quarta-feira, 3 de maio de 2017

MEMÓIAS DO HELDER

                           A última tourada no Castelo de Terena
 O redondel era, como sempre na época, formado de carros de parelha e de varais na falta daqueles e situava-se à direita de quem entra no Castelo. E para que nada faltasse tinha curros. E tinha música, a banda do Alandroal.
Os músicos ocupavam um espaço da muralha, junto à torre de Menagem e o cimo das escadas que lhe dão acesso.
Peço-vos para idealizarem as dificuldades que o mestre da música deveria ter para dirigir a banda, porque eu por mais voltas que dei ao cérebro, não o consigo posicionar de frente para toda a banda. 
Como introdução ao espectáculo, esta toca um passo doble.
Os atrasados e já pingados apressam-se com um passo de dança e uns sonantes olés.
Os já instalados nos carros voltam-se e cotovelo contra cotovelo, ombro contra ombro, ensaia passos de dança e entoam mais olés.
O espectáculo começara antes do seu início.
Não sei se eu dancei ou se também gritei olé, mas uma certeza vos digo, é que até hoje guardei na minha memória esta cena, para hoje, aqui a poder relatar.
E o gado?
 Lá estavam as vacas do velho Godinho.
Alguém observou e reflectiu sobre o estado de instinto deste gado antes das touradas?
O seu olhar denunciador e interrogativo permitia ver a qualquer observador, que lhe dedicasse um minuto de atenção, o que lhe ia no seu interior.
Ali estavam encerradas à espera que judiassem com elas, elas que sempre generosamente ofereciam o seu trabalho na criação da riqueza dos donos.
Ali estavam à espera de um tourejo, de uma pedrada ou de uma picadela ou de algumas serem agarradas e assim vexadas na sua dignidade animal.
Uma ingratidão humana.
Finalmente a banda pára de tocar.
Tudo e todos acomodados para a festa.
Soa o som do cornetim e saia a primeira vaca.
O velho Godinho olhou de relanço para o animal, quase o ignorou. Ao invés o Seabra mirou e remirou a vaca. Era a mais nova das vacas. Quase uma bezerrinha. Acomodara-se junto ao que pensara ser uma saída e não se enganara. Um carro cujos varais foram metidos dentro de outro até à rabicha convidou-a a sair.
O som do cornetim ferira-lhe os ouvidos. Nunca tinha tido semelhante dor, nem em pequenina, quando a mãe devido à sua rabugice, se viu forçada a deitar-lhe leite para os ouvidos. Parecia atordoada com aquele ambiente. Duas fortes aguilhadas, que se não fossem as suas costelas, ter-lhe-iam furado os pulmões. Partiu a correr na esperança de encontrar saída. Viu pessoas a fugirem, a gesticularem numa gritaria que ela, vaca não conseguia perceber, nem porque estava ali encerrada sem conseguir fugir.
Ah se pudesse ninguém a agarraria, nem o dono.
E tinha medo.
Medo daquela multidão, daquela gritaria infernal, das corridas desnorteadas em que se atropelavam uns aos outros. As multidões sem norte são temíveis e ela tremia de medo.
Procurou um canto par se proteger.
Uma forte pedrada fê-la estremecer. Ouviu um sem fim de gargalhadas.
Um homem empertigado, altivo, que parecia não ter medo veio ao seu encontro
- Eh vaca brava. - gritou.
- Brava? - pensou o pobre animal.
 Nunca fizera mal a ninguém, sempre fora obediente mesmo quando aprendera a puxar a
charrua e o arado ou até a carreta, cuja canga de madeira sem encosto, tanta dor lhe fazia no cachaço, até a ferira e agora era assim ofendida.
- Eh vaca brava - tornou o valentão.
Ali encerrada e a sofrer injúrias atrás de injúrias, o animal não teve outro remédio senão defender-se.
Deu dois passos para trás e um para a frente e um forte sopro. O valentão virou-se, fugiu e caiu. Mais gargalhadas.
O ritual de tourejo e pedradas repetiu-se durante algum tempo.
