Ainda de boca doce graças às iguarias consumidas nesta época festiva Tiago Salgueiro dá-nos a conhecer a doçaria de Vila Viçosa e as suas origens
Doçaria Conventual Calipolense – Um Mundo a descobrir
É secular a ligação de Vila Viçosa ao mundo dos doces
conventuais. A história que identificamos em Vila Viçosa faz a ligação entre o
açúcar que chegava do Brasil e a tradição doceira dos espaços conventuais.
Vila Viçosa tem uma larga tradição e história nesta
categoria de receitas que engrandeceram a gastronomia e cuja fama se estendeu
além-mar, também pela existência de numerosos conventos. A doçaria conventual
tem como ingredientes de eleição o açúcar, as gemas de ovos e a amêndoa.
Estes doces conventuais de açúcar, gemas de ovos e
amêndoas sempre estiveram presentes nas refeições que eram servidas nos
conventos, mas apenas a partir do século XVI, com a divulgação e a expansão do
açúcar, atingiram notoriedade.
Vila Viçosa primava pela excelência dos doces nas
festividades oficiais. Foi notável, em 1571, a receção ao legado do Papa Pio V,
o Cardeal Alexandrino, assim como o banquete servido a D. Sebastião, em 1573. A
Duquesa de Bragança, D. Catarina (esposa do 6º Duque D. João I e filha do
infante D. Duarte e de D. Isabel de Bragança), ofereceu em 1581 um faustoso
banquete em Vila Viçosa ao Rei de Espanha, Filipe II[1].
A tradição dos doces conventuais tem portanto a
possibilidade de se tornar uma imagem de marca de Vila Viçosa. Temos três
elementos que me parecem fundamentais, com muito provável origem em Vila
Viçosa: a tiborna, o bolo-duque e o sericá.
Da doçaria conventual calipolense tem ainda menção de
destaque os “Peixes de Canela”, provenientes do Convento da Esperança e os
“fartes” e “bolo celeste” do Convento de Santa Cruz. Este último convento
produzia também os doces de pêssego e de ginja em potes de barro. No entanto, a
competição das duas claustras era a nível dos rebuçados de ovo e das tibornas.[2]
Em homenagem às tibornas, o poeta calipolense Emídio
Amaro, dedicou o seguinte soneto:
« Ó minha terra, por
menos que fosses
Serias sempre grande
em teus doces,
O Convento das Chagas foi fundado pelo 4º Duque de
Bragança, D. Jaime em 1514. Foi entregue à Ordem de Santa Clara e a vida
monástica teve o seu início em 1532, com oito freiras provenientes do Mosteiro
de Nossa Senhora da Conceição de Beja, que trouxeram consigo o segredo das
receitas.
Foi o mosteiro mais rico de Vila Viçosa, na medida em
que a maioria das monjas provinha da melhor nobreza do Alentejo, o que permitia
a instituição de rendas e tenças de valor muito significativo. A maioria das
freiras tinha morada própria.
O Convento tinha capacidade para várias dezenas de
monjas, tendo atingido no reinado de D. João V a população de 80 freiras. Foi a
última casa monástica de Vila Viçosa, ficando na Casa de Bragança, depois da
extinção das Ordens Religiosas em 1834[4].
Talvez devido à riqueza dos seus manjares, D. João III
haja feito a mercê, em 1542, de “seis arrobas de açúcar por ano” e a razão
tenha sido a mesma utilizada por D. João V, quando promoveu as obras de
restauro neste espaço durante o seu reinado[5].
Para além da Tiborna, são provenientes deste convento
o Toucinho-do-Céu, o Manjar das Chagas, o Toucinho dos Duques, das
Biscoitinhas, as Fatias Duquesa, as Broas das Chagas e as Barrigas de Freira.[6]
Os mosteiros ou conventos de onde se conhecem mais
doces foram, com certeza, os habitados pelas freiras da Ordem de Santa Clara,
mais conhecidos pelas Clarissas.
O Real Convento de Nossa Senhora da Esperança de Vila
Viçosa foi fundado pela Duquesa D. Leonor de Lencastre, que adquiriu o solar de
Gonçalo Vaz Pinto em meado do século XVI. A primeira Abadessa Catarina Botelho,
veio do Convento de Santa Clara de Elvas[7]. Deste
espaço conventual são provenientes a Sopa Dourada do Convento da Esperança, as
Tibornas de Ovos do Convento da Esperança, os Agostinhos, as Broas cobertas, os
sequilhos de amêndoa e as trouxas-de-ovos[8].
No caso do Convento da Esperança de Vila Viçosa, a
tradição manteve-se com outros doces, como as rosquilhas, os rosquetes, a
abóbora e a cidra até à morte da última freira – soror Maria Carolina da
Piedade, em 1905.
Descreve o Conde de Sabugosa que numa das últimas
visitas da Rainha D. Amélia fez ao Convento, onde registou o apontamento do
claustro no registo dos “Mes Dessins”, as religiosas quiseram presenteá-la com
os bolos, os covilhetes de marmelada, boiões de compota, assim como o sericá[9].
Em todos os conventos calipolenses eram produzidas as
cavacas de Vila Viçosa, cujo fabrico terá pertencido originalmente ao Padre
Lobo, que as “cosia em folhas de couve para que ficassem frescas durante muito
tempo[10]”.
Em relação ao Convento de Santa Cruz, da Ordem de
Santo Agostinho (onde se encontra atualmente o Museu de Arte Sacra), são
provenientes, o Manjar do rei, o Toucinho amendoado, as Fatias Reais, as Rainhas-Cláudias
recheadas, o bolo das Freiras, os Bolos das Visitas e as Talhadas do Céu.[11] Este
convento é também do início do século XVI, com as primeiras freiras a serem
provenientes do Convento de Santa Mónica em Évora.[12]
No caso do sericá, a receita terá sido trazida por D.
