Baseado em Textos do
Dr. Alexandre Laboreiro.
A criança e o Livro
«A leitura é para o espírito o que o exercício é para o
corpo.»
Joseph Addison
(Poeta e ensaísta inglês: 1672-1719)
Será redundante enaltecer o valor do livro, enquanto veículo
de difusão do Pensamento, como catalizador de um intercâmbio de ideias no seio
das Sociedades Humanas, bem como um agente intelectual de um tal calibre na
vida das comunidades, que - mercê das suas mensagens portadoras de uma
visão do Mundo e do Homem - o Livro constituiria (desde o início do seu
aparecimento) um factor determinante na “precipitação histórica” da vida do
Homem -
levando a imprimir uma maior velocidade às transformações culturais,
sociais, económicas e políticas (inicialmente na Europa, e depois a nível
planetário).
A este propósito, registamos a atitude - por
parte do Humanista francês Gabriel Naudé (séc. XVII) - ao
escrever ao Presidente do Parlamento de Paris, num intuito de defesa e difusão
do Livro; dizendo-nos ele : «É muito mais útil e necessário ter, por exemplo,
uma grande quantidade de livros, muito bem encadernados, do que ter apenas um
pequeno quarto ou gabinete pálido dourado e organizado, enriquecido com todo o
tipo de ninharias, de luxo e superfluidades, cheios deles». Por sua vez,
diz-nos Roger Chartier (in “A ordem dos livros”): «Uma biblioteca não é
construída para satisfazer prazeres egoístas, mas sim porque não existe nenhum
meio mais honesto e seguro para se adquirir uma grande fama entre os povos, a
não ser erigir belas e magníficas bibliotecas, para depois as consagrar à
utilização do público».
Ora, sobre o prazer de ler e o gosto pela leitura,
refere-nos Marcel Proust: «Se o gosto dos livros cresce com a inteligência, os
seus perigos diminuem com ela. Um espírito original sabe subordinar a leitura à
sua actividade pessoal. Ela não é para ele senão a mais nobre das distracções,
a mais enobilitante sobretudo, porque só a leitura e o saber dão as “boas
maneiras” do espírito. O poder da nossa sensibilidade e da nossa inteligência
só o podemos desenvolver em nós próprios, nas profundidades da nossa vida
espiritual. Mas é no contacto com os outros espíritos que a leitura constitui,
que se faz a educação dos “modos” do espírito. Os letrados permanecem, apesar
de tudo, como as pessoas de qualidade de inteligência, e ignorar um determinado
livro, determinada particularidade na ciência literária, será sempre, mesmo num
homem de génio, um sinal de ruptura intelectual. A distinção e nobreza
consiste, na ordem do pensamento também, uma espécie de franco-maçonaria de
costumes, e numa herança de tradições.
Neste gosto e neste divertimento de ler, a preferência dos
grandes escritores muito depressa se encaminha para os livros de autores
antigos. Mesmo aqueles que se afiguravam aos seus contemporâneos os mais
“românticos”, não liam senão os clássicos. Quando Victor Hugo em conversa fala
das suas leituras, são os nomes de Molière, Horácio, Ovídio, Regnard, que
aparecem mais frequentemente. Afonso Daudet, o menos livresco dos escritores,
cuja obra plena de modernidade e de vida parece ter rejeitado toda a herança
clássica, lia, citava, comentava incessantemente Pascal, Montaigne, Diderot e
Tácito.»
Maria José Nogueira Pinto (in “Expresso”) definia, há uns
anos -
neste Semanário - o acto de ler de uma forma, a um tempo
precisa e cabal, como igualmente bela no seu jogo de conceitos e palavras;
diz-nos ela: «A leitura é uma realidade
imensa, uma viagem que, uma vez iniciada, não tem fim, uma amarra de que
ninguém pensa sequer libertar-se, uma porta para todos os outros mundos. Um
modo expedito para todos os encontros, todas as conversas. Como escutar às
portas sem ser promíscuo. Como espreitar as vidas alheias sem ponta de
“voyeurismo”. Uma maneira de esquecer e de lembrar. De estar aqui e acolá. De
ser isto e mais aquilo. E não tem fim esta possibilidade de mil vidas numa,
única forma recomendável de mentir. Não mentir propriamente, mas imaginar, o
que é diferente e sem sombra de pecado». E, no apelo que sempre o acompanhou na
luta pela emancipação do ser humano, com
vista a torná-lo cidadão, António Sérgio entendia que a Democracia autêntica
teria de ser constituída por cidadãos aculturados, esclarecidos, detentores de
um espírito crítico - que lhes abrisse as portas, tanto à
capacidade de interpretar o passado, como lhes permitisse uma capacidade de
antevisão, de modo a poderem construir um Futuro Democrático (o que pressupunha
uma verdadeira Educação e Cultura Democráticas - iniciadas
na Escola, continuadas na Leitura e nas iniciativas Culturais, associativas ou
comerciais).
