quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

O HELDER RECORDA A JUVENTUDE....

O Texto da autoria de Tiago Salgueiro a propósito do velhinho edifício da Sofal em Vila Viçosa, despertou as memórias do Helder, que neste texto nos recorda alguns episódios da sua juventude ligadas ao referido imóvel.

É caso para dizer « as conversas (neste caso memórias) são como as cerejas…..»

                                               Recordar Vila Viçosa
Tenho lido com atenção e bastante agrado os textos do Sr. Tiago Salgueiro, publicados no Al Tejo, que deixam transparecer a sua preocupação histórica.
Este último despoletou-me uma profunda emoção. Soltou-se-me, da minha prateleira memorial de recordações, um rol infinito de lembranças. Não por ter morado em Vila Viçosa, no bairro, junto da antiga SOFAL, quando foi ferroviário, mas pelas ligações a que essa fábrica de farinação agora me conduziu.
E, como passados sessenta e quatro anos, todos os envolventes a essa ligação, me parecem vividos ontem, quando a minha mãe, me dava um pacote de bolachas baunilha ou uma tablete de chocolate, para comer no caminho, se tivesse fome, num percurso de onze quilómetros, que ligavam Terena ao Monte dos meus avós, no Alandroal, e, por mais que me esforçasse para aguentar a gula, os doces tinham a sentença lida até à ponte.
 Desejava que o primeiro dia de semana, segunda-feira, chegasse rápido, para aquela deslocação repetitiva todas as semanas.
Chegado ao Monte onde a minha avó já tinha o jantar preparado, partia, já ao som da música do cinema Peças, para a Vila. Os filmes "Os Miseráveis" , " A Tulipa Negra", as serenatas mexicanas, Pedro Infante, Sarita Montiel, Sofia Loren, Kirk Douglas e tantos outros artistas que marcaram uma época, não mais se apagarão da minha memória, assim como os amigos, que então fiz, e, felizmente ainda são muitos e, por certo, me perdoaram a não os enumerar, pois se o fizesse correria o risco de melindrar aquele que eventualmente me esquecesse.
E, levava para catorze sacas de farinha, que eram bem pesadas, cinco mil e quinhentos escudos.
 Entregávamos, o meu avô e eu, depois de pagar a farinha, as taras, as sacas vazias, onde um grupo de senhoras, cujo encarregado tinha uma perna de pau, a segunda que vi além da do Zé Pedala, as remendavam e cosiam. Depois era carregar as sacas que escorregando do andar superior, caiam pelo buraco, que o Sr. Tiago aludiu, dentro do carro de varais puxado por uma muar. Muitas vezes rompiam-se pela velocidade adquirida e pela violência que caiam dentro do carro. 
"Caldo entornado", não da farinha, mas do meu avô, que queria que as sacas viessem compassadas para caírem uma a uma e as poder ajeitar. Não sei se vale a pena recordar que o meu avô, tinha a alcunha de "O Azedo".
Artur vem cá abaixo - gritava o meu avô, mas enquanto o empregado não chegava vinha sempre mais uma ou duas sacas, e, depois túnel abaixo lá aparecia o Artur, com uma grande agulha na mão. Idealizem a discussão.
Tinha acabado de sair da primária os préstimos, aqui, no carrego da farinha, ainda eram poucos, pelo que o meu avô acomodava as sacas, ficando eu a segurar a mula.  
O meu avô conduzia um macho corpulento, de meia-idade e já matreiro, o Bonito, eu conduzia a mula ainda nova, a Mugina, a primeira cria duma égua que o meu pai comprara para criar.
Um dia, depois de calçar as rodas do carro, julgando que a mula não se mexia, fui-me embora.
Andava uma rapariga a fazer-me "olhinhos", mas que ao pé de mim, pequeno como era, e agora grande não sou, parecia um eucalipto sem folhas, foi ver da dita cuja.