Constantino de Bragança, aquando da sua passagem pela India, depois de 1561. É
muito provável que esta iguaria tenha sido trazida do Oriente por este ilustre
calipolense, nomeadamente por algum dos seus copeiros. É provável que a origem
do doce no contexto indiano tenha tido proveniência em Malaca[13]. Elemento
da Sereníssima Casa de Bragança, D. Constantino (1528-1575) provavelmente
nascido em Vila Viçosa, filho do quarto Duque D. Jaime, desempenhou o cargo de
Vice-Rei da Índia, entre 1558 e 1561.
Em relação ao Bolo –Duque, trata-se de uma iguaria de
amêndoa que terá tido origem numa homenagem do chefe doceiro do Paço de
Vila Viçosa ao Duque de Bragança D. Teodósio II por ocasião do aniversário, ou
por motivo do matrimónio com D. Ana de Velasco y Girón, filha dos Condes de
Haro, em 17 de Junho de 1603.
Quais as ideias que podem ser exploradas?
Aliar a História à Gastronomia, vertente equacionada
como elemento fundamental nesta iniciativa de promoção de produtos locais, em
iniciativas que podem decorrer em espaços conventuais. Explorar, investigar e
recuperar antigas receitas conventuais com o “cunho” calipolense ou ligadas à história
de Vila Viçosa pode constituir uma inovação
Com esta fundamentação histórica e as especificidades
referidas, porque não criar um evento, uma imagem de marca, relativa aos doces
conventuais, salientando as particularidades históricas e criar uma parceria
com a Pousada D. João IV para a realização de uma mostra nos claustros do
convento, com a participação de todos os empresários locais da restauração e
hotelaria e cidadãos em geral?
Este evento podia ser associado a uma recriação
histórica e, tendo em conta a ligação do Convento das Chagas (e dos restantes
conventos) a esta questão, parece-me ser muito interessante avançar para esta
possibilidade, sem necessidade de grandes investimentos. Temos os espaços, o
saber e a origem de muitas receitas. Entre outras ideias, promover um concurso
para o “Melhor Doce Conventual Calipolense”, através de um regulamento que
especificasse quais os ingredientes a utilizar, assim como a forma de
apresentação pode ser uma forma de angariar participantes e investigadores. O
mesmo se poderia aplicar em relação aos licores, de modo a abrir a esfera de
ação de participantes e públicos.
A organização de workshops e ateliers para adultos e crianças, com mestres
doceiros locais, seria um complemento a esta iniciativa, assim como a edição de
um folheto com as descrições e histórias de cada receita em particular.
Promover a realização de showcookings sobre
doçaria conventual, em parceria com o IEFP.
Apostar num divulgação a larga escala do evento a
realizar, através de um vídeo promocional que integrasse os espaços conventuais
e a elaboração das antigas receitas, seria outra das formas para dinamizar e
atrair públicos. Por outro lado, seria possível dar visibilidade a espaços que
normalmente se encontram encerrados (Claustro do Convento das Chagas, Claustro
do Convento de Santa Cruz, Claustro dos Capuchos, dependências do Convento da
Esperança)
Aliar a História com a Gastronomia podia representar
um passo qualitativo no que concerne ao desenvolvimento turístico local. Há um
mundo de potencialidades a explorar, em conjugação com espaços históricos que
têm condições para acolher este tipo de eventos (Convento das Chagas, Convento
da Esperança e Convento de Santa Cruz). Apostar na divulgação e na participação
da comunidade, penso que seria uma forte imagem de marca, associada a Vila
Viçosa.
[1] SARAMAGO,
Alfredo, Doçaria Conventual do Alentejo - As receitas e o seu enquadramento
histórico, 1997, Colares Editora, pp 121-129
[2] ROSA,
João, Alentejo
à Janela do Passado, Breves Noticias de Arte, Etnografia e História, Lisboa, 1940, pp. 48-49
[3] José
Emídio Amaro (1901-1985, foi um investigador da história calipolense, que
descreveu carinhosamente Vila Viçosa nos seus poemas e livros
[4] ESPANCA,
Túlio, Inventário
Artístico de Portugal – Distrito de Évora, Zona Sul, vol. I, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1978.
[5] ROSA,
João, Alentejo
à Janela do Passado, Breves Noticias de Arte, Etnografia e História, Lisboa, 1940, pp. 48-49
[6] SARAMAGO,
Alfredo, Doçaria
Conventual do Alentejo - As receitas e o seu enquadramento histórico, 1997, Colares Editora, pp 121-129
[7] ESPANCA,
Túlio, Inventário
Artístico de Portugal – Distrito de Évora, Zona Sul, vol. I, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1978.
[8] SARAMAGO,
Alfredo, Doçaria
Conventual do Alentejo - As receitas e o seu enquadramento histórico, 1997, Colares Editora, pp 121-129
[9] ROSA,
João, Alentejo
à Janela do Passado, Breves Noticias de Arte, Etnografia e História, Lisboa, 1940, pp. 48-49
[10] ROSA,
João, Alentejo
à Janela do Passado, Breves Noticias de Arte, Etnografia e História, Lisboa, 1940, pp. 48-49
[11] SARAMAGO,
Alfredo, Doçaria
Conventual do Alentejo - As receitas e o seu enquadramento histórico, 1997, Colares Editora, pp 121-129
[12] ESPANCA,
Túlio, Inventário
Artístico de Portugal – Distrito de Évora, Zona Sul, vol. I, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1978.
[13] ROSA,
João, Alentejo
à Janela do Passado, Breves Noticias de Arte, Etnografia e História, Lisboa, 1940, pp. 48-49
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