segunda-feira, 27 de março de 2017

VASCULHAR O PASSADO

Uma vez por mês Augusto Mesquita recorda-nos pessoas, monumentos, tradições usos e costumes de outros                                   tempos.
                                             Montemor-o-Novo medieval
                                     O primeiro foral foi concedido há 814 anos

 Quando o território português começou a expandir-se, ainda no tempo do nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, houve a necessidade de destacar algumas localidades a quem era atribuído foral. Estas localidades, passavam a ser “sede” de um território à sua volta, a que se chamava “concelho”. Foral é um documento emanado do monarca pelo qual se constituía o concelho, se regulava a sua administração, e se indicavam os seus limites e privilégios.
Um pelourinho estava directamente associado à existência de um foral. Era erguido na praça principal da urbe quando o foral era concedido, e simbolizava o poder e autoridade municipais, uma vez que era junto ao pelourinho que se executavam sentenças judiciais de crimes públicos que consistissem em castigos físicos. Do nosso pelourinho, transferido do Castelo para ser colocado junto aos actuais Paços do Concelho, e destruído em data que se desconhece, apenas existem fotos.
            O foral de S. João da Pesqueira, outorgado por Fernando II de Leão em 1505, é o mais antigo foral respeitante ao território português. Mas, o primeiro foral escrito sobre pergaminho em latim, foi concedido no ano de 1179 à cidade de Lisboa por D. Afonso Henriques. Vinte e quatro anos depois, foi a vez de Montemor-o-Novo receber o seu foral. Este documento real, concedeu terras baldias para uso colectivo da comunidade montemorense, regulava impostos, portagens, taxas e multas, e ainda, estabelecia direitos de protecção e obrigações militares para o serviço real. Este foral, foi confirmado por D. Afonso II em 1218.
            Com D. Manuel I procedeu-se a uma reforma dos forais que, a partir deste período passaram a ser meros registo de isenções e encargos locais. O novo  foral de Montemor-o-Novo, concedido por D. Manuel I, ocorreu em 15 de Agosto de 1503 (infelizmente, este documento desapareceu dos Paços do Concelho, e foi posteriormente adquirido pela Casa de Bragança a um alfarrabista em Lisboa).
            Com o advento do liberalismo foram promulgadas várias leis tendentes à supressão dos forais, até por fim serem abolidos pelo Decreto de 13 de Agosto de 1832, confirmado pela Carta de Lei de 22 de Junho de 1846.
            Segue-se o texto do Foral de D. Sancho I à Vila de Montemor-o-Novo em 15 de Março de 1203:                                       
                Em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. Amen.
            Eu, Rei Sancho, filho do grande Rei Afonso, juntamente com meus filhos, Rei Afonso, Rei Pedro, Rei Fernando, Rainha Teresa e Rainha Dulce, para honra de Deus, da sempre Virgem Santa Maria e de Todos os Santos, resolvemos povoar Montemor. Tanto para os presentes como para os vindouros vos concedemos o Foral: que duas partes dos cavaleiros vão para o fossado (1) e a terça parte permaneça na vila, fazendo fossado uma vez no ano. Aquele que não for ao fossado, pague pelo foro 5 soldos como fossadeira. E por homicídio pague 100 soldos ao palácio. E por casa rompida (invadida) com armas, escudos e espadas pague 300 soldos e a 7.ª parte para o palácio. E aquele que roubar, pague 9 por um e tenha o acusador 2 partes e 7 partes para o palácio. E mulher que forcem a ela gritando disser que foi forçada por aquele, e ele negar, dê ela declaração de 3 homens tais como aqueles: ele jurará com 12 testemunhas e se não tiver outorgamento, jurará ele só; e se não puder jurar, pagar-lhe-á a ela 300 soldos e a 7.ª parte para o palácio. E a testemunha mentirosa e o declarante mentiroso pagará 60 soldos e a 7.ª parte para o palácio e duplicará a multa. E aquele que ferir no concelho, no mercado ou na igreja, pagará 60 soldos, metade para o palácio e metade para o concelho. E da metade do concelho, a 7.ª parte para o palácio. E o homem que for gentil ou herdador (2) não seja meirinho (3), e quem na vila penhorar (4) o fiador, e o que for ao monte penhorar, duplicará a penhora e pagará 60 soldos e a 7.ª para o palácio. E aquele que não comparecer em juízo e atirar a penhora para o saião (5), pagará um soldo ao juiz. E aquele que não for ao apelido (chamamento), quer seja cavaleiro, quer seja peão (6), salvo aqueles que estão em serviço alheio, pague: 10 soldos o cavaleiro e 5 soldos o peão, aos vizinhos (7). E aquele que tiver uma propriedade e uma junta de bois e 40 ovelhas, um burro e dois leitos, comprará um cavalo. E aquele que quebrar o sinal com sua mulher, pague um soldo ao juiz; e a mulher que deixar o seu legítimo marido, pagará 300 soldos e a 7.