Portuguesas com História
«A
literatura é o resultado do diálogo de alguém consigo mesmo.»
José
Saramago
Escritor
português - Prémio Nobel da Literatura
Não lhe
poderemos chamar subversiva, nem recordá-la como tal (enquanto poderá parecer
exagerado, ofensivo até, para quem lutou contra um regime castrador dos
direitos fundamentais de qualquer ser). Casou com um homem da ditadura,
era -
de certo modo - agradecida ao ditador, e não poria em causa o
salazarismo. Porém, Fernanda de Castro, não interferindo na política, subverteu
os hábitos sociais - revelando nos actos uma nova mentalidade: o
seu grande desejo seria correr mundo, e conhecer as figuras mais influentes do
momento. E concretizou-o, mas não se ficando por aqui: pois tornou-se a primeira poetisa portuguesa a
usar o verso livre (sendo este facto um dos aspectos de escritora com mais de
três dezenas de obras publicadas).
Nascida em
Dezembro de 1899, ela seria - sem dúvida
- uma portuguesa do séc. XX.
Quando
resolveu publicar confidências, contar-nos-ia que os seus pais discutiram no
dia do seu nascimento (ocorrido em casa, no bairro lisboeta de Campo de
Ourique); a causa? É que, para a mãe (católica praticante), a filha viria ao
mundo -
ao nascer antes de acabar o dia de Nossa Senhora da Conceição, padroeira
de Portugal - com um desígnio místico. Porém, para o pai
(mais pragmático), ela nasceu já depois da meia-noite (uns cinco minutos) - pelo
que ele registaria a filha como tendo nascido a 9 de Dezembro de 1900.
Porém, a poetisa Maria Fernanda Teles de
Castro e Quadros (Fernanda de Castro) nunca festejaria o nascimento na data
oficializada - antes assinalaria o seu nascimento a 8 de
Dezembro - o único dia em que gostava de receber
prendas.
A meninice
(altura em que lhe chamavam Mariazinha) entreteve-a na casa da bisavó Maria
Maurícia (em Cacilhas) - onde ela criaria um cantinho para si (onde
ela vivenciava as suas leituras, e onde ela
- abrindo os velhos baús para
sentir o cheiro do papel velho - se extasiava de admiração perante os vestidos
de outras épocas, e ante a descoberta de garridas fardas militares -
certamente usadas pelo pai, oficial da Marinha de Guerra). Porém, Fernanda
(e os irmãos) irão viver uma longa peregrinação, em resultado das sucessivas
nomeações do pai, como oficial da Marinha: de Lisboa para Portimão, Figueira da
Foz, etc. No entanto, Fernanda - por imposição do pai - vai
cursando a instrução primária na escola pública, tal como sucederá aos irmãos.
Porém, será com a ajuda da
costureira da casa, que Fernanda
começará a saber ler, com os seus cinco anos de idade. Fernanda perderá a mãe,
tinha ainda ela apenas treze anos de idade. Ocorreria o duro golpe, quando
viviam na cidade de Bolama (capital da colónia da Guiné - sob
jurisdição da recém implantada República Portuguesa): acontecimento em
resultado da frágil constituição física (desde a infância) da mãe de
Fernanda - aconselhada a não viajar, a evitar contrair
doenças, perante a frágil capacidade de recuperação - situação evidente na alimentação especial que
a acompanhava desde a infância, com cuidados redobrados.
Fernanda
será então educada, como mulher e cidadã, pela tia Maria José (a mais nova das
três irmãs da mãe) - aquela que era considerada a mais distinta
das irmãs: e a quem, Fernanda o admitiria, deve
- dos dezasseis aos vinte e um
anos (idade com que se casou) - a preparação cívica, de conduta e feminil
(como esposa, mãe e cidadã) que a irão nortear na convivência com o futuro
marido: o jornalista António Ferro
- quer quando o acompanhava no
cumprimento dos deveres de Estado, quando é ministro plenipotenciário de
Salazar, e representa o País em Berna e Roma: não se limitando a ser mera
anfitriã; pelo contrário, recorre ao seu papel de Mulher culta, humanista e de
visão moderna.
Fernanda
teria recusado vários pretendentes ao casamento: desde um professor que a
preparara para o ensino universitário, até ao escritor Américo Durão (que
namorará Florbela Espanca).
Fernanda de
Castro via em António Ferro uma personalidade algo arrogante na conversação:
porém, ela responde-lhe à letra - daí o terem de entender-se: na formação de
projectos, na conciliação de ambições (não materiais maiormente), numa
estabilidade de vida, numa realização pessoal que envolveria escrever livros,
consciencializar cidadãos (mediante actos e realizações de cultura), ter filhos
e fazer deles pessoas de bem - como Fernanda de Castro manifesta em “Cartas
para além do Tempo”.
Fernanda de
Castro, sem qualquer outra fonte de rendimento, a não ser os trabalhos da
escrita (entre os quais, a peça “Náufragos”
- representada no Teatro
Nacional, o romance “Maria da Lua” - que venceu o Prémio Ricardo Malheiros, o
livro de poemas “Antemanhã”, a sua estreia como escritora editada).
Seria,
enquanto o marido foi vivo, uma mulher de poder: porém, não tinha interesse por
ele. A política nunca a motivou. E quando intervinha publicamente, era apenas
em casos de beneficência ou culturais.
Após a morte
do marido, há-de continuar a escrever e proferir palestras em Portugal, Brasil
e África. Ganhará o Prémio Nacional de Poesia (1969).
Após a
Revolução de Abril, que a surpreende aos setenta e três anos, lamenta os
rótulos, que no calor do movimento revolucionário, lhe são “colados”:
“reaccionária” e “fascista” - dando a ela explicar que, sendo reaccionária,
é sinal que reage (o que vê positivo), afirmando-se elitista porque a sua
bitola se rege e nivela por cima.
Miguel Real
(in “Jornal de Letras e Artes”) diz de Fernanda de Castro (em edição de 2006):
«pauta-se pelos valores éticos do ideal intemporal e religioso do bem e da
beleza e do amor, e evidencia um veio nervoso cultural tradicionalista,
clássico e humanista». Miguel Real diria ainda: «Ainda que tradicionalista no
pensamento, o Portugal ruralista, heróico de um heroísmo e antanho, figurava-se
demasiado estreito para Fernanda de Castro (...) não é um pensamento a
reflectir, mas uma sensibilidade a agir, sempre interveniente face aos quadros
mentais católicos-salazaristas, subvertendo-os pacificamente».
Em 1990,
Fernanda de Castro é distinguida (pela Fundação Gulbenkian) com o Prémio de
Literatura Infantil. Na verdade, as crianças sempre foram, para Fernanda de
Castro, um alvo de merecida atenção. Lembremo-nos de que, em 1932, criara a
Associação Nacional de Parques Infantis (destinada às crianças desprotegidas).
Maria
Fernanda de Castro morreria em 19 de Dezembro de 1994.E terminemos com o
registo da força de alma de Fernanda: «Todas as manhãs ressuscito, na flor, na
luz, na água, no vento» - num acto de escrita de uma mulher que aos
noventa e dois anos, afirmaria nunca se ter sentido velha.
José
Alexandre Laboreiro
In “Montemorense” – Dezembro 2016
Transcrição autorizada pelo Autor
José
Alexandre Laboreiro
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