segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

MEMÓRIAS - Pelo Luís de Matos


                                               A VALENTIA E O SABER DO EGUARIÇO
Situamo-nos em Terena. Seguindo em direcção ao Santuário de Nossa Senhora da Boa Nova, atravessamos a Ribeira do Lucefécit, caminhamos pela estrada da Barranca de Baixo, atravessamos o Ribeiro do Alcalate, junto ao Pigeiro Velho, onde o Ti Miúdo foi hortelão durante muitos anos, viramos à esquerda subindo a elevação, um pouco mais à frente logo se avista o Monte do Pigeiro. As extremas da herdade perdem-se de vista. No entanto, o Ribeiro do Alcaide e a Ribeira do Lucefécit fazem parte das extremas e cujas margens são guarnecidas pelos muitos frondosos aloendros que florescem nos meses de Junho e Julho em lindos cachos de cores vermelha e branca que contrastam com a vegetação seca ou amortecida pelos calores estivais. Nos terrenos desta herdade existiam montados de azinho e simultaneamente produziam cereais e pastagem para os gados. Actualmente, e ainda bem, tudo foi alterado, nomeadamente a paisagem e cuja agricultura feita à base de regadio sendo a produção, certamente mais rentável. Mas voltamos aos tempos mais recuados. 
Nesta herdade, para além de outros rebanhos, existia uma manada de éguas. O Eguariço era um homem ágil, valente e destemido como não havia outro em toda a redondeza, de seu nome José Inácio Gonzaga de Paiva, mais conhecido por Ti Zé Fragas, casado com a minha tia Catarina e a sua casa pegava com a dos meus pais na Rua do Forno. Vestia calça de cotim ou de saragoça, camisa aos quadrados pequeninos, atada com um nó mesmo por cima do cinto largo de cabedal e bota cardada. No Inverno, usava safões e samarra de pele de ovelha preta. Este homem, na sua profissão de Eguariço ou seja o encarregado da manada das éguas tinha deveres de muita responsabilidade e de não menos sabedoria. Os principais eram: guardar e apascentar a manada, reparar nas éguas que estivessem aluadas ou seja, ver as que mostravam excitação genética para as levar ao lançamento ou cobrição, regulando-lhe os saltos pelas horas e intervalos em uso, assistir e dirigir esse acto, para tal tinha que pear a égua e segurá-la pelo cabresto durante a cópula; ter todas as cautelas possíveis na parição das éguas de forma que não houvesse desastre nas crias; tosquiar as crinas e as rabadas das éguas e poldros; velar pela ferragem em véspera da debulha. Neste trabalho, se a manada é grande e os calcadoiros a debulhar são avultados, então o Eguariço tem um ajuda extraordinário, indicado pelos ganhões. 
Como se pode ver o Eguariço era um trabalhador altamente qualificado. Ele tinha também a responsabilidade de amansar as éguas isto é, prepará-las para que ficassem em condições de ser montadas por qualquer pessoa, o que diga-se em abono da verdade não devia ser tarefa fácil.
Segundo dizem, era neste trabalho que também os dotes do Ti Zé Fragas muito se manifestavam, pois fazia-o com muita audácia, sabedoria e orgulho. Dizem os trabalhadores que com ele privaram, montava as éguas, mas todas sem excepção, sem lhes colocar qualquer manta ou cela e muito menos qualquer cabresto galopando a toda a velocidade, segurando-se apenas pelas crinas e guiando o animal com os pés ou quando muito com a ajuda de uma varinha. Certo dia, muito antes da construção da Barragem do Lucefécit, a Ribeira do mesmo nome levava uma grande cheia, cujas águas galgavam as margens para o lado da Barranca de Baixo, o Ti Zé Fragas, como tinha necessidade de passar a ribeira para o lado do Pigeiro, agarrava-se ao rabo da égua, de modo que o animal pudesse nadar à vontade e assim ele passava a Ribeira do Lucefécit, também conhecida pela Ribeira da Boa Nova. Muitas noites o Ti Zé Fragas vinha dormir a casa, em Terena. O seu transporte era uma égua. Montava-se numa qualquer, aquela que estivesse ali mais à mão, o que quer dizer que não a escolhia, (tal era a facilidade deste autentico cowboy alentejano lidava com este tipo de animal), chegava ao Adro da Igreja Matriz (a escassos metros de casa), dava um toque na égua e esta voltava sozinha para a manada. De madrugada, o Ti Zé Fragas regressava novamente para junto da sua manada de éguas para aí fazer mais um dia de 24 horas trabalho. Exactamente. Porque o maioral tinha que estar sempre presente, e junto dos animais, não fosse o diabo pregar alguma partida. 
O Ti Zé Fragas deixou-nos a todos ainda muito novo, aos quarenta e três anos de idade. Era realmente um homem valente.
Luís de Matos


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