quinta-feira, 27 de julho de 2017

MAIS UM ENSAIO PARA UM QUADRO DE REVISTA – Pelo Helder Salgado

                                            a Barbearia do Barradas

Cenário
Espelho, duas cadeiras de barbearia, um banco e cadeiras para os fregueses, e uma pequena mesa com revistas.

Entra o Barradas bem penteado, com marrafa ao lado e poupinha. Vê-se ao espelho e passando a mão pelo cabelo e diz, em voz alta e meio zangado:
- Sempre eu a abrir a porta, aquele "Juiz" nunca chega primeiro. 
Quando é que ele chegará a mestre….. e eu a aguentar isto tudo - referindo-se ao aprendiz. 
E continuou : -
 Que saudades tenho do Demétrio..... ás vezes tinha lá as suas" porras" por causa dos "bichos maus", dos " bichos maus?", com os irmãos, mas tirando isso era uma joia de moço. E estava-se a fazer cá um mestre.
Ao ouvir um ruído e de costas para a porta, diz:
- Amanhã és tu o primeiro a abrir a porta, tens que...
- Tenho o quê?
Diz o Dr. Xavier entrando. 
O Barradas ao reconhecer a voz do Dr.
- Desculpe senhor Doutor, pensava que era o Narciso, mas logo de manhã e em sábado? 
diz admirado o barbeiro.
- Ás nove e meia dou uma aula de ginástica, estou com pressa, não posso deixar aquela malta sozinha.
Responde o Dr. friccionando a cara e amolgando o nariz (não tinha o osso) como era seu hábito.  Senta-se na cadeira, enquanto o Barradas veste a bata, aquece a agua e com o pincel começa a fazer espuma de sabão.
- Água bem quentinha e sabão especial, o senhor Doutor merece.
O doutor Xavier olha duas ou três vezes para o Barradas e diz:
- Isso demora tanto tempo… já chega de sabão.
Responde o barbeiro.
- Não chega, não chega que o senhor merece uma segunda e boa ensaboadela.
O Dr. faz uma careta e encolhe-se na cadeira.
- Irra, que nunca mais acaba?
O Barradas continua falando e remoinhando a água com sabão na taça.
- Senhor doutor já leu a Bola  (jornal) de hoje? O Germano aquele jogador do Atlético, que esteve tuberculoso no Caramulo, nem quer ouvir falar no Sport. Diz que não pode com os lagartos.
Doutor Xavier, paciente.
- Ó Barradas deixa-te de lérias e faz-me a barba.
O barbeiro coloca a toalha em redor do pescoço do cliente sempre lamuriando.
 - Aquele gajo nunca mais tem emenda,.... se não fosse filho do meu amigo Sinfrónio ....pessoa que eu tenho consideração …..  consideração... , tenho bebido uns copitos com ele … já tinha ido para o olho da rua....acredite doutor.  
E, quando se prepara para friccionar com o pincel a cara do Dr. entra, de rompante e cantarolando, o aprendiz Narciso.
- A formiga diz que tem sapatinhos de veludo, a formiga diz que tem sapatinhos de veludo, é mentira da formi
O mestre Barradas: -
- E mentira, é mentira ,,, o que tu te estás a tornar é num grande calão. Essa é que é a verdade.
O aprendiz: -
Mas não deve ser dita, que me desmoraliza.
O aprendiz ao notar que é o doutor Xavier que está na cadeira
- Bom dia mestre, bom dia senhor Doutor então como vai a rapaziada lá do Colégio?
Doutor Xavier agastado.
- Têm mais juízo do que tu,.... outro a entreter-me, Ó valha-me Deus.
O barbeiro ao olhar para o Narciso deixa entornar espuma sabão, que cai nas calças do Dr.
- Ó Barradas não basta a pressa que tenho, e ainda tenho que ouvir a minha Maria Helena, por isto.
O aprendiz  pega na toalha e começa a limpar as calças do Doutor, dizendo.
- Nem uma nódoa cá fica, nem uma nódoa
O doutor dá um salto da cadeira diz:
- Tira daqui as mãos, olha este!!
 O Narciso dá um salto para trás e o Barradas acaba por entornar mais espuma. Ouvem-se  três pancadas na porta, e uma voz suave diz:
- Dá-me licença senhor barbeiro.
- Entre. -
 diz o Barradas ainda alterado.
 O Chão Frio vem cortar o cabelo e pisando a espuma cai e diz olhando para o molhado do chão.

