quinta-feira, 11 de maio de 2017

RECORDAÇÕES DO HELDER -III

O MEU AMIGO zÉ lARO – parte III
                                          Como e onde conheci o Zé Laro.
Uma tarde e pela primeira vez o meu pai levou-me a sua oficina de ferrador, lá estava o Zé Laro. Homem seco, tisnado pelo sol, de cigarro ao canto da boca, que ele próprio fazia com mortalhas de papel e onças de tabaco marca Duque.
Era possuidor de uma voz forte. Mal-arranjado e com uma particularidade que me deu logo na vista: tinha um pé e canela inchados, o que lhe fazia cortar as botas de lona, daquelas que usavam os caçadores. Foi muito prazenteiro no cumprimento que me fez. Não tive receio e inspirou-me confiança.
Era proprietário de um burro que pastava junto a duas éguas que possuíamos, e por vezes zangava-se em alta gritaria com o animal, o que me entristecia. Era casado ou amigado com uma senhora de nome Violante e tinha um filho, o Tónhiquito Zé.
Não tinha trabalho certo fazendo uns dias aqui outros além. Fazia alguns mandados e sempre apanhava alguma recompensa. Tinha ordem de apanhar azeitona para a conserva e peras dadas pelo senhor Inácio Rosado, que fora combatente em França. Este senhor tal como o Zé Laro, e por vezes o Zé Tatá e o doutor Joaquim Rosado, eram pessoas assíduas da oficina de ferrador, lá passavam as tardes enquanto o meu tio ou meu pai atarracavam as ferraduras ou ferravam as bestas.
Ainda dei um jeito neste ofício.
Começou ali a minha escola de vida com o Zé Laro a ensinar-me algumas coisas, que ele julgava importantes para a minha tenra idade. 
A dona Violante, a esposa do Zé era uma mulher bonita de rosto de corpo, que gostava de se vestir de corres garridas, qual céu cinzento coberto pelo arco-íris, cinzento porque a vida deste casal não foi um mar de rosas.
O Zé Laro, por andar quase sempre fora de casa, sempre ia satisfazendo o estomago. Muitas vezes o meu pai ou o meu tio Peças lhe levavam um naco de pão com linguiça. morcela ou toucinho, e só o que ele não comesse é que levava para casa. Ia arranjar o quintal ao doutor Galhardas que conhecendo a pobreza do casal lhe dava sempre uma boa gorjeta.
Onde ele não gostava de ir trabalhar era à do velho Espada, regateava o preço da jorna e quando lhe dava alguma coisa era pão duríssimo e carne já a cheirar a ranço.
A dona Violante no meio de tanta pobreza, via-se e desejava-se para criar o filho e, quando lhe faltava a comida pronunciava a miúde esta frase, em alto choro:
- Tonhiquito Zé, meu amor - As vizinhas já conhecedoras do ato logo se apressavam a socorre-la.
Mas um dia, há sempre um dia em que as dificuldades do momento se acumulam a outras tantas consideradas intransponíveis, vencem a força anímica e entregam a pessoa ao desespero. A dona Violante não resistindo ao desânimo, num ato impensável resolveu pôr termo à vida num poço de um quintal de uma casa, que estava alugada pelo senhor José Bacalhau, ourives do Redondo, que casara e ficando a viver em Terena.
O filho, o Tonhiquito foi recolhido na Casa Pia, em Évora e dele não mais se ouviu falar.
O nosso protagonista não pareceu muito dorido com este acontecimento. Vestiu-se de luto e continuou com a mesma via.
Recordo-me como se fosse  hoje de vê-lo com a sua camisa preta, com raios brancos nas costas e debaixo dos braços, a denunciar o esforço que o Zé fizera nalguma das suas tarefas.
Entretanto eu fui para a escola primária, nunca deixando de frequentar a oficina de ferrador, continuando assim a minha relação com o Zé Laro, que por eu nessa altura me rir pouco - hoje ainda penso que continuo -, começou a chamar-me “sério”. Não me importei nada com isso mas eu e o João  em contrapartida, alcunhamo-lo de “Pandita Neru”, sem sabermos que aquele nome era o nome próprio ou alcunha do Presidente da Índia.
Certo é que o Zé Laro também não se incomodava.
 Ponto de encontro.
A oficina, além de albergar o ofício de ferrador, era ao mesmo tempo um privilegiado espaço de encontro, sobretudo das pessoas que não frequentavam as tabernas.
