quarta-feira, 30 de novembro de 2016

VASCULHAR O PASSADO

Uma vez por mês Augusto Mesquita recorda-nos pessoas, monumentos, tradições usos e costumes de outros tempos

                                              
                                               Pelo facto do texto relacionado com o historial do Convento de S. Francisco ser extenso, optei por distribuí-lo por duas partes.

I Parte

Segundo os historiadores Pinho Leal e Túlio Espanca, o mosteiro teve origem na ermida de N.ª Sr.ª da Graça em 1495. Integrado na Seráfica Ordem Franciscana, ignora-se a data exacta dos seus alicerces, que alguns cronistas concretizam com carácter regular, no séc. XVI, no eremitério de Nª Sª das Graças. O depoimento escrito mais antigo que se lhe refere é um alvará de D. João III, de 1532, autorizando que o administrador das Capelas Régias, Diogo Lopes, conceda ao Padre Provincial da Ordem, fr. Francisco de Évora, uma esmola do dinheiro que se achava em depósito, para se dar início ao claustro do convento. Deste reinado, parece ser a maior parte do edifício, conforme se verifica pelo exame da sua arquitectura, sobretudo nas partes mais antigas – corpo da nave, capelas primitivas da banda sul (obstruídas) e sala capitular. No dia 23 de Abril de 1577 o alcaide-mor D. Fernão Martins Mascarenhas, deu solenemente à comunidade, uma relíquia preciosa da cabeça do Apóstolo S. Filipe, concessão que, pela concorrência de fiéis em veneração periódica, deu origem à feira anual da povoação. A Feira de Abril, como era chamada, foi durante vários anos a principal feira montemorense.
A comunidade regular era governada por um guardião e habitada por dez religiosos de hábito e três leigos.
            A igreja, que está voltada para a banda ocidental, compõe-se de uma só nave de planta rectangular, contrafortada, protegida de gigantes decorados por gárgulas de granito, com bestiários de especial rudeza escultórica, de inspiração antropomórfica e rematados por pináculos piramidais ou de ornatos de secção piriforme, de alvenaria. O pórtico-coro, do séc. XVII, aberto em vão de arcada plena, deixa bem visíveis os botaréus angulares da primitiva frontaria; o mesmo arco, muito ancho, é composto de pilastras guarnecidas de ornatos octogonais, estucados, e cornija lobulada, posterior. Frontão de enrolamento com grande tabela barroca das armas dos Patriarcas S. Francisco e Santa Clara de Assis, além de fogaréus nos acrotérios, muito engalanados, terminam a cimafronte. O alpendre, vasto e ainda do séc. XVI, está apoiado numa cobertura de nervuras de aresta viva, também de alvenaria, rompentes de mísulas graníticas, singelas; tem, no alçado norte, vestígios de opulento arco redondo, que denuncia a entrada da antiga capela da venerável “Estação da Via Sacra”.
Curioso portal do estilo Renascença, emoldurado e datado no lintel, de 1546, é ornamentado, lateralmente, por duas altas pilastras truncadas, igualmente graníticas, em forma de volutas palmares, nascentes de capitéis estilizados, da ordem coríntia. Sobrepujante, nicho vazado posteriormente no roço da frontaria, destinado ao padroeiro e hoje vazio, moldurado com ornatos de estuque e envolvido por composição dourada.
Nos prospectos envolventes da portada, subsistem duas cruzes de cerâmica azul e branca (séc. XVIII), de uma Via Sacra, e a Cruz da Ordem de Malta, de secção discoide, de pedra. Teve grande efígie parietal do “Senhor Jesus dos Aflitos”, culto ulteriormente transferido para a demolida ermidinha do mesmo título, que se situava defronte da fachada principal da igreja.
            O corpo anexo do templo para o lado norte, destinado a Portaria e Hospedaria de peregrinos, está muito arruinado. Defendido por botaréus de alvenaria, tem dois pisos abertos por janelas vulgares, de granito, com repisas externas, salientes, destinadas, certamente a exposição de vasos. Nesta banda e sensivelmente recuado, rasga-se o corpo do claustro e suas dependências, que teve início na década de 1530. É lançado em planta quadrangular, com arcada redonda de cinco tramos atarracados, protegido por gigantes que escoravam o andar superior, actualmente perdido por total desmoronamento. Encontra-se arruinado e o lanço ocidental, de acesso ao refeitório, do mesmo modo desaparecido. Obra de arquitectura regional populista, de fins da Renascença, sem precauções monumentais esteve, porém, com os vestígios acentuados denunciam, nas abóbadas, nervuradas, recoberto de composições esgrafitadas e pintadas a escaiola colorida e também de fresco, com temas geométricos, largas albarradas e lançarias florais, barrocas, que fizeram escola na vila e de que o mais perfeito exemplar existente é o templo dominicano da saudação (séc. XVII). Os nervos, encruzados e de aresta viva, de tijolo, sem chaves, nascem de mísulas cilíndricas, de pedra, molduradas.
A ala mais nobre do claustro – do oriente –, onde se rasga a sala do Capítulo, que foi sepulcro da família Vila Lobos e Vasconcelos, é contrafortada por cantaria de granito. Deste mesmo material é a formosa portada do estilo híbrido manuelino-joanino, de arco lobulado e abatido, com três ribetes de meias canas lisas e o axial torso, com bases encordoadas e flordelizadas, de capitéis, formando cordas entrançadas, bolas e outros elementos afins do mesmo estilo. A dependência, de planta rectangular, com tecto polinervado guarnecido de bocetes redondos, esculpidos com florões naturalistas e a chave central de escudete liso (ou picado intencionalmente), de forma primitiva e cercadura de corda, tem nervos de alvenaria e mísulas graníticas. Perdeu o banco da comunidade, mas conserva o antigo e original revestimento azulejar, de alizar muito alto, de padrão enxequetado, a cor azul e branca, do último terço do séc. XVI. No fundo e eixo da sala, rasga-se uma interessante capela edicular, também de pedra e arco de querena, de reflexos mudejares, com molduras, colunelos e capitéis ornatados por atributos flóricos, capulhos planturosos, cordas e bolas da arte manuelina. Não tem hoje altar, mas guarda nas paredes laterais, silhares de azulejos policromos, do tipo de tapete, e um curioso frontal de altar de cerâmica seiscentista, decorado por aves, flores exóticas e outras indígenas – patos, gafanhotos, gazelas, etc. – extremado com barra de serafins, arabescos, vasos e moldura de renda (séc. XVII – meados).
No mesmo alçado do edifício, subsiste outra portada granítica, de chanfradura quinhentista.
O corpo sobranceiro, a ocidente, de arquitectura mais modesta, conserva uma adulterada capela anichada contra a parede do subcoro da igreja, disposta em dois tramos e de cobertura nervurada, em cujos panos se identificam temas esgrafitados, com medalhões dos “Passos da Paixão de Cristo”, maltratados a ponto de ser impossível a sua classificação artística. No convento, segundo as crónicas, existiram, ainda, os altares de “Nª Sª da Conceição” e de “S. Filipe”.
Contíguo, fica o refeitório monástico. Beneficiado na década de 1950 a expensas da Câmara, assim como o “Capítulo”, é obra fruste e provinciana disposto em planta rectangular de duas naves e quatro tramos de abóbada artesonada, singela, apoiada em pilares graníticos (dois cilíndricos), decorados por capitéis lisos e ábacos volumosos de particular rudeza.
No centro da quadra, subsiste o poço de pedra, envolvido por tanques de grossa alvenaria, com bancos e alegretes esgrafitados, em franca ruína. No pavimento das alas do claustro, existiram algumas sepulturas antigas, que infelizmente se perderam.
O campanário, de três olhais, muito ornamentado por obra de alvenaria escarolada, pujante de volutas, molduras e fogaréus, lembrando as espadanas andaduras, levanta-se na ilharga setentrional da igreja e apenas conserva um sino grande, de bronze fundido, com legenda rebordada em duas linhas e cruz florente, relevada.

