As memórias que por aqui vão
desfilando surgem a partir daquilo que nós próprios vimos e ouvimos, mas também
das lembranças dos mais velhos ou daquilo que sentimos, pensamos e lemos.
Se uma parte dos nossos
leitores se sentir identificada com elas ou se estas acrescentarem algo menos
conhecido, já valeu a pena o discurso.
Escreveu-nos de França, há
poucos dias, o amigo Gabriel Francisco do Cabido. As recentes Memórias Curtas
dedicadas ao saudoso José da Costa Ramalho provocaram no nosso emigrante uma
catadupa de recordações de juventude. Além do mais, reconheceu-se na foto
publicada, de trombone na mão, ao lado do seu mestre. Segundo nos transmitiu, é
já um dos raros sobreviventes daqueles antigos músicos da Carlista. Com quase
86 anos de idade e 53 de França, Gabriel do Cabido escreveu-nos uma emocionada
mas lúcida missiva, incentivando-nos a prosseguir a nossa escrita.
A acompanhar a carta vinha
uma pequena publicação de 1943, que o amigo Gabriel guarda há muitos anos,
desde o tempo em que esteve na Folha do Sul, na Rua 5 de Outubro. Trata-se de
um velho boletim da Casa do Alentejo.
Ao folhear a publicação, apercebemo-nos
imediatamente do porquê da preservação de tão antigo exemplar. É que ele dedica
boa parte das suas páginas a Montemor.
Num destes dias quentes de julho,
decidimos por de lado a leitura que fazíamos dos episódios da 2ª Guerra Mundial
e debruçámo-nos mais atentamente sobre o conteúdo do Boletim que nos fora
enviado.
O calor sufocante que se tem
feito sentir convidava a ficar em casa, atenção se detivesse num canto mais
fresco -?”
Porem as notícias televisivas
que passavam diante dos nossos olhos pareciam querer incendiar, ainda mais a
fornalha atmosférica que asfixiava lá fora. Tirando uma ou outra feliz notícia
desportiva, sentíamo-nos autenticamente bombardeados por imagens e relatos
violentos que chegavam, a toda a hora, da turística cidade de Nice e também da
Turquia. Pairava no ar, como trovoada longínqua, um clima de guerra.
Tudo isto conjugado fez com
que a nossa atenção se detivesse num dos títulos do Boletim da Casa do Alentejo
que diz: “Porque não há-de Montemor
preocupar-se, desde já, com o seu problema turístico no após-guerra?”
Num momento em que a 2ª
Guerra Mundial ainda estava longe do seu fim, mo preciso ano em que o governo
inglês, invocando a antiga Aliança pedia a Portugal que lhe fossem concedidas
certas facilidades nos Açores, alguém estava já a antever o futuro de paz, de
sossego e de bem-estar, que muitos julgariam naquela altura, de improvável
regresso.
Ainda no referido texto
lê-se: “O turismo alentejano desenvolver-se-á.
A vizinha Évora constituirá grande atractivo, cidade de monumentos e de
evocações. A paisagem d nossa província possui aspectos inconfundíveis que os
olhares estranhos procurarão. Montemor, ponto obrigatório de passagem pela
estrada nacional, carece de seduzir os que se transportam de automóvel, convidando-os
a almoçar numa pousada…”
Entre muitas outras coisas o
autor sonhava com a construção, pelo governo da altura, de uma pousada junto ao
Palácio dos Alcaides, debruçada sobre o Rio Almansor e terras em redor.
Achamos curioso este poder
premonitório de alguém que, preocupado com Montemor e o Alentejo, antecipava
que o após-guerra poderia conduzir a um vasto leque de iniciativas.
Aliás, não é a primeira vez que lemos textos
desta época, reflectindo sobre as tenebrosas consequências da guerra, mas
antevendo, finda a tempestade, um mundo cheio de idéias de numerosas
realizações.
Folheamos, entretanto, mais
meia dúzia de páginas do velho Boletim. Deixamo-nos seduzir por um texto muito
bem escrito de alguém que escolheu intitular-se António de Montemor e que cedo
presumimos tratar-se do homem que conduziu as negociações da aquisição da Folha
do Sul.
Deixamo-lo, estimado leitor,
com algumas passagens desse texto, que mais parece uma declaração de amor á
então vila alentejana:
“Foi numa manhã de Março que vim pela primeira vez a
Montemor. Trazia na alma um anseio inexplicável, um desejo incontido de que o
carro galgasse a 100 à hora a fita escura da estrada. Todo eu ardia em febre de
chegar depressa…
Qual a razão de todo o meio anseio? Conhecer mais uma
terra de Portugal? Não! Positivamente não. Não ra curiosidade do turista que me
levava a querer chegar mais depressa; era alguma coisa mais forte, daquelas que
decidem um destino ou uma vida.
Entabulara, por escrito, negociações para a compra do
mas antigo jornal do Alentejo – A Folha do Sul – e Montemor à vista!..., dois
ou três garotos com tabuleiros de tampa de vidro assediaram-nos, oferecendo
pinhoadas.
Espraiei o olhar e reparei que a vila se estendia ao
alto, no sopé de um castelo. Casas e mais casas, num conjunto bizarro, que
prendia.
Minutos depois o carro passava à Fonte dos Cavaleiros
e entrava na vila, ante o pasmo dos transeuntes curiosos,…Quando o carro parou,
dois ou três garotos com tabuleiros de tampa de vidro assediaram-nos,
oferecendo pimhoadas.
Cá fixei residência, instalando o meu lar e a redação
da Folha na rua principal da terra.
Estou contente? Descontente? Não respondo directamente
a estas perguntas. Direi apenas que fui recebido de tal maneira, que hoje tenho
muito gosto em assinar os meus escritos com o nome suposto de ANTÓNIO DE
MONTEMOR.”
Pela nossa parte, é hora de
partir e meter umas férias. Até Setembro.
Vitor Guita – Professor
In Montemorense – Julho 2016, Transcrito com
autorização do Autor
]
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