Uma vez por
mês o Prof,. Vitor Guita traz-nos à memória, recordações do passado
A
intensa actividade teatral em que estivemos envolvidos Durante o mês de Outubro
não permitiu que fizéssemos a nossa habitual digressão pelos corredores da
memória, reavivando as nossas próprias lembranças ou captando ecos de histórias
antigas contadas por gente com mais idade.
Aproveitámos
a situação para fazer um ponto da situação, reflectindo sobre o que já
escrevemos e o que ainda podemos escrever. Questionámo-nos acerca deste nosso
projecto, que tem perto de uma dezena de anos e que consta de mais de uma
centena de crónicas/memórias.Relemos
alguns dos nossos primeiros textos para ver se ainda sentíamos o mesmo prazer
do momento em que os idealizámos e pusemos no papel. Muitas coisas gostaríamos
de modificar, mas sentimo-nos globalmente agradados, por vezes surpreendidos com
boa parte daquilo que escrevemos e partilhámos com os amigos leitores.
Por fim construímos um mosaico com imagens
anteriormente utilizadas e escolhemos excertos que revisitam etapas do nosso
percurso – uma espécie de Memória das memórias. Aqui vão alguns retalhos dessas
lembranças
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Estivemos
na Praça Dr. Miguel Bombarda (antiga Praça da Hortaliça). Ficaríamos ali uma
eternidade a ouvir relatos de memórias que ajudam a entender melhor o que foi a
terra da nossa infância e dos nossos avós.
Detivemo-nos ainda largos minutos, na Rua dos
Almocreves. Também ali nos apeteceu recuar na História e ficar preso nos
belíssimos detalhes arquitectónicos da velha rua: As chaminés de prumada, o
portal gótico… Cá em baixo, a rua fica mais afunilada, a contrastar com a
largueza de horizontes a que os almocreves estavam habituados. Muitos desses
transportadores de mercadoria eram homens viajados e constituíram, noutras eras,
uma classe de algum peso em Montemor. Destronou-os o revolucionário
caminho-de-ferro. Que, por sua vez, foi deposto pelos modernos transportes
rodoviários. Assim se vai fazendo “a marcha do progresso”
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Voltamos
de novo à Praça. Sempre que olhamos para aquele recinto imenso, imaginamos um
enorme anfiteatro ao ar livre, uma espécie de theatron dos gregos. Outras
vezes, concebemos um palco majestoso, que nem sequer precisa de cenário de
fundo. A tela já lá está, naturalmente bela.
Durante
uns minutos ficamos cá em baixo, a apreciar o espectáculo!
De tanto recuar, ficámos encostados à porta da
Carmina Catita. Entramos para conversar. A Carmina, que ainda ajudou a mãe
Natália na venda da fruta e hortaliça, falou-nos nos tabuleiros de madeira
alinhados debaixo das palmeiras, sobre os quais se amontoavam os produtos
frescos das hortas e pomares. Durante anos, uma das bancas da frente pertenceu
ao Manuel Filipe, um conhecido vendedor. Ah! As dulcíssimas e tenras couves! As
cabeças ossudas dos nabos e a rama farta, que se podia comer à vontade!
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Voltámos
à conversa com a Carmina. Depois de nos garantir que a sua moradia foi, em tempos, um movimentado café, a nossa
anfitriã fez o retrato à la minuta do que foi, há umas décadas, a antiga Praça.
Antes
de nos despedirmos, a Carmina quis deixar claro que, em mais nova, morou na Rua
dos Almocreves.
A
sua porta ficava mesmo ao lado do Clube de Futebol os Montemorenses, filial nº
7 do Belenenses. Inexplicavelmente em vez de “pastéis de Belém” ou outra coisa
parecida, a colectividade era conhecida em Montemor por os Leões.
Era
ali, ao cimo da Rua dos Almocreves, que ficava o rés-do-chão que servia de sede
àquela agremiação montemorense. Além de futebol, propiciava-se aos associados a
prática de ping-pong, ciclismo e outras modalidades. Eram também frequentes as
representações de teatro, os saraus de poesia, os bailes, as matinés dançantes.
Imagine,
caro leitor, um espaço exíguo, apinhado de pessoal a dançar de forma efusiva ou
aconchegadamente. O suor dos corpos propagava-se às paredes interiores da casa,
que deixavam escorrer intermináveis serpentinas de água. Não havia janelas, só
a porta de entrada. O ar, pouco ventilado, não era bom conselheiro para a
saúde, especialmente numa época em que a tuberculose e outras doenças
infecciosas espreitavam a cada esquina. Tanto quanto se sabe, não
morreu lá ninguém!