Quando voltei estavam duas sacas no chão e o meu avô com um negrume por baixo dos olhos.
A mula, nova e irrequieta, tinha-se mexido e fez as rodas galgar os calces. O meu avô nada me disse e nem era preciso, porque eu próprio me recriminei.
Na segunda-feira seguinte o ritual da entrega das sacas e da compra da farinha, pertenceu, exclusivamente, ao meu avô, tendo-me refugiado nos urinóis da casa de banho, que me permitiam ver o edifício onde aquele ato decorria. Vi a rapariga olhar para todos os lados e depois ir-se embora.
Quando cheguei ao pé do meu avô, olhou-me de alto abaixo, surpreso, nada me dizendo,  sorriu.
A fábrica tinha boas e amplas instalações para albergar as bestas, um grande quintal com barracão e manjedoura para os animais. Lá as deixávamos descansados quando necessário.
Depois dos preceitos que acabei de descrever era caminhar vinte quilómetros ao rigor das chuvas de Inverno ou do escaldante calor de Agosto. O meu avô só almoçava em Terena quando chagávamos cerca das três da tarde, eu comia quase sempre canja de arroz ou massa de pombo manso do pombal do Monte. E, que bem me sabia aquele almoço.
Um dia comprei lá em Vila Viçosa uns óculos escuros. Vaidade de menino. O cantoneiro a quem sempre cumprimentava notara que eu ia sem óculos. No regresso e a descer com o carro carregado, a mula no seu instinto apercebia-se que custava menos segurar o carro, metendo uma roda na berma, ato que o cantoneiro não queria. Ao avistá-lo puxei a mula pela rédea esquerda, fazendo com que a roda direita entrasse no alcatrão. Ao passar pelo cantoneiro este disse-me : - Com os óculos vês mais mal -, claro nesse dia ficou sem as minhas boas tardes, não de propósito mas pelo envergonhaço.   
O meu pai recomendava-me para me descer nas subidas e auxiliasse a mula, o que só passei a fazer depois desta, na ladeira de Pardais ter-se ajoelhado por ter escorregado. Num ápice saldei do carro travei-o e agarrado ao varal esquerdo do carro gritei: Levanta-te Mugina, e a mula, esforçando-se, consegui levantar-se. A partir deste acontecimento passei a ser mais cauteloso e a descer-me em todas as subidas. Como era difícil à Mugina subir a ladeira do chafariz à entrada de Terena.
Recordo, ainda, uma frase que os meus pais, nessa altura, muitas vezes, diziam, fazendo alusão a um seminarista nortenho, acerca de Vila Viçosa:
- Vila Viçosa é tão bonita, tão bonita que só o nome lhe basta -  e eu interrogo-me e pergunto: - Merecerá a sua beleza ser manchada pelo expresso abandono do Edifício da Sofal?
Em consciência, de bom grado agradeço ao Sr. Tiago Salgueiro, este meu regresso àquele tempo de menino adolescente, que me pareceu ser ontem e que revivi como se fosse hoje e repetir-se amanhã.
Obrigado. muito obrigado.
Hélder Salgado
Terena, 14-12-2016.

2 comentários:

Anónimo disse...



OBS.


Helder


Dá-me a sensação que andas em maré de saudosa inspiração criativa com os

bons (pre)textos que invocas e reinventas. Seja à conta do Natal/ ou da

Sofal (até rima), os enredos narrativos que vais entretecendo e contando

caiem sempre bem no Al tejo, nos amigos e em tantos outros

leitores,numerosos, do Al tejo.

Desta vez, vou só acrescentar que à tua mula amiga e preferida "Mugina"

quase apetece também chamar-lhe "Imagina".

Continua pois a imaginar estradas de Vila Viçosa, caminhos do Alandroal,

destinos de Terena!


Abraço


Antonio Neves Berbem

Armando Quintas disse...

sobre a história dos primeiros anos da sofal

consultar:

https://www.dropbox.com/s/pa16zovh1763s41/01%20Callipole.pdf?dl=0

cumprimentos

armando quintas