terça-feira, 9 de maio de 2017

RECORDAÇÕES DO HELDER - I

RECORDAÇÕES DO HELDER
O MEU AMIGO zÉ lARO
O leitor interrogar-se-á porque eu, menino ainda, com uma diferença de idade de trinta e tal anos, a roçar os quarenta, chamo de amigo ao Zé Laro.
Para ajudar, e para que o leitor consiga compreender melhor esta pequena crónica, o que me faz relembrar a figura do Zé Laro e do seu inseparável companheiro de taberna, o meu parente Joaquim Pírico, são os copos de tinto, pois nunca os vi, nem eles me contaram que tivessem bebido vinho de outra cor, isto nos anos cinquenta.
Na reflexão que tenho vindo a fazer, e localizando-a nessa época, não hesito em afirmar que o ambiente tabernal era o meio, aliás único, de distração do nosso Concelho, interpolado uma vez por semana pelo cinema - claro, Cinema Peças - ou os bailes em épocas festivas. Estes dois divertimentos também extensivos às senhoras e às raparigas, que fora deles eram prisioneiras em suas próprias casas. Naturalmente  terei que registar alguns atos bisbilhoteiros e intrigantes que entre elas se registavam e, por vezes, eram extensivos aos homens, cujo o volume de bisbilhotice, algumas vezes chegava ao posto da guarda, normalmente nunca daí passando.
Foi a época da minha geração, que vivi, que registei memorialmente e, como bola de neve derretendo-se, alastra, distende-se, permitindo agora partilhá-la convosco.
O vinho, o tinto era o principal elemento congregador das pessoas, apesar dos jogos das cartas e do xito, onde o peixe frito, do rio ou do mar, pardelhas e bogas, petingas e jaquinzinhos se salientavam, não conseguindo sobrepor-se ao expoente máximo dos petiscos, os passarinhos fritos.
 A cervejinha era só bebida em dias nomeados ou em dia de festa, resistindo até ao aparecimento, primeiro nas feiras, depois nos cafés, à imperial.
Dos desfile de taberneiros que me aflorou no cérebro, vou recordar em Alandroal, o incomparável, alegre e sempre bem-disposto, Domingos Cainó, e em Terena, o Quintino, calmo e tranquilo, afável. Ambos predestinados para aquele, por vezes, conflituoso ofício.
Quando alguém se excedia, depois de beber demais, dizia-se que "tem mau vinho", condenando, sem justa causa, o saboroso e popular néctar.
E, por falar em conflitos deixem-me, por favor recordar dois episódios, um que presenciei e outro que me vi envolvido, apesar da minha pouca idade.
O Neves tinha acabado de adquirir o café/taberna ao senhor Torcato e, quando há uma mudança, ou por haver algo novo, ou pela simpatia do taberneiro, ou ainda pela curiosidade, há durante alguns dias um maior fluxo de pessoas.
O meu pai trazia à renda a tapada da Vinha e eu nessa tarde estava no canto que esta faz com os casões do velho Espada, hoje da família Neves, quando, de repente, ouço um ruído fora do habitual. Assomando-me à parede, vejo sair aos trambolhões dois homens, um ficando debaixo de outro.
- Queres comer? gritou o que estava por cima.
- Quero - disse o debaixo, sendo esmurrado três ou quatro vezes.
A cena não passou disto e ambos foram ao seu destino.
Estavam sentados, à fresca cá fora duas pessoas, que ficaram impávidas. Devo confessar que foi o ato, aliás, o único negativo que registei, em toda a minha vivência no nosso Concelho, sentindo o coração pulsar aceleradamente, correspondendo à raiva ou indignação que de mim se apoderou.
O outro conflito.
O ofício de ferrador declinara e o meu pai fechara a oficina.
O meu tio Peças, pai do Bráulio, trabalhara sempre e até então com o meu pai. Era preciso arranjar uma solução, uma atividade para o meu tio.
Com a recente compra de um prédio ao Zé Major, que albergava uma taberna, surgiu a oportunidade.
Uma tarde domingueira, já com o meu tio a desfrutar a taberna, levantou-se uma discussão, entre dois fregueses. Estavam quase a chegar a "vias de facto" .
O meu tio sai, apressado, detrás do balção e mete-se no meio dos dois fregueses. Não sei o que me deu, nem como consegui manietar um deles. Consegui apanhar-lhe os dois braços por trás das costas, e só o larguei quando o conflito serenou.
Um ou dois dias depois da discussão, fiquei frente a frente, na rua do Jardim, com o Zé Baru, o homem que tinha manietado. (Ponham-se no meu papel e sintam como eu fiquei). Abrandei o passo olhei para o lado, mas o arbusto mióporo estava cerrado em barda contínua e não permitia nenhuma fuga, por entre ele.
Restava-me voltar para trás e fugir ou enfrentar a situação. Já muito perto um do outro, o Zé Baru parando, agradeceu-me, pela minha ação de evitar a briga.
São dois acontecimentos que jamais esquecerei e, mais dois elos de ligação aos nossos sítios.

Prossegue amanhã

Sem comentários: