sexta-feira, 26 de maio de 2017

VASCULHAR O PASSADO

Uma vez por mês Augusto Mesquita recorda-nos pessoas, monumentos, tradições usos e costumes de outros tempos
                 Igreja do Convento de São Domingos

      Associando-me à comemoração do 50.º aniversário do Grupo dos Amigos de Montemor-o-Novo, vou este mês, debruçar-me sobre a Igreja de São Domingos, construída junto à primitiva capelinha gótica então existente no canto meridional do Rossio da Porta do Sol e dedicada a Santo António. Não se sabe quando esta demolida ermida foi edificada, mas sabe-se que, no ano de 1316, já aqui era capelão Mestre Lourenço. Esta capela, foi destruída pouco depois de 1560, e no seu lugar, foi construído o Convento de São Domingos, também designado por Convento de Santo António.
            Porque o Estado, é melhor a classificar do que a preservar ou a promover os monumentos que ele próprio classificou, já vem de longe a saga da destruição do nosso património edificado. Antes da destruição da muralha do Castelo, do Paço dos Alcaides, de diversas igrejas, de edifícios públicos e residenciais dentro da vila intramuros, do pelourinho transferido do Castelo e colocado no Largo dos Paços do Concelho, das igrejas de Safira e de Santo Aleixo, da ponte romana existente perto da cidade, na estrada que nos levava até Évora, e dos três sinos da Torre do Relógio vendidos em Dezembro de 1966 por vinte e poucos contos, a vítima, foi a Capela de Santo António situada no Rossio, e destruída,  como já foi referido, no século XVI.
            Os primeiros Dominicanos chegaram a Montemor-o-Novo por volta de 1560, e  em 1561, trataram de edificar uma ermida, e mais tarde em 1565, um convento.
            Coube a Frei Luís de Granada (a quem foi dado o seu nome a uma praceta da cidade), proceder ao lançamento da primeira pedra da igreja, no dia 18 de Março de 1561, após celebração de missa solene no templete primitivo, acompanhado pelos padres dominicanos Pêro Lobato, Gaspar Preto, João de Évora e Francisco da Vitória já em exercício na vila.
            Desconhece-se o nome do autor do projecto, mas a planta da igreja pode agrupar-se ao ciclo de monumentos dominicanos levantados a partir de 1540 pelo religioso espanhol Frei Julião Romeno.       
            A edilidade montemorense acordou com os Pregadores de São Domingos de Gusmão em 25 de Junho do referido ano de 1561, os trâmites da empreitada, concedendo facilidades aos carreteiros no transporte da pedra para as obras, isentando-os de portagem.       
            Três anos depois do início da construção da igreja, por decisão do Capítulo Geral realizado em Bolonha, o templo foi integrado na Ordem Dominicana.
            A construção seguiu num ritmo veloz, pelo que a 26 de Abril de 1565 se santificou a igreja, numa cerimónia presidida pelo Arcebispo de Évora D. João de Melo e Castro, que ofereceu à novel congregação um cálice de prata perfumada. A mudança do Santíssimo Sacramento da igreja velha para a nova, foi procedida de solene procissão, onde se incorporou toda a fidalguia da vila, clerezia local, muitos padres do Convento Dominicano de Évora e muito povo. Foi nomeado vigário da nova igreja o Frei Miguel de São Domingos.
Formosa e bem proporcionada nave, compõe o interior da igreja. Disposta em planta rectangular de seis tramos e cobertura de meio canhão, reforçada por arcos formeiros, e panos engalanados de caixotões geométricos de relevo. Quatro capelas por banda e amplíssimo braço cruzeiro, de arcos redondos, movimentam e imprimem à arquitectura do templo uma linha de elegância extraordinária, valorizada pelo equilíbrio e colorido do apainelamento de azulejaria que forra, na totalidade, os alçados e a opulenta luneta axial. Dois tipos estruturais cerâmicos, policromos, do estilo barroco, mas ainda acusando influências renascentistas, de meados do seiscentismo de fabricação lisbonense, enriquecem a nave do monumento: cilharia geral, de quadrifólios naturalistas, encadeados, a cor azul e amarelo, e arcos das capelas laterais com molduras de esmalte branco e decoração dourada de terra de Siena, graciosamente compostos por interpretação mitológica de anjos brutescos e quimeras simbolizando “Zeus”.
            Foram construídas sete capelas, consagradas a “Santo Cristo”, “Nª Sª do Rosário”, “Santo Amaro”, “S. Paulo”, “S. Bento”, “S. João Batista” e “S. Gonçalo”.
            Capela-Mor” - Cabeça proporcional aos membros da imensa fábrica monástica, era do mesmo modo, lançada com notável volume de arquitectura, e foi concebida no projecto original e sagrada, embora em osso, no dia 26 de Abril de 1565, pelo Arcebispo - Inquisidor D. João de Melo e Castro.
            Escarnada com inaudita violência, depois da extinção das ordens religiosas, nada escapou do seu recheio sumptuário, abstraindo o forramento cerâmico. O tecto, ferido de morte rasgou-se em grande extensão e abriu fenda irreparável, por onde entram, no Inverno, torrentes contíguas de água que inundam todo o edifício.
            O arco triunfal, de meio ponto, de alvenaria acairelada, outrora revestido de murais foliáceos, repousa em bases graníticas esculpidas com ornatos híbridos clássico-barrocos. Construída em planta rectangular e de cobertura de meio canhão subdividida em quatro tramos, estava exuberantemente enriquecida por caixotões geométricos de relevo, onde refulge um repositório de alegorias religiosas, profanas e astrais; o carneiro, com atributos de peregrino, decerto na representação do Breve de Graças concedido pelo Papa Pio IV ao mosteiro. Os bustos de “S. Tomás de Aquino” e “Santo Alberto Magno”, o crânio rachado, figurativo do martírio de “S. Pedro Dominicano”; ofídio representando um dos avatares do demónio; a cabeça de Bafomé dos Templários; outra serpente sob um escudo carregado com um martelo, um compasso, uma colher de pedreiro e um M, provável alegoria da guilde dos construtores dominicanos, e uma cartela contendo, em filactera, um provérbio em linguagem portuguesa mas escrito em alfabeto grego, que diz:

SE A O/BRA FO/R BEM PA/GA SERA / BEM ALVA.

            Apainelados de grande superfície de azulejos de padrão policromo igual ao da nave, divididos por molduras rendadas, subsistem atingidos pela incúria nos alçados laterais, sobrepujantes ao desaparecido cadeiral da comunidade. Ao Evangelho e na boca do arco-mestre, existe o vão do coreto do órgão, todo forrado de cerâmica da mesma centúria.
            O retábulo que preenchia a ousia, trabalho de ensamblamento e de entalhador de notável beleza e proporções majestosas, é hoje de paradeiro desconhecido. Foi feito em obediência à vontade testamentária dos fundadores, depois de 1630, segundo se admite da tipologia estilística coeva, de edícula clássica e distribuído em três andares, com suas colunas e painéis pintados, onde se veneravam, no primeiro corpo “S. Miguel” (no eixo), ladeado por “S. Cristóvão” e “S. Domingos”: no segundo friso “Santo António”, titular e padroeiro da irmandade quinhentista, no centro, e lateralmente “S. Pedro” e “S. Sebastião”.
            Na cima fronte havia um grande “Crucifixo”, a cujos pés estava a “Madalena”, e nas ilhargas a “Virgem Dolorosa” e “S. João Evangelista”.
            Na ilharga exterior do corpo oriental do templo, a cavaleiro da tribuna do coreto, levanta-se o campanário, de empena com enrolamento, de um só olhal primitivo acrescido, mais tarde, por outra arcada angular, na linha do Dormitório Novo, ambos despidos de sinos, e que se alcançava através de escada cocleada coberta por cúpula de tijolo, de estranho remate boleado. É obra de inícios do séc. XVII.
            Dimensões da igreja: nave – comprimento 24,80 x largura 9,00; capela-mor – comprimento 13,90 x largura 8,80 m.
            Mestre Túlio Espanca, de quem me socorri para elaborar este texto, desabafou: “Delapidação e fúria destrutiva, atingiu aqui uma nota de barbarismo que se não pode olvidar. Os retábulos dos sete altares laterais e o imponente conjunto de talhas do presbitério do estilo barroco-rococó, o cadeiral dos monges, o pavimento e a teia do cruzeiro, levaram o fim inglório de tantas obras de arte magníficas e sumptuárias: queimadas, esmagadas e apodrecidas sem dó nem piedade!
            Com o decorrer dos anos, este imóvel que serviu de habitação aos morcegos, francelhos, corujas, pombos e outras aves, além de depósito de material de construção e de combustíveis, local de brincadeiras de rapazes, no rol dos quais eu me incluo, e de exercício de bombeiros, foi-se degradando, e o que restava do seu valioso património foi furtado e danificado, como por exemplo, parte dos valiosos azulejos existentes na igreja.
            O saudoso engenheiro Santos Simões, historiador da arte, e especialista na área do azulejo, depois de classificar de extraordinário e malfadado Convento de São Domingos, escreve: “O que hoje testemunha o que foi o grande Convento dos Dominicanos é uma confrangedora ruína! (…) Apesar do criminoso abandono, ainda ali ficaram esquecidos os notabilíssimos revestimentos cerâmicos da igreja, que fazem deste monumento, um dos mais notáveis a Sul do Tejo. Destacam-se pela raridade e originalidade do desenho e aplicação, os forros dos arcos das capelas laterais, particularmente os do cruzeiro, formando painéis de ornamentação de brutesco a amarelo sobre fundo branco”.
            A aquisição, e posterior restauro da igreja e do convento, pelo Grupo dos Amigos de Montemor-o-Novo para sua sede social, e instalação de museus, salvou este monumento, que vale a pena visitar.
           No próximo mês de Junho, segue-se um artigo sobre o Convento de São Domingos, e em Julho, mês da fundação do GAM, um texto sobre esta instituição regionalista.

Augusto Mesquita
Maio/2017



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