- Chiça, penico. E logo eu que só tenho ossos.
Diz, baixinho, o aprendiz de modo a não ser percebido pelo mestre.
- Logo me havia de calhar este, e em fim de semana
O Barradas ouve mas não percebe e pergunta, em voz alta diz:
- O que é que disseste?
O aprendiz.
- Mestre fique descansado que eu entendo-me com o cabelo do Sr. Chão Frio.
Tem a tesoura e o pente na mão fazendo, todo arteiro, estalar a tesoura.
O Chão Frio encolhe-se na cadeira e diz:
- Este ou é maluco ou está bêbedo.
O Narciso
- Vamos a isto que é uma "aceifa".
O Barradas  começa  ensaboar a cara ao Dr. Xavier e dando um fio na navalha, vai dizendo olhando para o Dr.
- O senhor doutor sai daqui com a barba tão bem aparadinha,,,,,,, até a dona Maria Helena lhe dá um beijinho.
Doutor
- Deve dar, deve, que ela tem andado bem disposta. Desde que para lá foi aquele Bráulio e o Gregório a fazerem equipa com o Salgado e o Quinze, Parece que anda lá o diabo.... Até eu tenho que andar na linha.
O Barradas
- Mas qual Salgado? o Carlos ou o Hélder?
Doutor Xavier a perder a paciência.
- O Carlos, que o Hélder, por causa de uma rapariga, só desfolhou vinte flores de malmequer.
E já meio alterado.
 Ó Barradas não me distrais...... faz-me a barba.
O aprendiz vê-se e deseja-se para cortar o cabelo ao Chão Frio.
- Parece estopa, parece  estopa,...... até a tesoura  está a perder o fio.
E irritado não se contendo pergunta ao cliente.
- É pá …..  há quanto tempo não lavas a cabeça.
Chão Frio
- Desde  a Festa de Setembro.
Narciso
-  Chiça, ...., desde a Festa de Setembro? e já estamos em Dezembro.
E de irritado que estava, descuida-se e dá um golpe na orelha do cliente.
- Desculpe, amigo.
O Chão Frio solta um grito
 - Desculpe, uma porra que me cortaste a orelha.
O Dr. dá novo salto da cadeira e vai estancar o sangue da orelha esquerda do Chão Frio.
- Só me faltava esta, só me faltava esta, e não é sexta-feira treze.
O aprendiz Narciso.
- Mas é sábado e tem ali o Quinze.
Num alvoroço entra o Gregório, o Quinze e o Bráulio e perguntam a uma só voz.
- Senhor doutor não temos ginástica?
- Temos, temos que hoje ninguém mais põe as mãos na minha cara.
O Dr. sai de cena mesmo ensaboado.
Corre o pano e acaba o ato.~

Hélder Salgado

Almada,21-05-2017

3 comentários:

Anónimo disse...



Obs.


Lê-se, gosta-se, engraça-se, abre-se um sorriso, recorda-se, repara-se,

agradece-se o envolvimento e a referência. Esperemos agora pelo teatro.

Penso também que há mais alunos que mereciam aqui uma alta menção.Lembro

o teu primo Azedo. E aquele nosso amigo de Bencatel, forte,alto e bem

nutrido (não me estou a lembrar do nome... ou era mesmo o Pardal) com

quem o Dr. Xavier ensaiou, uma vez em plena sala, uns passes e uns murros

de boxe . Com a assistência obviamente a torcer, em delírio, pelo mais

novo e pelo menos tecnicista.

Lembram-se disso? Lembram-se dessas cenas? Lembram-se das irreverências,

anunciadas, praticadas, nunca perdidas e que, ainda hoje, parecem vivas?


Saudações Democráticas


ANB

Anónimo disse...



OBS.


Vou só completar o que disse há instantes, lembrando que o Narciso, de

alto e boa inteligência que era subiu a Intendente na Polícia, fazendo

tudo pelo seu próprio pulso. Com grande competência e muito estudo ( um

tempo houve em que o Narciso o fazia à luz das ruas da Baixa lisboeta ).

Ora aqui têm, mais um excelente alandroalense que nunca esqueceu a sua

terra. Nem deixou de lá voltar, por Setembro, para recordar sempre

sorrindo, "a navalha e a tesoura" que lhe começaram a vida no Barradas.

Se leres isto, Narciso, vai um forte Abraço para ti desde aqueles

almoços na Messe de Oeiras.Com (a tua) viatura da PSP à porta.

Cumprimentos


Antonio Neves Berbem

Anónimo disse...

Boa ficção do Hélder. Com uma encenação apurada isto dava um belíssimo quadro de revista à alentejana.