quinta-feira, 10 de novembro de 2016

MEMÓRIAS CURTAS - Rubrica mensal do Prof Vitor Guita


Uma vez por mês o Prof,. Vitor Guita traz-nos à memória, recordações do passado
A intensa actividade teatral em que estivemos envolvidos Durante o mês de Outubro não permitiu que fizéssemos a nossa habitual digressão pelos corredores da memória, reavivando as nossas próprias lembranças ou captando ecos de histórias antigas contadas por gente com mais idade.
Aproveitámos a situação para fazer um ponto da situação, reflectindo sobre o que já escrevemos e o que ainda podemos escrever. Questionámo-nos acerca deste nosso projecto, que tem perto de uma dezena de anos e que consta de mais de uma centena de crónicas/memórias.Relemos alguns dos nossos primeiros textos para ver se ainda sentíamos o mesmo prazer do momento em que os idealizámos e pusemos no papel. Muitas coisas gostaríamos de modificar, mas sentimo-nos globalmente agradados, por vezes surpreendidos com boa parte daquilo que escrevemos e partilhámos com os amigos leitores.
Por fim construímos um mosaico com imagens anteriormente utilizadas e escolhemos excertos que revisitam etapas do nosso percurso – uma espécie de Memória das memórias. Aqui vão alguns retalhos dessas lembranças
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Estivemos na Praça Dr. Miguel Bombarda (antiga Praça da Hortaliça). Ficaríamos ali uma eternidade a ouvir relatos de memórias que ajudam a entender melhor o que foi a terra da nossa infância e dos nossos avós.
Detivemo-nos ainda largos minutos, na Rua dos Almocreves. Também ali nos apeteceu recuar na História e ficar preso nos belíssimos detalhes arquitectónicos da velha rua: As chaminés de prumada, o portal gótico… Cá em baixo, a rua fica mais afunilada, a contrastar com a largueza de horizontes a que os almocreves estavam habituados. Muitos desses transportadores de mercadoria eram homens viajados e constituíram, noutras eras, uma classe de algum peso em Montemor. Destronou-os o revolucionário caminho-de-ferro. Que, por sua vez, foi deposto pelos modernos transportes rodoviários. Assim se vai fazendo “a marcha do progresso”
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Voltamos de novo à Praça. Sempre que olhamos para aquele recinto imenso, imaginamos um enorme anfiteatro ao ar livre, uma espécie de theatron dos gregos. Outras vezes, concebemos um palco majestoso, que nem sequer precisa de cenário de fundo. A tela já lá está, naturalmente bela.
Durante uns minutos ficamos cá em baixo, a apreciar o espectáculo!
De tanto recuar, ficámos encostados à porta da Carmina Catita. Entramos para conversar. A Carmina, que ainda ajudou a mãe Natália na venda da fruta e hortaliça, falou-nos nos tabuleiros de madeira alinhados debaixo das palmeiras, sobre os quais se amontoavam os produtos frescos das hortas e pomares. Durante anos, uma das bancas da frente pertenceu ao Manuel Filipe, um conhecido vendedor. Ah! As dulcíssimas e tenras couves! As cabeças ossudas dos nabos e a rama farta, que se podia comer à vontade!
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Voltámos à conversa com a Carmina. Depois de nos garantir que a sua moradia foi,  em tempos, um movimentado café, a nossa anfitriã fez o retrato à la minuta do que foi, há umas décadas, a antiga Praça.
Antes de nos despedirmos, a Carmina quis deixar claro que, em mais nova, morou na Rua dos Almocreves.
A sua porta ficava mesmo ao lado do Clube de Futebol os Montemorenses, filial nº 7 do Belenenses. Inexplicavelmente em vez de “pastéis de Belém” ou outra coisa parecida, a colectividade era conhecida em Montemor por os Leões.
Era ali, ao cimo da Rua dos Almocreves, que ficava o rés-do-chão que servia de sede àquela agremiação montemorense. Além de futebol, propiciava-se aos associados a prática de ping-pong, ciclismo e outras modalidades. Eram também frequentes as representações de teatro, os saraus de poesia, os bailes, as matinés dançantes.
Imagine, caro leitor, um espaço exíguo, apinhado de pessoal a dançar de forma efusiva ou aconchegadamente. O suor dos corpos propagava-se às paredes interiores da casa, que deixavam escorrer intermináveis serpentinas de água. Não havia janelas, só a porta de entrada. O ar, pouco ventilado, não era bom conselheiro para a saúde, especialmente numa época em que a tuberculose e outras doenças infecciosas espreitavam a cada esquina. Tanto quanto se sabe, não morreu lá ninguém!
