sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

COM ESTE POEMA DA AUSENDA,  E ESTE CONTO DE NATAL DO  LUÍS DE MATOS,  O AL- TEJO E TODOS OS SEUS COLABORADORES, DESEJAM A TODOS OS SEUS LEITORES
                                                                             BOAS FESTAS
Natal, tempo de paz, perdão, amor.
Corações abrindo de par em par...
Aqui e além tudo faz lembrar,

Que nasceu Jesus, Nosso Salvador.
Cessa-se a guerra porque é Natal,
O Menino não quer hostilidade.
Andou no Mundo a espalhar bondade,
Que há-de cobrar no juízo final.
Se o sentido do Natal é tão forte,
Que tem a força de parar uma guerra,
Dando lugar à vida e não à morte,
Porquê, a vil maldade não se encerra,
Bem longe do Mundo e nos dá, por sorte,
O Natal, um ano inteiro, na Terra?!
Ausenda Ribeiro 
                                                                 UM CONTO DE NATAL
Todos os anos, no início de Dezembro, eu tinha um sonho. Sonhava que ia a caminho de Belém.  
Recordo-me como se fosse hoje. No Inverno chovia muito. Por isso havia muita humidade. Quando fazia frio era mesmo a sério. Durante a noite caiam grandes geadas. Ao acordar, antes de ir para a escola tinha o cuidado de me assomar ao postigo da porta da rua e via tudo branquinho. As oliveiras e árvores de fruto das tapadas e dos quintais em frente da minha casa, a rua e o largo calcetados pareciam que tinham sido enfarinhados durante a noite. Durante o arrefecimento nocturno, as pequenas poças de água dos caminhos ficavam congeladas e os meus pés pareciam não dar pelo frio. Era uma alegria enorme pisar o gelo que parecia vidro. Eu continuava a sonhar que ia para Belém.
Como havia muita humidade, o tempo era propício à criação de musgo. Havia muito musgo nos troncos grossos das centenárias oliveiras e nos muros de xisto das tapadas e dos quintais. Arrancava o musgo em grossas fatias. Que coisa fofa, o musgo! Depois colocava-o com todo o cuidado num cesto de verga e trazia-o para casa. Entregava-o à minha avó para ela cobrir a estrutura feita com tábuas de caixotes de sabão azul, previamente montada a um canto da sala. Com a sua paciência e sabedoria, iam nascendo caminhos feitos com areia e pedrinhas. Depois, com o jeito e a sensibilidade que só as avós têm na ponta dos dedos, espalhava um pouco de farinha que parecia a geada. Desfiava um pouco de algodão e fazia pequenas pastinhas que espalhava pelas montanhas, pelos campos e caminhos, como se fossem flocos de neve.
No dia seguinte, enquanto eu estava na escola, a avó continuava o seu trabalho meticuloso. Ao fim do dia, quando regressava a casa, já tinham nascido um lago e um rio feitos com pequenos pedaços de espelho. O rio podia ser o Jordão onde João Baptista baptizava os fiéis. Uma montanha aqui, outra acolá, uma cabana de pastores, umas ovelhas branquinhas com os seus pequenos borregos, umas cabras e os seus cabritinhos que ela espalhava pelas montanhas e planícies.
Enquanto tudo isto ia acontecendo, eu pensava para comigo. Já estou mais perto de Belém. Já não deve faltar muito tempo para chegar ao meu destino. Eu e as minhas irmãs, os meus primos e vizinhos, todos os miúdos da rua fazíamos uma peregrinação a Belém. Mas a avó gostava de fazer o seu trabalho em silêncio e mandava-nos embora. “Vá, já viram um bocadinho, agora deixem-me trabalhar”, dizia a avó. Eu dava muito valor ao seu trabalho. Ela estava a construir um cenário bíblico. Tudo era mágico para mim. Era como se fosse um sonho. E o mais engraçado é que acabei por ficar sempre sonhando, que todos juntos íamos para Belém.
Enquanto isto acontecia em minha casa, também na igreja, do dia para a noite, nascia um presépio. Havia uma estrutura de madeira em forma de cabana, o burro, a vaca, os três reis do Oriente, Maria, José e Jesus deitado nas palhinhas. Eu achava aquilo um pouco estranho, sem graça. Via-se que não era um presépio feito com amor, com naturalidade.