Ao lado do palco, havia um WC meio improvisado, exclusivo para senhoras.
As que dele necessitavam tinham de contentar-se com um penico de pé alto. A
malta “macha” ia aliviar-se para as travessas escusas das traseiras ou aproveitava
a escorrência natural da encosta do castelo.
Infra-estruturas à parte, a afluência de
sócios e a animação eram enormes. Pagava-se uma bagatela. Sem
subsiodependências, tudo se conseguia com trabalho e muita imaginação.
“Fartava-me de andar a cravar este e aquele” – desabafou a Carmina, que logo a
seguir nos confidenciou: “Eu era uma leoa dos sete costados. Só quando acabou o
Clube é que passei a andar atrás da equipa do União.
Setembro desfolhou-se. Outubro traz o aroma dos marmelos, o alaranjado dos
diospiros, a rubescência das romãs, a secreta delicia das nozes secas. Lá em
casa sempre ouvimos dizer que comer pão e nozes sabe a casar. Em Outubro,
chegam os vivos à república, os tiros longínquos e dispersos dos caçadores, o
cheiro a terra molhada, as formigas de asa, as primeiras sementeiras. “ Semeia
em pó; não tenhas dó” – diziam os antigos.
Lançadas as sementes, as margias haviam de criar, na terra, a côdea que
defenderia os pequenos grãos de cobiça dos insectos e dos pássaros. Depois das
chuvas, as searas erguer-se-iam a uma só voz.
Falar de Outubro é exprimir, por palavras, a monotonia das árvores,
quebrada pelo chilrear frenético dos pardais. É ainda trazer à lembrança uma
outra chilreada, não menos viva, agitada: a das crianças nos pátios das
escolas.
As recordações dos primeiros tempos da primária assaltam-nos o espírito. É
como se estivéssemos ali, no velho edifício à esquina da Rua de Avis, a olhar a
cercadura gradeada, a altura desmesurada das portas, as janelas que não
deixavam ver nem para dentro nem para fora, o gigantesco quadro preto, a cana
da índia, a caixa métrica, as paredes cobertas de mapas velhos e de símbolos,
os tinteiros das carteiras, o estrado de madeira, sinal de autoridade do
professor. Felizmente que sempre houve mestras que nunca precisaram de poleiros
para se afirmarem.
Depois, veio-nos à memória o caderno de duas linhas, o livro que nos
ensinou as primeiras vogais e ditongos, a pequena pedra da ardósia, o pó do giz
e aquele estranhíssimo cheiro a borregos que saía da pele que forrava o
apagador. Ou seria do sebo com que se besuntavam as botas…dos que tinham
botas?!
Alguns vinham descalços, com os pés gretados e as mãos engadanhadas,
enquanto outros chegavam enterrados em sobretudos e bonés de orelhas, calçando
luvas de lã e botas novas feitas pelos melhores sapateiros da vila.
Guardamos da escola boas recordações: as jogatanas no recreio, as
passeatas no campo, os concursos de leitura, as cumplicidades com os colegas, a
admiração pela maioria dos professores. Orem., não conseguimos apagar do nosso
arquivo o queixume daqueles que tinham que provar o sabor amargo do ósseo de
fígado de bacalhau, já para não falar das dúzias, dos quarteirões de reguadas
ainda mais azedas que eram distribuídas quase diariamente.
Os bibes axadrezados eram espelhos de desigualdades. Uns impecavelmente
novos, ainda a cheirar a goma; outros remendados e puídos, pareciam já ter
perdido os quadradinhos azuis, tanto o uso e as esfregadelas. Nos dias que
correm, as desigualdades continuam, mas com outras roupagem.
O início das aulas e a abertura da caça sempre mantiveram uma afinidade
temporal. Em Outubro, ouvia-se o primeiro toque da sineta nas escolas e, quase
ao mesmo tempo, detonavam, no campo, as caçadeiras. Agora tudo foi antecipado
para o mês de Setembro. Curiosa coincidência esta!
Exceptuando a vizinhança no calendário, dificilmente se encontrará outro
ponto de contacto entre as duas realidades, a não ser a contaminação
linguística que o vocabulário dos caçadores provoca na gíria estudantil:
apanhar uma raposa; chumbar no exame; ser caçado a copiar; ensino de carregar
pela boca e outras coisas do género.
Bem! Está a tocar para a saída. São horas de terminar
Até à próxima.
Vitor Guita
Texto extraído do Montemorense –
Outubro 2016, com publicação autorizada elo Autor
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