terça-feira, 2 de agosto de 2016

VASCULHAR O PASSADO - Por Augusto Mesquita

– Uma vez por mês Augusto Mesquita recorda-nos pessoas, monumentos, tradições usos e costumes de outros tempos
                                                       Santa Sofia
A pitoresca e pequena aldeia de Santa Sofia é um lugar muito formoso cuidado e limpo, que dista onze quilómetros da sede do concelho. O seu casario é caiado com as cores típicas do Alentejo – o branco e o azul. A cor branca torna a casa mais fresca, protegendo-a dos raios solares, mas, como não há bela sem senão – atrai as moscas, as melgas e os mosquitos. Para afugentar estes insectos, alguém propôs a colocação de orlas azuis à volta das portas e janelas e também no roda-pé. Este original repelente, não permitia o acesso destes invertebrados ao interior das casas. O povo acreditava também que a cercadura azul afastava os maus espíritos.
            Esta antiga freguesia de Montemor-o-Novo tem placa toponímica bem visível da Estrada Nacional n.º 114. Desta importante e movimentada via rodoviária, avista-se a aldeia, a desactivada escola primária e a envelhecida igreja. Neste lugar, está instalada a área de serviço da A 6, também visível da estrada que nos leva até Évora.
            O concelho montemorense pode orgulhar-se de ser o único no país a possuir uma freguesia com a invocação de Santa Sofia.
            Mas afinal, quem foi esta santa que deu o nome a esta colorida povoação montemorense? Foi uma nobre matrona romana, nascida no ano de 101, a quem foi posto o nome de Sofia, que significa “Sabedoria Divina”. Teve três filhas: Fé, Esperança e Caridade. Numa época de intensas perseguições ao Cristianismo, conseguiu educar as filhas num recto amor pelas virtudes. Esta opção deixou marcas, pois o prefeito do Imperador Romano Adriano, Antíoco de seu nome, torturou até à morte as filhas de Sofia, de 12, 10 e 9 amos de idade. Algum tempo depois, enquanto rezava sobre o túmulo das três filhas, Sofia caiu morta sobre ele. Foi em 30 Setembro do ano de 130. Sofia, transformou-se uns anos mais tarde em Santa Sofia, mas, por motivos que desconhecemos, não consta no Martirológico Romano.         
            A aldeia de Santa Sofia, já era freguesia em 1534, e de acordo com o Cura João Callado de Vila Lobos, nas Memórias Paroquiais de 1758, a paróquia possuía 79 fogos e 372 moradores.
            A igreja quatrocentista (há noticias suas a partir de 1424, existentes no Arquivo Capitular da Sé de Évora), edificada sobre o adro artificial, que avança sobre a várzea sujeita a frequentes inundações da ribeira de Santa Sofia, na linha do ocidente, é obra de arquitectura popular, aparente, de uma reforma seiscentista na cabeceira e do período muito avançado de setecentos no corpo da nave e alpendre-coro de dois arcos redondos, cuja frontaria, engalanada nos acrotérios por fogaréus, é de empena semicircular sobrepujada de campanário deprimido, composto por sino de bronze fundido, anepígrafo. Nartex de tecto de barrete de clérigo e porta de madeira almofadada, com pregaria e espelhos antropomórficos, exóticos, de meados do séc. XVIII.
            Os prospectos da nave são iluminados por lanternetas do tipo de mansarda pombalina. Presbitério reforçado por botaréus semicilíndricos e sacristia muito pitoresca, na banda norte, também de gigantes e pináculos piramidal, agulhado, de lanterna arredondada e telhado de linhas radiadas rematado por agulha cónica. Contra a face oposta, sensivelmente, subsiste o carneiro antigo com sinal, na parede, de cruz relevada.
            O cruzeiro do adro, de mármore branco, é constituído por obelisco de forma clássica, em cuja peanha se gravou a data do fecho da obra:
                                                                           A.  D.  /  M.  DCCI
                O interior da nave, de ampliação setecentista, de planta rectangular muito alongada e de abóbada de meio canhão, nada conserva de interesse artístico nos seus cinco tramos ornados por tabelas de estuque coloridos e apainelados com vasos naturalistas, retocados no ano de 1874. No pano correspondente ao coro lê-se, em composição a têmpera, do estilo rococó, do último quartel do séc. XVIII, engalanada pelos habituais elementos envieirados, lambrequins, cornucópias e arabescos, a legenda latina de louvor à Virgem:
                    TOTA PYLCA  /  EST  MARIA  /  ET  MACVULA ORIGINALIS  /  NOMEST  /  INTE
Os alçados laterais, junto da boca da capela-mor, intervalados pela divisória cruzeira de lenho vulgar, pintado, são compostos por quatro altares devocionais dos antigos fregueses das circunvizinhanças, hoje quase abandonados e assim intitulados:
            Lado do Evangelho (do santuário para a entrada do templo): “Santo António”. Tem retábulo porticado, em talha do estilo rococó, joanino, com colunas salomónicas, douradas e marmoreadas: tímpano de anjo axial amparando curiosa tabela antropomórfica. O padroeiro, tem pouco interesse artístico, mas as imagens laterais, de madeira estofada – “Nª Sª da Conceição” (alt. 50 cm) e a “Virgem com o Menino”, ambos setecentista, oferecem certa curiosidade.
