quarta-feira, 14 de setembro de 2016

AS HISTÓRIAS DO LUÍS DE MATOS

Continuamos a levar atá aos nossos leitores as histórias do Luís de Matos. Depois de uma ficção que dava a conhecer o percurso da Ribeira do Lucefecit, vamos em próximas histórias recordar nomes, feitos e locais de personagens que perduram na memória do nosso povo.

E é com redobrado prazer que hoje vos traga a recordação de um nome que associado a outros tambem mencionados, tive o privilégio de conviver, na medida em que todos eles foram meus tios, irmãos da minha avó Joaquina Honrada.
Chico Manuel

                                                                             Ti Sargento
António José Gomes, mais conhecido por Ti Sargento, foi um poeta popular de Terena. Toda a sua vida foi guardador de gado. É autor de umas décimas relacionadas com os cinco elementos da vida, que ele designa como sendo o sol, a lua, a terra, a água e o ar. Disse-me uma vez, em finais da década de setenta, concretamente em setenta e sete, quando com ele falei para me dar colaboração através dos seus versos para a edição de um caderno de poesia popular alentejana que, quando a mãe morreu, tinha treze irmãos. A primeira ideia que me veio à cabeça, foi esta. Se este homem tinha treze irmãos e uma vez que eram pobres, como deve ter sido difícil a vida desta família. É preciso lembrarmo-nos que estas pessoas tiveram o seu início de vida há um século e como seria difícil a sobrevivência daqueles treze irmãos naquela época. Parece-me que só conheci quatro. A ele e mais três. O Manuel, o Inácio e o José. Honrado era a sua alcunha. 
Se já nutria por este homem uma enorme simpatia, então a partir daquele momento a minha admiração por ele aumentou. Nos últimos anos da sua vida morou na Rua do Forno, três portas mais abaixo da minha casa, precisamente onde morou a minha avó materna. Era a casa da minha avó Angélica, que após a sua morte, os herdeiros venderam. O ti Sargento, era uma pessoa de uma enorme vivacidade.

Apesar de ser uma pessoa semianalfabeta, falar com ele representava uma aprendizagem constante. Há sempre coisas que os velhos sabem e que os novos desconhecem, embora a estes lhes pareça que tudo sabem. Mais até que os velhos. Apesar de, na época estar nos meus trinta e cinco anos, nunca pensei assim. Seria até uma grande falta de educação. Ouvi o homem com toda a consideração e respeito. Então quando me começou a dizer as décimas sobre os cinco elementos da vida, mais se cimentou a minha admiração por aquele ser franzino que filosoficamente se referia aos cinco espíritos unidos como sendo os cinco sentidos. Pensei para comigo. Como é que era possível aquele homem franzino, semianalfabeto, dizer de cor umas décimas com uma filosofia de vida tão aprofundada? E então perguntei-lhe. Ó ti Sargento! Como é que fez estas décimas? Como é que se lembrou duma coisa destas? É tudo daqui. E bateu levemente com o dedo na fronte. Gravei, tomei notas, agradeci e despedimo-nos.
– Eu sorri.
– Boa viagem, disse-me ele.
– Entrei em casa e despedi-me com dois beijos na minha mãe.
E o ti Sargento, lá ficou com o braço no ar a acenar-me.
Luis de Matos 
TERENA 

António José Manuel Gomes “Ti Sargento” (79 anos) Em 1977
I
Ao patrão peço licença
Uma vez só para falar
Se por acaso me é dar
Falo da sua presença
Haver se tem dó e consciência
Não mando embora os seus criados
Tenha dó dos desgraçados
Por alma de quem lá tem
Que do Céu lhe virá o bem
E os Amens esperam dobrados.
II
A terra é a mãe do alimento
Que dá para agente se alimentar
Se a terra chegar a falar
Faltar-nos há o sustento
Morremos num instante
E ventos, devemos crer
Se a terra deixar de haver
Onde iremos nós parar
Nisto não se precisa estudar
Que ninguém o chega a saber.
III
Mas se ela a água não regasse
O que é que a terra daria
A terra não produzia
Se ela a água faltasse
E sei que a terra que nasce
E a mãe dela é a rocha dura
A água a faz embrandecer
A terra só pode mãe ser
Em tendo a água à mistura.
IV
O Sol também é criador
O sol é um espírito vivente
O sol é a luz mais ardente
Que formou o nosso Senhor
O Sol com o seu calor
Dá a temperatura devida
O Sol anda na sua lida
Traz o seu tempo marcado
Mas se o Sol existe parado
É a terra comovida.
V
Diz a lua, eu também sou
A governanta do Mundo
Deste meu saber profundo
Experiência, ninguém tirou
Tudo quanto se gerou
Nos meus quartos foi transformada
Por todos sou desejada
Podem acabar de crer
É tão forte o meu poder
E se eu faltar não há nada.
VI
A Terra é a mãe da alimentação
A Água é a mãe da secura
O Sol é o pai da luz mais pura
E a Lua a mãe da geração
O Ar o pai da respiração
São cinco espíritos unidos
São os próprios cinco sentidos
Que Deus pôde transformar
Sem um deles não se pode passar
Digo eu, há-de ser lá desentendido.
VII 
Quem formou a Providência
Que há que o Mundo formou
Homens de grande ciência
Ao Mundo ainda ninguém chegou
A Terra é alimentativa
Da Terra tudo nasceu
Da terra tudo comeu
Que a Terra é morte e é vida
Da Terra nasce uma liga
Porque ela a Terra é imensa
Se na Terra houver diferença
Quem é que o sabe dizer
Pois antes da Terra haver
Quem formou a Providência?
VIII
O Sol é o Rei da Luz
É o Rei dos Planetas
O Sol abre as violetas
E aquece a gelada cruz
Quando eu a pensar me pus
Minha alma suspensa ficou
Meu corpo se arrepiou
Meu sangue ficou gelado
E depois disto bem pensado
Que há que o Mundo formou?


1 comentário:

Anónimo disse...

Lembro-me bem do Ti Sargento. Vendia peixe