ª para o palácio. E aquele que deixar sua mulher pagará um denário ao juiz. E aquele que montar um cavalo alheio durante um dia pagará um carneiro e se mais, pague o aluguer: por um dia 6 denários, por uma noite um soldo. E o que ferir com lança ou espada pagará 10 soldos. E se passar para outra parte, pagará 20 soldos ao queixoso. E quem ferir um olho, um braço ou um dente, por cada um dos membros pagará 30 soldos ao lesado e ele dará a 7.ª ao palácio. Aquele que ferir a mulher diante do seu marido pagará 30 soldos e a 7.ª para o palácio. E quem mudar um marco alheio para a sua terra, pague 5 soldos e a 7.ª para o palácio. E quem quebrar um marco alheio, pague 5 soldos e a 7.ª parte para o palácio. Aquele que matar um trabalhador alheio, responda por homicídio ao seu amo. Da mesma forma, do seu hortelão, caseiro (que lhe paga quartos), do seu moleiro e do seu solarengo. Aquele que tiver vassalos no seu solar ou na sua herdade; não sirvam eles a outros homens, mas somente ao dono do solar. As tendas, os moinhos, os fornos dos homens de Montemor sejam isentos de foro. Os militares de Montemor sejam levados a juízo só perante os potestados e infanções (8) de Portugal. Os clérigos, porém, tenham os costumes dos militares. Os peões sejam levados a juízo pelos cavaleiros vilãos de outra terra. Aquele que vier ao seu vizinho como vozeiro (9) por um homem de fora da vila, pague 10 soldos e a 7.ª ao palácio. O gado de Montemor não seja sujeito a montado (10) em nenhuma terra. E o homem a quem perigar o cavalo, embora tenha outro, seja dispensado até ao fim do ano. O mancebo que matar um homem e fugir para fora da vila, o seu amo não pague por homicídio. Por todas as questões do palácio, o juiz seja vozeiro. Quem penhorar na vila, acompanhado do saião e lhe tirarem os penhores, prove-o legalmente, e o saião, reunindo indivíduos de 3 freguesias, penhore com eles no valor de 60 soldos, metade dos quais serão para o concelho e a outra metade para o queixoso. Os barões (11) de Montemor não sejam dados em serviços. E se os homens de Montemor tiverem questões com homens de outra terra, não corra entre eles juramento de firme (12) mas corra por exquisa (13) ou repto (14). E dos homens que queiram permanecer com o seu gado nos limites de Montemor recebam deles montado: do rebanho de ovelhas 4 carneiros; da manada das vacas, uma vaca; este montado é pertença do concelho. E todos os soldados que estiverem no fossado ou na guarda, todos os cavaleiros que se perderem na algara (15) e na lide, primeiramente, seja dado aos herdeiros destes (o valor do cavalo) sem a quinta parte e só depois nos dareis o quinto directamente. E todo o homem de Montemor que encontrar homens de outras cidades cortando ou levando madeira dos seus montados: apreenda-se-lhes tudo o que se encontrar, sem pena. De azarias e de guardas ser-nos-á dada a quinta parte sem descontos. Todo aquele que fizer penhorar ou roubar gado doméstico, pagará 60 soldos ao palácio e duplicará o gado ao seu senhor. Dizemos em verdade e sempre reafirmamos que todo aquele que penhorar a mercadores e viandantes cristãos, judeus ou mouros, a não ser que seja fiador ou devedor, pague 60 soldos ao palácio e duplique o gado que fez perder ao seu dono. E além disso, pague 100 morabitinos pelo couto (16) que invadiu; o rei tenha metade e o concelho a outra metade. Se alguém vier á vossa vila roubar alimentos ou qualquer outra coisa e aí for morto ou ferido, não pague por isso qualquer multa, nem os seus parentes sejam considerados como homicidas. E se com queixa disso vier ele próprio ao rei ou ao senhor da terra, pague 100 morabitinos, metade para o rei e metade para o concelho. Mandamos e concedemo-vos que, se alguém foi ladrão e já deixou de o ser, há um ou dois anos, se for ou vier a ser incriminado por qualquer coisa que cometeu, não seja considerado como ladrão: mas se é ladrão e foi ladrão, pereça completamente e sofra a pena de ladrão. E se alguém for reincriminado por furto e não é, nem foi ladrão, responda pelos seus foros. Se algum homem roubou a filha alheia contra a sua vontade, entregue-a aos seus pais e pague-lhes 300 morabitinos e a 7.