            “Altar de S. Sebastião”, privilegiado perpetuamente pelo Papa Pio VI, em 1794. Obra de estuques coloridos, com frontão entrecortado e colunas coríntias. O titular é uma formosa escultura de madeira, impregnado de formas clássicas e naturalistas, de alvores da mesma centúria. Mede, de alt., 1,00 m. As restantes figuras religiosas, populares que compõem as consolas, igualmente de madeira e contemporâneas, são: “S. Miguel” (75 cm) e “Santo Bispo” (80 cm).
            Lado da Epístola: “Altar de Nª Sª do Rosário”. Retábulo do estilo rococó, de talha dourada, com colunelos salomónicos e meias pilastras de grinaldas, vieiras e ornatos palmares. Tipo de inícios do último terço do séc. XVIII. A padroeira, bem estofada, é peça datável do reinado de D. João V. Mede, de At., 1,00 m. Lateralmente, em mísulas adosseladas, as imagens de “Santo Amaro”, de carácter popular mas de aparência seiscentista (alt. 60 cm) e “S. Pedro”, de melhor execução mas mais recente (alt. 60 cm).
            “Altar de Nª Sª das Neves”. Possui retábulo entalhado e dourado, do mesmo tipo, época e factura do anterior. A titular é uma interessante, embora populista escultura de madeira policromada, da 2.ª metade de seiscentos, que mede, de alt. 70 cm. Posteriores e correntes, são as imagens de “Santo António” e “S. João Batista”, de madeira e sensivelmente das mesmas dimensões. Em 1758, a igreja, apenas tinha três altares, das invocações seguintes (colateral do Evangelho); Nª Sª das Neves, actualmente de Stº António. (Epístola): S. Sebastião, presentemente de Nª Sª do Rosário, sendo a desta invocação a que hoje dá pelo título de Nª Sª das Neves. O actual altar de S. Sebastião, rasgado na banda do Evangelho, é obra do último quartel do séc. XVIII.
            A capela-mor, aberta por arco-mestre redondo, estucado foi, de igual modo, completamente modernizado nos fins do século XIX. De planta rectangular e tecto de meio ponto, decorado com tabelas palmares de estuque conserva, nos prospectos, os apainelados de escaiolas destinados a proteger uma desaparecida série de quadros de pintura, antigos e de temático desconhecido, que se prolongava pelo corpo da nave.
            O retábulo, obra de talha dourada do estilo de transição barroco-rococó, de c.ª de 1750, é conjunto vulgar do seu tempo, composto de colunas salomónicas, sacrário na representação da St.ª Partícula, em baixo-relevo e tribuna de baldaquino guarnecido, no tímpano, por anjos abrindo dossel, onde a majestosa interpretação do “Padre Eterno”, policrómica, ilumina toda a composição. Modesto “Crucificado”, de madeira, enche o espaço do trono. Em mísulas laterais, porticadas, de águias marianas esculpidas, veneram-se as imagens de “Santa Sofia”, antiga, mas inteiramente reincarnada no séc. XIX (alt. 86 cm) e “S. Pedro”, popular, de características arcaizantes (alt. 82 cm).
            No templo conservam-se algumas interessantes caixas de esmolas de madeira pintada:
            “Santo António”, “Nª Sª das Neves” e “Almas do Purgatório”, esta datada de 1852, e um bom cadeirão de madeira exótica, de três assentos almofadados, braços e costas altas, do tipo de lira estilizada, esculpido com tabelas envieiradas e pés de garra. Estilo português D. João V.
            A sacristia parece conservar a linha arquitectónica primitiva do séc. XVI. De planta quadrada, é coberta por cúpula de meia laranja assente em cornija de pendentes lisos, iluminada por lanterneta circular, de quatro aberturas. Paramenteiro do tipo barroco-joanino, de pau-santo e três corpos e igual número de gavetas e cacifos terminais, decorados por ferragem lavrada, de bronze, com ornatos flóricos e corações simplificados.
            O lavabo, coetâneo, de mármore grosseiramente esculpido com quimeras antropomórficas, está datado de 1722.
      Dimensões do templete: capela-mor – fundo 6,50 x larg. 3,45; nave comp. 16,40 x larg. 5,15 m.
                Quatrocentos e poucos anos depois da fundação da freguesia de Santa Sofia, surgiu o Decreto – Lei n.º 27 424, de 31 de Dezembro de 1936 que extinguiu 10 freguesias no nosso concelho: Landeira, Represa, Safira, Santo Aleixo, São Brissos, São Gens, São Geraldo, São Mateus, São Romão e a já mencionada Santa Sofia.
            Esta decisão política, a juntar à falta de condições de habitabilidade e à precariedade do árduo trabalho agrícola, que era executado manualmente, com meios antiquados e de sol a sol, levou muitos montemorenses na década de 50 a migrarem para a cintura industrial de Lisboa, e na de 60 a emigraram para a Europa. Este êxodo foi a morte anunciada para a maioria das extintas freguesias rurais, ao ponto de algumas delas, estarem convertidas em ruínas.

Augusto Mesquita

Julho/2016

Sem comentários: