recordações do passado Presentes na memória do Prof Vitor Guita.
Estas nossas Memorias do mês de Novembro poderão parecer, à
primeira vista, um tanto ou quanto mórbidas. Saiba, porém, estimado leitor, que
não nos move qualquer sentimento fúnebre. Muito longe disso. Deixámo-nos simplesmente
conduzir pelo calendário, que apontou para o dia 1 de Novembro, e tudo o mais
veio por arrastamento. Recordámos coisas nunca escritas, dessas que não vêm nos
livros, memórias pessoais que são, algumas delas, memórias colectivas. Corremos
o risco de não saber o percurso exacto que iríamos trilhar nem onde iríamos
desaguar, o que não deixou de ser estimulante.
Tudo começou na véspera do dia de finados. Como aconteceu
seguramente com centenas de montemorenses, fizemos a nossa habitual romagem aos
cemitérios da cidade. Detivemo-nos mais demoradamente no da Carreira de S.
Francisco, que, pela sua antiguidade, é mais propício a recordações. Além
disso, é lá que repousam os nossos entes mais queridos.
Em vez de uma manhã tristonha, sonolenta, tipicamente
outonal, o dia rompeu deslumbrante. Em nossa opinião, demasiado luminoso e
quente para esta época do ano.
Saímos cedo de casa em direcção a S. Francisco. Dum lado e
doutro da porta principal do cemitério, alinhavam-se os vendedores de flores da
época, especialmente de crisântemos roxos, brancos, amarelos, alguns com
pétalas já meio esgadelhadas. Ali perto, o homem das farturas, e a mulher das
castanhas espreitavam a sua oportunidade de fazer negócio.
Estivemos ali alguns instantes observando o vai vem de
carros e pessoas, ao mesmo tempo que fomos remoendo memórias distantes,
nomeadamente a do coro de gente pobre que, numa voz suplicante, costumava vir
ali pedir esmola. Os peditórios, agora, têm outros contornos.
No interior do cemitério, percorremos o vasto labirinto de
campas apinhadas, o que nos obrigou, nalgumas zonas, a fazer vário exercícios
de equilibrismo e contorcionismo.
Desde os tempos da infância que, na véspera de finados,
cumprimos o ritual de visitar um número significativo de sepulturas, em especial
as que sempre mais impressionaram os nossos sentidos. É o caso da campa onde
jaz Lipo Herczka, o prestigiado treinador húngaro que, em tempos, orientou a
equipa do União. Os emblemas dos grandes clubes por onde o mister passou
continuam intactos, e a bola de pedra contínua estática sobre o rectângulo de
mármore, com a mesma imobilidade de há mais de sessenta anos.
Faz parte do nosso ritual visitamos outros monumentos
fúnebres, umas vezes atraídos pela beleza poética dos epitáfios, outras pelo
simbolismo das esculturas: imagens religiosas, ferramentas das mais diversas
profissões, alfaias agrícolas…
Numa dessas campas aparece esculpida uma junta de bois
puxando um arado, a indicar ligações da família jacente à agricultura.
Impressionante é o Senhor dos Passos, logo à entrada, que
nos parece cada vez mais cansado. Será de coabitar com os mortos ou da
incorrigibilidade dos vivos?
As ruas dos jazigos são ponto obrigatório de paragem.
Costumamos demorar-nos por ali, apreciando os mais diversos elementos decorativos,
que vão do estilo gótico ao neoclássico, até chegar às linhas directas dos
tempos modernos. Quando se espreita para o interior de alguns deles, já só o
tempo parece ali habitar.
Este tema dos finados traz-nos frequentemente à lembrança
várias histórias. Uma dessas narrativas, meio rocambolesca ou mesmo a atirar
para o humor negro, foi passando de boca em boca, de geração em geração de
montemorenses. Referimo-nos ao episódio ocorrido, há muitos anos, com a figura
popular de José Roque, a quem poderíamos apelidar de “o morto-vivo”.