Ao lado do palco, havia um WC meio improvisado, exclusivo para senhoras. As que dele necessitavam tinham de contentar-se com um penico de pé alto. A malta “macha” ia aliviar-se para as travessas escusas das traseiras ou aproveitava a escorrência natural da encosta do castelo.
Infra-estruturas à parte, a afluência de sócios e a animação eram enormes. Pagava-se uma bagatela. Sem subsiodependências, tudo se conseguia com trabalho e muita imaginação. “Fartava-me de andar a cravar este e aquele” – desabafou a Carmina, que logo a seguir nos confidenciou: “Eu era uma leoa dos sete costados. Só quando acabou o Clube é que passei a andar atrás da equipa do União.
Setembro desfolhou-se. Outubro traz o aroma dos marmelos, o alaranjado dos diospiros, a rubescência das romãs, a secreta delicia das nozes secas. Lá em casa sempre ouvimos dizer que comer pão e nozes sabe a casar. Em Outubro, chegam os vivos à república, os tiros longínquos e dispersos dos caçadores, o cheiro a terra molhada, as formigas de asa, as primeiras sementeiras. “ Semeia em pó; não tenhas dó” – diziam os antigos.
Lançadas as sementes, as margias haviam de criar, na terra, a côdea que defenderia os pequenos grãos de cobiça dos insectos e dos pássaros. Depois das chuvas, as searas erguer-se-iam a uma só voz.
Falar de Outubro é exprimir, por palavras, a monotonia das árvores, quebrada pelo chilrear frenético dos pardais. É ainda trazer à lembrança uma outra chilreada, não menos viva, agitada: a das crianças nos pátios das escolas.
As recordações dos primeiros tempos da primária assaltam-nos o espírito. É como se estivéssemos ali, no velho edifício à esquina da Rua de Avis, a olhar a cercadura gradeada, a altura desmesurada das portas, as janelas que não deixavam ver nem para dentro nem para fora, o gigantesco quadro preto, a cana da índia, a caixa métrica, as paredes cobertas de mapas velhos e de símbolos, os tinteiros das carteiras, o estrado de madeira, sinal de autoridade do professor. Felizmente que sempre houve mestras que nunca precisaram de poleiros para se afirmarem.
Depois, veio-nos à memória o caderno de duas linhas, o livro que nos ensinou as primeiras vogais e ditongos, a pequena pedra da ardósia, o pó do giz e aquele estranhíssimo cheiro a borregos que saía da pele que forrava o apagador. Ou seria do sebo com que se besuntavam as botas…dos que tinham botas?!
Alguns vinham descalços, com os pés gretados e as mãos engadanhadas, enquanto outros chegavam enterrados em sobretudos e bonés de orelhas, calçando luvas de lã e botas novas feitas pelos melhores sapateiros da vila.
Guardamos da escola boas recordações: as jogatanas no recreio, as passeatas no campo, os concursos de leitura, as cumplicidades com os colegas, a admiração pela maioria dos professores. Orem., não conseguimos apagar do nosso arquivo o queixume daqueles que tinham que provar o sabor amargo do ósseo de fígado de bacalhau, já para não falar das dúzias, dos quarteirões de reguadas ainda mais azedas que eram distribuídas quase diariamente.
Os bibes axadrezados eram espelhos de desigualdades. Uns impecavelmente novos, ainda a cheirar a goma; outros remendados e puídos, pareciam já ter perdido os quadradinhos azuis, tanto o uso e as esfregadelas. Nos dias que correm, as desigualdades continuam, mas com outras roupagem.

O início das aulas e a abertura da caça sempre mantiveram uma afinidade temporal. Em Outubro, ouvia-se o primeiro toque da sineta nas escolas e, quase ao mesmo tempo, detonavam, no campo, as caçadeiras. Agora tudo foi antecipado para o mês de Setembro. Curiosa coincidência esta!
Exceptuando a vizinhança no calendário, dificilmente se encontrará outro ponto de contacto entre as duas realidades, a não ser a contaminação linguística que o vocabulário dos caçadores provoca na gíria estudantil: apanhar uma raposa; chumbar no exame; ser caçado a copiar; ensino de carregar pela boca e outras coisas do género.
Bem! Está a tocar para a saída. São horas de terminar
Até à próxima.
Vitor Guita
Texto extraído do Montemorense – Outubro 2016, com publicação autorizada elo Autor


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