Um autêntico vexame para a jovem vaca.
De repente a algazarra parou e vozes de admiração soaram, como se surgisse uma surpresa ou outra distracção se levantasse.
 A oferta.
 O Zé Seabra numa caninha de foguete, que antes estourara e ainda cheirava a fumo, meteu uma nota de cem escudos e olhou desafiando o velho Godinho.
A vaca estranhou o silêncio e pensou desejando ir embora - Terá acabado a festa?
Duzentos escudos gritou o dono das vacas.
 O animal, no seu instinto apercebera-se que estava a ser alvo de negócio e uma imensa tristeza, acrescida por reconhecer a voz do dono, apoderou-se dela.
Divertimento e negócio, a ganharem dinheiro com o seu sofrimento.
 Um estranho forcado
Aproveitando a pequena pausa da multidão devido à discussão da oferta, um vulto de pequena estatura, dissimulando-se entre as maravilhas e as malvas, que ainda estavam erectas, qual felino rastejante aproximando-se o mais perto possível da presa, para depois de um salto, eficaz e certeiro, se apoderar dela, surge o padre Sardinheiro.
- Duzentos escudos, - tinha fixado a ideia no dinheiro e dispôs-se a apanhar a vaca.
A ceifa desse ano, só lhe rendera setecentos e cinquenta escudos e ali, com um pequeno esforço ganharia duzentos.
O vinho não o deixava pensar em mais nada senão no dinheiro.
O Chico Rijo, adivinhando, seguia-o de perto. Já conhecia o hábito do padre Sardinheiro, pois já o tinha socorrido algumas vezes e tinha a certeza, se ele apanhasse a vaca tinha o jantarinho garantido.
A grande surpresa foi a do velho Godinho, ao ver o padre Sardinheiro.
Tentou ainda que o Seabra superasse o lance, mas este, matreiro, fechou-se e não subiu o montante.
Se o Sardinheiro apanhasse a vaca era a terceira vez que o velho Godinho se enganava, pois tinha a certeza que só um homem encharcado em álcool é que faria frente a um animal com as qualidades daquela bezerra, que ele tão bem conhecia.
E mais uma vez perderia o duelo com o Seabra.
Um uivo, semelhante ao de um lobo esfomeado, soou no redondel, silenciou os presentes e amedrontou o animal, que olhando para o lado, sentiu cair-lhe na cabeça o peso de um homem.
Nunca ninguém lhe tinha feito isto.
No monte, na casa da herdade que ela tanto gostava todos a acarinhavam.
 Em pequena até entrara na cozinha e quantas vezes o mais novo dos filhos do patrão, o Zé lhe dera o resto das sopas. Tantas vezes lhe ouvira dizer que ela, a bezerrinha, era a menina dos seus olhos. E agora ali estava, sozinha, sem puder pedir ajuda a ninguém.
Sentia-se humilhada e sem saber o que fazer ao intruso que se lhe pendurara na cabeça.
Levantou-a com a intenção de sacudi-lo mas logo pensou - E se ao cair se magoa, se fica mal, se tem filhos.
Quase ao mesmo tempo sentia ser agarrada pela cauda e pensou um dar um coice, mas também se ficou pelas intenções, pelo mesmo motivo de não magoar.
Baixou a cabeça e o homem largando-a, partiu a correr na direcção da caninha, não a do Seabra, mas do velho Godinho que não teve outro remédio senão largar o dinheiro.
O animal olhou para o sítio donde tinha saído, na esperança de o ver aberto e estava. Ao entrar o Boa Tarde, dá-lhe com a cachamorra que a fez dar um pequeno berro, ouvido pela mãe, que lhe correspondeu.
Esta acarinhou a filha, lambendo-lhe as feridas e encostadas uma à outra, pareciam conformar-se com a sua sorte.
Contou-me há pouco, o tio Zé Godinho, desvendando o seu manancial de recordações, que as vacas choravam convulsivamente e que ele chorara também.
Desde essa longínqua data não mais houve touradas no Castelo de Terena.
Hélder Salgado

 



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