quarta-feira, 14 de junho de 2017

LUGAR À CULTURA

       Baseado em Textos do Dr. Alexandre Laboreiro
                          Portuguesas com História
                                                    Fernanda de Castro
 «A literatura é o resultado do diálogo de alguém consigo mesmo.»
 José Saramago
Escritor português  -  Prémio Nobel da Literatura

Não lhe poderemos chamar subversiva, nem recordá-la como tal (enquanto poderá parecer exagerado, ofensivo até, para quem lutou contra um regime castrador dos direitos fundamentais de qualquer ser). Casou com um homem da ditadura, era  -  de certo modo  -  agradecida ao ditador, e não poria em causa o salazarismo. Porém, Fernanda de Castro, não interferindo na política, subverteu os hábitos sociais  -  revelando nos actos uma nova mentalidade: o seu grande desejo seria correr mundo, e conhecer as figuras mais influentes do momento. E concretizou-o, mas não se ficando por aqui: pois  tornou-se a primeira poetisa portuguesa a usar o verso livre (sendo este facto um dos aspectos de escritora com mais de três dezenas de obras publicadas).
Nascida em Dezembro de 1899, ela seria  -  sem dúvida  -  uma portuguesa do séc. XX.
Quando resolveu publicar confidências, contar-nos-ia que os seus pais discutiram no dia do seu nascimento (ocorrido em casa, no bairro lisboeta de Campo de Ourique); a causa? É que, para a mãe (católica praticante), a filha viria ao mundo  -  ao nascer antes de acabar o dia de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Portugal  -  com um desígnio místico. Porém, para o pai (mais pragmático), ela nasceu já depois da meia-noite (uns cinco minutos)  -  pelo que ele registaria a filha como tendo nascido a 9 de Dezembro de 1900. Porém,  a poetisa Maria Fernanda Teles de Castro e Quadros (Fernanda de Castro) nunca festejaria o nascimento na data oficializada  -  antes assinalaria o seu nascimento a 8 de Dezembro  -  o único dia em que gostava de receber prendas.
A meninice (altura em que lhe chamavam Mariazinha) entreteve-a na casa da bisavó Maria Maurícia (em Cacilhas)  -  onde ela criaria um cantinho para si (onde ela vivenciava as suas leituras, e onde ela  -  abrindo os velhos baús para sentir o cheiro do papel velho  -  se extasiava de admiração perante os vestidos de outras épocas, e ante a descoberta de garridas fardas militares  -  certamente usadas pelo pai, oficial da Marinha de Guerra). Porém, Fernanda (e os irmãos) irão viver uma longa peregrinação, em resultado das sucessivas nomeações do pai, como oficial da Marinha: de Lisboa para Portimão, Figueira da Foz, etc. No entanto, Fernanda  -  por imposição do pai  -  vai cursando a instrução primária na escola pública, tal como sucederá aos irmãos. Porém, será com a ajuda  da costureira  da casa, que Fernanda começará a saber ler, com os seus cinco anos de idade. Fernanda perderá a mãe, tinha ainda ela apenas treze anos de idade. Ocorreria o duro golpe, quando viviam na cidade de Bolama (capital da colónia da Guiné  -  sob jurisdição da recém implantada República Portuguesa): acontecimento em resultado da frágil constituição física (desde a infância) da mãe de Fernanda  -  aconselhada a não viajar, a evitar contrair doenças, perante a frágil capacidade de recuperação -  situação evidente na alimentação especial que a acompanhava desde a infância, com cuidados redobrados.
Fernanda será então educada, como mulher e cidadã, pela tia Maria José (a mais nova das três irmãs da mãe)  -  aquela que era considerada a mais distinta das irmãs: e a quem, Fernanda o admitiria, deve  -  dos dezasseis aos vinte e um anos (idade com que se casou)  -  a preparação cívica, de conduta e feminil (como esposa, mãe e cidadã) que a irão nortear na convivência com o futuro marido: o jornalista António Ferro  -  quer quando o acompanhava no cumprimento dos deveres de Estado, quando é ministro plenipotenciário de Salazar, e representa o País em Berna e Roma: não se limitando a ser mera anfitriã; pelo contrário, recorre ao seu papel de Mulher culta, humanista e de visão moderna.
Fernanda teria recusado vários pretendentes ao casamento: desde um professor que a preparara para o ensino universitário, até ao escritor Américo Durão (que namorará Florbela Espanca).
Fernanda de Castro via em António Ferro uma personalidade algo arrogante na conversação: porém, ela responde-lhe à letra  -  daí o terem de entender-se: na formação de projectos, na conciliação de ambições (não materiais maiormente), numa estabilidade de vida, numa realização pessoal que envolveria escrever livros, consciencializar cidadãos (mediante actos e realizações de cultura), ter filhos e fazer deles pessoas de bem  -  como Fernanda de Castro manifesta em “Cartas para além do Tempo”.
Fernanda de Castro, sem qualquer outra fonte de rendimento, a não ser os trabalhos da escrita (entre os quais, a peça “Náufragos”  -  representada no Teatro Nacional, o romance “Maria da Lua”  -  que venceu o Prémio Ricardo Malheiros, o livro de poemas “Antemanhã”, a sua estreia como escritora editada).
Seria, enquanto o marido foi vivo, uma mulher de poder: porém, não tinha interesse por ele. A política nunca a motivou. E quando intervinha publicamente, era apenas em casos de beneficência ou culturais.
Após a morte do marido, há-de continuar a escrever e proferir palestras em Portugal, Brasil e África. Ganhará o Prémio Nacional de Poesia (1969).
Após a Revolução de Abril, que a surpreende aos setenta e três anos, lamenta os rótulos, que no calor do movimento revolucionário, lhe são “colados”: “reaccionária” e “fascista”  -  dando a ela explicar que, sendo reaccionária, é sinal que reage (o que vê positivo), afirmando-se elitista porque a sua bitola se rege e nivela por cima.
Miguel Real (in “Jornal de Letras e Artes”) diz de Fernanda de Castro (em edição de 2006): «pauta-se pelos valores éticos do ideal intemporal e religioso do bem e da beleza e do amor, e evidencia um veio nervoso cultural tradicionalista, clássico e humanista». Miguel Real diria ainda: «Ainda que tradicionalista no pensamento, o Portugal ruralista, heróico de um heroísmo e antanho, figurava-se demasiado estreito para Fernanda de Castro (...) não é um pensamento a reflectir, mas uma sensibilidade a agir, sempre interveniente face aos quadros mentais católicos-salazaristas, subvertendo-os pacificamente».
Em 1990, Fernanda de Castro é distinguida (pela Fundação Gulbenkian) com o Prémio de Literatura Infantil. Na verdade, as crianças sempre foram, para Fernanda de Castro, um alvo de merecida atenção. Lembremo-nos de que, em 1932, criara a Associação Nacional de Parques Infantis (destinada às crianças desprotegidas).
Maria Fernanda de Castro morreria em 19 de Dezembro de 1994.E terminemos com o registo da força de alma de Fernanda: «Todas as manhãs ressuscito, na flor, na luz, na água, no vento»  -  num acto de escrita de uma mulher que aos noventa e dois anos, afirmaria nunca se ter sentido velha.
José Alexandre Laboreiro
In “Montemorense” – Dezembro 2016
Transcrição autorizada pelo Autor

José Alexandre Laboreiro                               

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