ª para o palácio e seja julgado por homicida. Acerca da portagem (17): portagem da carga de cavalo de panos de lã ou de linho, um soldo; do fardo de lã, 1 soldo, do fardo de fustão 5 soldos; do fardo de panos de cor, 5 soldos; da carga de pescado, 1 soldo; da carga de burro, 6 denários; da carga de mouros de coelhos, 1 morabitino, portagem de cavalo vendido para açougue, 1 soldo; pela mula, 1 solo; do burro, 6 denários; do carneiro, 3 medalhas; do porco, 2 denários; do furão, 2 denários; da carga de pão e vinho, 3 medalhas; da carga do peão, 1 denário; do mouro que tenham vendido no mercado, 1 soldo; do mouro que se libertar, a décima; do mouro que se combina com seu senhor, a décima; do couro da vaca e da zebra, 2 denários; do couro do porco e do veado, 3 medalhas; da carga de cera, 5 soldos; da carga de azeite, 5 soldos; esta portagem dos homens de fora da vila, será a terça parte para o hospedeiro, e duas partes para o rei. Eu, Rei Sancho, juntamente com meus filhos, confirmamos e assinamos esta carta. Todo aquele que não quiser cumprir esta carta, seja maldito e excomungado. Amem. Feita a carta no mês de Março. Era de 1241. À qual estiveram presentes, Martinho, Arcebispo de Braga, confirmante: Martinho Bispo do Porto, conf.; Dom Pedro Bispo de Lamego, conf.; Dom Nicolau Bispo de Viseu, conf.; Dom Pedro, Bispo de Coimbra, conf.; Dom Soeiro, Bispo de Lisboa, conf.; Dom Pelágio, Bispo de Évora, conf.; Afonso Mendes, pretor de Santarém, conf.; Egas Pelágio, conf.; Rodrigo Viegas, conf.; João Gonçalves, conf.; Dom G. Mendes, mordomo-mor da cúria, conf.; Dom Mar, Fernandes, porta bandeira do Rei, conf.; Dom João Fernandes, copeiro do senhor Rei, conf.; Dom Rodrigo Mendes, conf.; Dom Pelágio Soares, conf.; Pelágio Pedro, pretor e povoador do mesmo lugar, test.; Pedro Nunes, test.; Fernando Nunes, test.; Pedro Gomes, test.; Juliano, notário da cúria.
(1)       Fossado – serviço militar a que se encontrava obrigada a população vilã e cuja prestação lhe era erigida segundo as disposições exigidas pelo foral ou pelo costume da terra.
(2)       Herdador – na terminologia da época significa normalmente aquele que detinha o domínio útil da terra perpétua e hereditariamente, embora o domínio directo pertencesse ao rei.
(3)       Meirinho – agente do rei investido de poderes latos, para, em nome do monarca, proceder à cobrança das taxas dos impostos e administrar a justiça presidindo ao tribunal e sentenciando.
(4)       Penhorar – apreender alguma coisa.
(5)       Saião – funcionário medieval encarregado de executar as sentenças judiciais.
(6)       Peões – elementos da classe popular situados imediatamente abaixo dos cavaleiros-vilões. Englobavam proprietários rurais de odestos recursos, pequenos comerciantes ou simples artífices.
De facto, os peões constituíam a classe verdadeiramente tributária, onerados como estavam, com um sem número de encargos.
(7)       Vizinhos – considera-se vizinho aquele que é morador no concelho, com casa, mulher e gado.
(8)       Infanções – entre os séculos XI-XIV é considerado como garau 2.º da nobreza, que vem depois do rico-homem e antes do cavaleiro.
(9)       Vozeiro – no período medieval vozeiro era o advogado dos litigantes.
(10)   Montado – imposto que existia nos concelhos do reino, durante o século XIII.
Nos forais deste tipo (Évora-Avis) só era pago pelos estranhos que trouxessem os seus gados no termo do concelho.
(11)   Barões – o vocábulo barões não é empregue como título nobiliárquico ou de nobreza; significa homem poderoso;  neste caso, refere-se aos moradores de Montemor. Este foi um dos maiores privilégios concedidos aos habitantes de Montemor, pois representa a autonomia e independência da vila, que ficou sempre pertença do Rei, não podendo ser integrada em qualquer senhorio.
(12)   Firme – juramento prestado de que não se contendia em juízo por ódio, interesse,  paixão ou vingança, mas só pela verdade e justiça da causa.
(13)   Exquisa – forma de inquérito judicial utilizado nos primeiros tempos da nossa história; consistia em mandar-se proceder para elucidação do tribunal, a inquirições in loco.
(14)   Repto – meio de defesa judicial, que consistia em desafio (duelo) por ofensas recebidas.
(15)   Algara – expedição militar, assalto, combate executado por um grupo de cavaleiros no território mouro.
(16)   Couto – território imune e defeso; implicava normalmente como privilégio mais importante a proibição de entrada de funcionários régios na terra coutada.
(17)   Portagem – imposto que incidia sobre a compra e venda de mercadorias; pagava-se de todos os produtos entrados em cada concelho para aí serem vendidos.

Augusto Mesquita
Março/2017

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