrinha que, lá no alto, fez a marcação do furo
Quando, na nossa ignorância, quisemos perceber o porquê da existência de água num ponto tão elevado, a explicação surgiu rápida e clarividente: “Nós não temos sangue apenas nos pés, pois não?!)
Bem a conversa aproximava-se do fim. Ainda quisemos ver Manuel Casmarrinha em acção, num lugar meio escondido, ainda assim não viesse alguém atrás de nós e tirasse partido das informações que o vedor ia dando. Por norma, só os donos dos terrenos é que podem assistir às marcações.
Água não a vimos, é certo, mas que a vara de zambujo em certos sítios fazia uma força dos diabos, isso é indesmentível.
Disse-nos o nosso parceiro de conversa que, ainda hoje, não lhe lhe largam a porta de casa, a pedir-lhe o seu parecer.
Fantasia? Realidade? Sabedoria popular?
Foi acima de tudo uma boa história para contar.
Vitor Guita
Outubro 2017
In Montemorense – Autorizada transcrição pelo Autor




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