António Sérgio, a tal propósito, diz-nos: «Educar significa,
como dissemos, favorecer o crescimento da capacidade de racionalização, da
espiritualização, de universalização, de superação dos limites vários que
confinam o indivíduo numa pátria ou
grupo, numa localidade ou época - habilitando-nos, portanto, a sermos
educadores da sociedade: o fim da educação é ela própria, e um dos seus
objectos, por isso, o não deixar perder aos moços aquela plasticidade de
inteligência, aquela vibratilidade espiritual que os capacita para
desenvolver-se. Procurai o educador no varão educável, [no de espírito moço] e
o homem bem educado no que tomou fome de educar-se, e de manter-se jovem.»
«O princípio essencial da democracia, pode dizer-se, é o
respeito da dignidade. Nunca devemos querer conduzir os homens sem que tais
homens dêem por isso... o maior crime, para a democracia, é o de considerar os
outros como meios, e não como fins. Democracia, digo, é o sistema em que se
deseja para o cidadão o mínimo de consciência. Queremos que cada homem vá
convencido, e muito consciente do caminho que segue. Assim pensa também, o
verdadeiro cristão», como nos deixou dito, Sérgio.
E na base desta conscientização, estará certamente também o
prazer pela leitura.
Origlia diz, e com razão, que a imagem tomou na nossa
civilização o primeiro lugar (referindo-se ao primado do cinema) em detrimento
do livro, que exige maior esforço intelectual. Porém, a leitura permite a
possibilidade de, na fruição do livro, participar e construir ele próprio (o
leitor) nos assuntos que vai lendo, de acordo com a sua experiência e estímulo
do ambiente, uma viva participação, por vezes mesmo um verdadeiro “transfert”
das personagens e acidentes descritos no livro para si próprio, para os seus
conviventes e para os factos vividos no seu meio. Assim, ao longo das leituras,
admitimos que todos nós procurámos reconstituir as figuras literárias de Maria
(do “Frei Luís de Sousa”), de Margarida (das “Pupilas do Senhor Reitor”), da
criada Juliana (no “Primo Basílio”), ou de Gomes Freire de Andrade (in
“Felizmente há Luar”) - inseridas em
cada contexto que tivemos a felicidade de poder fruir. E, adiantemos,
consideramos que - longe de uma concorrência de primazias entre
Literatura e Cinema - existe (em quem possua um espírito desperto
para a Cultura) uma consciência estética que o leva a apreciar, tanto o bom
gosto literário que perpassa no argumento de um bom filme, como igualmente não
descurará de descobrir, num romance ou numa novela que tenha lido, a
intensidade de emoções, movimento e oportunidade temática -
dignos de um bom argumento cinematográfico.
É um conhecimento banal que o interesse da leitura varia com
a idade a quem o livro se destina. E, naturalmente, só podemos falar duma
maneira geral, em leitura em crianças depois dos 10 anos, isto é, quando já se
tem criado os automatismos que permitem sem esforço exercer o acto de ler com a
necessária compreensão. Assim, nos referiremos, aos contos de fadas, às
histórias com personagens fantásticas,
inexistentes, fora da realidade - bem como aludimos aos animais que falam, às
bruxas (e que são coisas inventadas)
- bem aceite pelo imaginário
infantil. É que a criança vive uma vida fantástica, fora da realidade e
necessita de dar expansão a essa fantasia. A criança interessa-se pelo
movimento, os acidentes movimentados, as fugas, as perseguições, os tiros, a
astúcia, a violência, realizados pelas boas ou más personagens do conto. Daí, a
oportuna popularidade das “histórias aos quadradinhos”, oriundas das edições
norte-americanas. E a banda-desenhada poderá constituir, na criança, como uma
ponte que o conduz a uma leitura de maior reflexão, e estilo mais elaborado.
Ora, «o inimigo da leitura não reside, como actualmente alguns temem, na
cultura audio-visual que domina os meios de comunicação e na extensão das novas
tecnologias, mas nas desafortunadas práticas de leitura dominantes a que
submetemos os nossos alunos durante a escolaridade» -
afirmou-nos Gimeno Sacristán (Catedrático da Universidade de Valência).
José Alexandre Laboreiro
Texto publicado na “Folha
Montemor” – Setembro 2016 – Publicação no Al Tejo devidamente autorizada pelo
Autor
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