Homenagem
do Al Tejo a Domingos Maria Peças
SILÊNCIO
(Silence), de Martin Scorsese
O
que mais impressiona os espectadores deste filme, julgo eu, é o dilema que se
põe aos que são perseguidos, entre o ceder perante o sofrimento provocado pela
tortura, pela visão da tortura usada contra outros ou pela morte quase certa se
se persistir na crença ou a recusa em falar, mantendo a posição, aconteça o que
acontecer, que deverá ser a tortura e a morte.
Neste
caso trata-se da perseguição aos cristãos no Japão do século XVII (cerca de
1640), movida pelo poder imperial preocupado com tudo, incluindo as novas
ideias, que pudesse vir a pôr em causa o Japão feudal. É essa situação que
missionários jesuítas portugueses vão encontrar na sua missão de tentar
difundir, clandestinamente, as ideias do cristianismo, em que a maior parte
deles acredita.
Alguns
cedem (apostatam, termo religioso para a negação da fé), chegando a integrar-se
completamente na sociedade japonesa, tornando-se inclusive budistas. Outros
persistem na sua missão e são mortos, juntamente com os japoneses que eles
conseguiram catequizar e que começam a revoltar-se contra a repressão religiosa
e a exploração social do povo (figura da rapariga na prisão). O filme de
Scorsese mostra-o através das suas várias personagens.
O
realizador norte-americano adaptou uma obra homónima de um escritor católico
japonês, Shusaku Endo (1923-1996). Os que apostatam lamentam não ter conseguido
ouvir o seu deus. Daí o título da obra, Silêncio. Hoje o Japão conta com cerca
de 1% de cristãos, entre os quais, 0,3 % de católicos. E o budismo continua a
ser a principal religião do país.
O
mesmo tema, baseado no romance de Endo, foi já abordado no cinema português no
filme "Os olhos da Ásia", de João Mário Grilo. Curiosamente, o
português filmou em Sintra e o norte-americano em Taiwan (território chinês
ainda autónomo). As razões parecem ter sido, nos dois casos, económicas...
A
questão da língua utilizada acaba por ser importante para o espectador
português porque no filme de Scorsese só se fala japonês e inglês... o que não
deixa de ser um pouco chocante, apesar da convenção hollywoodiana... Aliás só
já com o filme adiantado é referido que os jesuítas que partem em missão são
portugueses e afinal poderiam talvez ser de outra nacionalidade qualquer que
pouco adiantaria para a questão em causa - o que pode levar à apostasia, tal
como Scorsese a põe.
Para
um ateu, como é o meu caso, o grande interesse da obra acaba por residir na
relação que tem com outras situações de repressão extrema, e não só religiosa,
como a repressão política principalmente. No nosso País tivemos aliás os dois
casos, ambos protagonizados no poder por católicos apoiados pela hierarquia
religiosa - a inquisição (no século XVII a XIX, ao longo de 285 anos) e o
fascismo salazarista (no século XX, ao longo de 48 anos), com a sua perseguição
aos que se batiam pela liberdade. Neste último caso no comportamento na prisão
perante as terríveis torturas, algumas acabando na morte, usadas para tentar
que os prisioneiros falassem denunciando os companheiros de luta. No primeiro
nas inimagináveis torturas, sempre acabando na morte para os que não cediam, para
que se convertessem ao catolicismo.
Grande
parte da obra de Scorsese mostra a violência de seres humanos contra os seus
semelhantes e fá-lo, reconheça-se, sem nunca ser gratuito. Aliás entre os seus
melhores filmes estão os que se dedicam a mostrar o gangsterismo no seu país,
os EUA. Mas também aqui, em "Silêncio", há todo um repositório de
métodos de violência extrema, desde à morte pela fogueira até à decapitação
pura e simples. Não chega a chocar porque sabemos que é a realidade em períodos
feudais semelhantes, no Ocidente ou no Oriente - em que "o povo é carne
para canhão" e todas as arbitrariedades eram permitidas ao poder.
No
entanto a coerência de Scorsese falha num ou noutro aspecto dos seus filmes e
um deles que convém referir tem justamente por protagonistas, apresentados como
vítimas, os budistas, mas num grande país do Oriente, vizinho do Japão e
algumas vezes vítima do imperialismo japonês, a China, que se libertava do
opróbrio do colonialismo ocidental de séculos, acabando por se converter num
filme de propaganda anti-chinesa e anti-comunista, porque as novas ideias
sociais são afinal as que entram em choque com o budismo mais
tradicionalista.
O
que "Silêncio" vem uma vez mais demonstrar é o saber fazer cinema do
grande realizador, ajudado por uma magnífica fotografia, que sublinha a miséria
e as condições deploráveis em que viviam os camponeses no Japão no século XVII
e, principalmente, o facto desta obra nos fazer pensar.
Egas Branco
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