DOMINE  +  ECCE  +  CRVCEM  +  FVGITE  +  PAR-
                                              TES  +  ADVERSAS  +  FACT  +  ANNO  +  DO-
                                              MINE  +  1764  +  PRES  +  R  +  P  +  +  F  +  IOZEPH +

Relativamente moderna é a parte ocupada pelo necrotério do Cemitério, do lado oriental, com pavilhão de alvenaria aberto por portas e janelas de padieiras graníticas, vulgares, de características singelas do seiscentismo. O balcão principal era de sacada. Algumas salas térreas, com tectos de barrete de clérigo, sob fortes camadas de cal, deixam antever, subjacentes, composições de pinturas a fresco, engrinaldadas e coetâneas.
O templo de “S. Francisco”, alongado, dispõe-se numa só nave composta de cinco tramos e coro, de planta rectangular e abóbada de artesonado ainda dentro da tradição ogival, com nervuras de alvenaria de aresta boleada, ornadas de chaves-mestras circulares, de granito, estas com esferas armilares e escudos de armas da Casa Real Portuguesa, e as intermediárias de elementos flóricos, naturalistas. As mísulas, de secção prismática, em obra grosseira também de pedra, conservam decoração da arte manuelina. Trabalho de feição regional, de alvores do reinado de D. João III (década de 1530), arcaizante, mas de certa dignidade de volumes arquitectónicos, nos panos intervalares dos aranhiços mostra, na usança dos mestres alvanéis eborenses de quinhentos, os clássicos lintéis de massa fingindo ligação de cantaria, para imprimir maior robustez à construção.

Augusto Mesquita


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