Ainda guardamos a imagem, embora difusa, do homem que serviu
os Pereira Rosa, uma das casas ricas de Montemor. Conseguimos revê-lo no alto
da Rua Nova ou nas proximidades do mercado, com uma espécie de bibe axadrezado
atado à cintura, como era habitual nas famílias abastadas da vila. Se a nossa
memória não nos atraiçoa, José Roque, costumava trazer um barrete preto enfiado
na cabeça. Estivemos à conversa há dias com Urias Roque, seu sobrinho, que nos
ajudou a avivar o perfil do familiar e a avivar as peripécias de que ele foi
protagonista.
Para o Zé Roque (era assim que ele era tratado) a pinga era
a sua perdição. Consta que, certo dia, a embriaguez era tamanha que no hospital
o deram como morto. Foi, depois, envolto dos pés à cabeça num lençol e colocado
na pedra fria da casa mortuária. A notícia espalhou-se pela vila: “ Morreu o Zé
Roque! “.
Milagre ou talvez não, durante a madrugada o suposto defunto
veio a si, libertou-se das amarras que lhe tolhiam os movimentos, abriu a
porta, atravessou a rua larga e foi direito à taberna do Alcácer com o sentido
numa cachaça. Nesse tempo, as tabernas abriam cedo, já que muita gente
trabalhava de sol a sol.
Agora, imagine-se o ar incrédulo e apavorado do taberneiro,
que já saia da “morte” do freguês e viu entrar porta adentro, a desoras, aquele
vulto espectral!
Disse-nos o amigo Urias que, durante muito tempo, o dono da
taberna não queria ouvir falar no Zé Roque. Nem pensar!
Esta e outras histórias do género não têm por objectivo
apoucar seja quem for. É antes, uma forma de dizer que todas estas pessoas
estão bem vivas na nossa lembrança e que nem só de figuras ilustres se compõe a
vida das comunidades. Também cabe no livro das recordações as pessoas simples,
as coisas triviais que fazem parte do nosso imaginário. Não se trata de
nostalgia, mas de mmória.
Já que fomos por aqui, deixe-me dizer-lhe, amigo leitor, que
a nossa cabeça está povoada dessas figuras populares. Escolhemos ao acaso, mais
uma dessas personagens, de que os montemorenses mais antigos se recordarão.
Chamavam-lhe “Velho Pão Mole” e impressionava pelo seu aspecto agreste, pela
sua cara de mau.
Muitos lembrar-se-ão do homem que costumava vagabundear
pelas praças e ruas da vila, sem casa nem destino certos. Usava chapéu escuro e
gasto, pala a cobri-lhe um dos olhos, manta às costas e empunhava habitualmente
um cajado.
Esta figura, que correspondia à imagem que tínhamos de um
maltês, foi-nos sempre referida como uma espécie de papão, principalmente
quando fazíamos as nossas travessuras lá em casa ou nos recusávamos a comer os
nabos, as couves e outra hortaliça. “Se não comes tudo, vou chamar o Velho Pão
Mole”. Foi graças a ameaças deste tipo que conseguimos fortalecer o nosso
complexo vitamínico.
O Pão Mole não era mais do que um desses deserdados da
sorte, a quem atribuem famas terríveis. Em muitos casos, tratava-se de gente
boa que a sociedade enjeitou.
Um amigo nosso, que viveu grande parte da sua vida num dos
moinhos do Almansor, contou-nos que o velho aparecia frequentemente ali pra o
lado da ponte de Lisboa, mendigando uma falca de pão e pedindo que o deixassem
dormir dentro do forno, ainda tépido, em dias de cozesura. Para o velho Pão
Mole, o moinho e o forno eram, nas noites frias, o seu palácio encantado!
Bem o espaço e o tempo da escrita estão a expirar. Até breve
Vitor Guita
In “O Montemorense” –
Novembro 2016
Transcrição autorizada
pelo Autor
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