O presépio feito pela avó transmitia-nos magia. Era como que um sonhar acordado. A minha avó tinha todos os bonecos guardados numa pequena arca na casa do quintal e não queria que mexesse-mos nela. Ciosa como era, só a avó é que desembrulhava as figuras com todo o cuidado. Tinha receio que deixássemos cair as figuras no chão e se partissem. Começava então a coloca-las em lugares estratégicos como só ela sabia fazer. Os caminhos que a avó tinha feito iam ficando cheios de peregrinos. Os pastores desciam dos montes. O maior, lá mais ao longe podia ser o Sinai por onde andou Moisés. Os Magos vinham a pé, os burros e os camelos vinham carregados de presentes. Traziam mirra, incenso e oiro.
A avó ainda não tinha colocado a cabana com Maria, José e o Menino. Nem se via ainda a estrela mais brilhante. Havia muitas estrelas no céu, mas a mais brilhante, ainda não tinha nascido.
Chegou a noite da missa do galo. Interrompemos a consoada e lá fomos nós ouvir a missa à meia-noite. Quando regressámos a casa, a avó esperava-nos com um ar misterioso. Lá estavam a cabana, com a estrela mais brilhante, Maria, José e Jesus deitado nas palhinhas aquecido pelo bafo da vaca e do burro. Os pastores e os três reis Magos, Gaspar, Belchior e Baltazar e o seu séquito traziam agora o oiro, o incenso e a mirra para depositarem junto do Menino. E nós lá estávamos assistir a tudo isto. Tínhamos finalmente chegado a Belém para adorar o Menino. O nosso sonho tinha-se concretizado. E a estrela mais brilhante, finalmente brilhava dentro da nossa casa e dos nossos corações. Toda esta magia podia agradecer à avó. Ela era a nossa estrela de prata, que nos guiava cheia de magia.
O Natal tinha entrado para dentro de nós e da nossa casa.
Os anos passaram. Fiz-me homem e mandaram-me para a guerra em África. Fui para um país, onde o clima em nada se assemelhava àquele a que estava habituado. Era quente e muito húmido. Tive que me habituar ao clima daquela terra de barros vermelhos, situada entre o Equador e o trópico de Câncer. Mandaram-me para bem longe da avó. Passei a conviver com homens que também tinham outras avós. Eram de outros lugares e também lá faziam outros presépios.
Durante o longo tempo em que andei por aquelas paragens, em todos os Natais deixaram de se fazer presépios, árvores de Natal e muito menos troca de presentes. Fazia-se um jantar de Natal para todos os homens. Não havia uma única mulher e muito menos uma avó. A noite de Natal era sempre uma noite muito especial. Tornava-se nostálgica. A palavra saudade estava sempre no ar. No dia de Natal, a solidão acompanhava-me a todas as horas sem nunca chegar a compreender porquê. Por mais que me interrogasse, nunca fui capaz de ter uma resposta.
Naquela noite de Natal, depois do jantar, com dois amigos, comprámos uma garrafa de Whiskey e depressa o líquido começou a baixar na garrafa. Juntaram-se outros amigos e bebemo-la até à última gota. Falámos da noite de Natal, da família que estava distante, dos nossos sonhos e também de presépios. Rimos, choramos e cantámos abraçados. Até os mais valentes, que tinham a mania que eram duros, deixaram cair uma lágrima furtiva. Esses, os duros, dizem que nunca choram, mas não é verdade. Vi como eram sensíveis e o Natal pode tornar os homens melhores, mesmo naqueles momentos muito difíceis. Só é pena que não seja assim todos os dias. Mas há sempre um dia que isso acontece. E, naquele momento, podia estar a acontecer o mesmo em qualquer outro Natal. Seria a minha última noite de Natal passada no sertão africano e, abraçados, cantámos ao Menino a caminho de Belém.
Era a canção de Natal que todos os anos cantava em família e não me tinha esquecido. “Anda burriquito/ Vamos a Belém/ Ver o Menino/ Que a Senhora tem”.
 Luís de Matos

Ilustração de Costa Araujo Araujo

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