Como já referi por lá aparecia o combatente  Rosado, que alcançou o posto de sargento.
Um dia houve toque a dispersar e o nosso sargento agarrou uma bicicleta e fugiu. Quando da fuga e numa ingreme descida, ou por saber andar mal de  bicicleta ou por se ter desequilibrado, agarrou-se às rédeas de um cavalo, que puxava um carroça, levando o dono também em fuga.
Contava o meu tio Peças, recordando o ato ao sargento :
- E naquela tarde que o senhor ia fazendo cair o francês para o ribeiro?
Aqui d'el-rei. O Inácio Rosado enfurecia-se chegando muitas vezes a ir-se embora. Mas no outro dia lá estava caído.
O estudante Joaquim Rosado era cliente assíduo, sobretudo, nas férias de Verão.
Namorava uma rapariga do Monte dos Apóstolos, de nome Miquelina, com quem viria a casar. Pedia muitas vezes, ao meu pai, a motorizada de marca Alpino, que ainda hoje conservo, para ir namorar, o que me entristecia, pois já sabendo andar de bicicleta, não tinha consentimento de tocar na Alpino.
O estudante nas quentes tardes de Verão, para matar a sede não bebia pelo quartilho de alumínio que estava colocado na boca do cântaro, mas sim pela  falha partida do gargalo do mesmo.
Procedeu assim várias vezes até que dia o meu tio Peças, com alguma oposição do meu pai, lhe disse:
- Ó Joaquim está a apanhar o mesmo hábito que eu.- resposta do estudante.
- Porra Peças que não deixas escapar nada.- risada geral.
         O meu parente Joaquim Pírico, de alcunha o Ferraz.
Nunca me chamou Hélder mas sempre parente. Até a minha neta Beatriz quando ele não estava em casa dizia: - Hoje não está cá o parente.
Era um parente já multo afastado, pelo lado da minha avó materna, que sempre me acarinhou e, que parecia disputar esse carinho com o Zé Laro.
Tinha neles dois incontestáveis defensores que reconhecidamente lhes presto  homenagem. O parente Ferraz recolheu-se no lar do Alandroal e lá o fui visitar.
Era o companheiro inseparável do Zé Laro. Não fumava mas excedia-se ou tinha menos resistência ao vinho do que o Zé.
Nem o café do Neves, nem a taberna do Silva, estabelecimentos onde eles se enfrascavam, com muito pouco vinho, tinham casa de banho, nem mesmo urinol, pelo quando apertados, os bebedores tinha que vir á rua. Bastava qualquer árvore de maior porte para esconder a urinada, mas nas horas de maior fluxo de pessoas, tinham que ir mais longe.
O Joaquim Pírico, homem sério e respeitador, um pouco mais delicado que o Zé, ia muitas vezes urinar perto da oficina, na descida que dá até a curva da horta do Azevedo.
Nunca descortinei e penso que mais ninguém descortinou a causa do meu parente, quando com os copos, andar de recuas mais de cento e tal metros. Começava a recuar perto da oficina e ia, sempre de recuas, até ao portão da horta, algumas vezes até ao ribeiro dos Coitos. Quando deixava de andar de recuas, ficava algum tempo parado e depois arrancava, se tropeçasse ou parasse, voltava outra vez a recuar. Passava quase a tarde inteira naquele vai vem.
 O meu tio Peças dizia:
- Lá está outra vez o Ferraz engatilhado na marcha a ré.
Muitas vezes o Zé Laro tinha que o ir buscar, sempre em alta gritaria e por vezes deixava escapar um palavão.
O meu afastamento do Zé.
A vida è como o tempo ou tempo é que faz a vida.
Deixei Terena e durante três anos estive no Alandroal a estudar no saudoso Colégio Diogo Lopes Sequeira, mas todos os fins de semana ia a Terena, o que não esmoreceu, nem melindrou a minha amizade com o Zé, nem com o meu parente.
Depois rumei para Almada e, no princípio da minha estadia, estive largo tempo sem ir a Terena.
Um dia quando regressei, indo de férias, ao entrar no café do meu tio Peças, o Zé Laro ao ver-me gritou:
- Olha o meu Sério, - e deu-me um sincero e afetuoso abraço, que jamais esquecerei e foi o principal motivo desta crónica.
Obrigado,  por ter  lido.
Hélder Salgado.
Terena, 01-05-2017.




2 comentários:

Manuel Luz disse...

Obrigado por ter escrito.
MSubtil
Abraço.

Eliseu Gomes disse...

Um bom retalho de um passado que se deveria ter repetido com mais ou menos condimento, mas sempre naquela forma de estar. Parabéns