quarta-feira, 20 de julho de 2016

LUGAR À CULTURA

          Baseado em Textos do Dr. Alexandre Laboreiro.

                          Portuguesas com História
                                 Maria Judite de Carvalho
 «A mulher existe para que o homem se torne inteligente graças a ela».
 Karl Kraus (1874-1936)
Escritor, Poeta, Ensaísta e Jornalista austríaco

O Papa Francisco, na sua Carta Encíclica “Laudate Si”, exorta-nos a considerar que «é necessário voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo, que vale a pena ser bons e honestos. Vivemos já muito tempo na degradação moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à honestidade; chegou o momento de reconhecer que esta alegre superficialidade de pouco nos serviu. Uma tal destruição de todo o fundamento da vida social acaba por nos colocar uns contra os outros, na defesa dos próprios interesses, provoca o despertar de novas formas de violência e crueldade e impede o desenvolvimento de uma verdadeira cultura do cuidado do meio ambiente».
Ora, a mais de sessenta anos de distância (rumo ao passado  -  em pleno séc. XX, mais propriamente), encontramos no casal Maria Judite de Carvalho  -  Urbano Tavares Rodrigues a adopção de uma maneira de estar no Mundo, pautada pelo Amor entre si, pela identificação humanística para com o seu semelhante, pela defesa da Justiça Social (conduzindo a uma preocupação pela difusão integral de Educação, dos cuidados de Saúde, e a promoção da cultura por todo o País  -  enquanto pilares dum estilo de vida condigno, que se não encontrava implantado na sociedade portuguesa do Estado Novo, em geral); não nos surpreendendo o reflexo temático, ideológico e estilístico, que a sua bagagem de Pensamento iria ter nas suas obras literárias: na poesia, nos contos, nas novelas, nos ensaios, nos romances (de pendor neo-realista).
Jorge Luís Borges (escritor sul-americano) deixa-nos registada a seguinte observação: «Um homem propõe-se desenhar o mundo. Ao longo dos anos, vai povoando o espaço com imagens, províncias, reinos, montanhas, baías, barcos, ilhas, peixes, casas, instrumentos, astros, cavalos, e pessoas. Pouco antes da sua morte, descobre que este paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu próprio rosto». Aliás, do mesmo modo, António José Saraiva observaria que «as circunstâncias históricas são, elas, uma consequência a meu ver inevitável, da própria condição humana, quer dizer da própria cultura e das condições em que ela se desenvolve».
Maria Judite de Carvalho manifestava um temperamento introvertido, pouco dado a amplos relacionamentos. Detestava multidões, sentia medo. Não gostava de dar entrevistas, deu uma ou duas. Não gostava de viver, mas ultrapassaria a esperança do seu século e só deixou a vida ao fim de setenta e sete anos e cinco meses. Gostava da escrita, e poderia ser uma das personagens dos seus contos e novelas, das páginas que começou a escrever por insistência do marido, o qual também lhe despertou os sentidos para a política. As primeiras histórias, reunidas no livro “Tanta Gente, Mariana”, foram para as livrarias no ano em que completou trinta e oito anos. Recebeu uma série de prémios; o último, pelo conjunto da sua obra, no ano da sua morte. Teve grande êxito entre os pares (que lhe reconheciam o talento), mas poucos volumes vendeu.
O seu nome raramente é citado: e, afinal, Maria Judite de Carvalho publicou treze livros, além de inúmeros artigos em jornais e revistas.
Casada com o escritor, jornalista e professor, Urbano Tavares Rodrigues, Maria Judite de Carvalho é mãe aos vinte e nove anos: mãe pela primeira e única vez  -  diga-se. Porém, quando a filha (Isabel) completa três meses de vida, parte  -  com o marido  -  para França (indo Urbano assumir o lugar de leitor na Universidade de Montpellier). A sua visão do Mundo (do casal), inconformava-os com o marasmo cultural do Portugal do Estado Novo, sob a ditadura de Salazar. Desejavam saber como se vivia num país livre  -  partindo à aventura. Os pais de Urbano ficariam com a bebé Isabel  -  tomando conta da netinha durante seis anos (até Maria Judite e Urbano regressarem). Voltaram, é certo, mas com corações negros de angústia (deparando com um país igualzinho, com uma crise económica, uma feroz censura e uma soez perseguição política).
Maria Judite cursaria o “liceu” no Maria Amália, e tencionava frequentar, posteriormente, as Belas Artes; porém, iria para a Faculdade de Letras  -  onde cursou Filologia Germânica. E, curiosamente, é na Faculdade de Letras (onde Urbano cursava Filologia Românica), que conhece o amor da sua vida. E acompanharia o marido, quando Urbano foi dar aulas de Português nas Universidades de Montpellier, Aix-en-Provence e Paris. E, através do marido, conhecerá personalidades marcantes (escritores, pintores, poetas). Em 1955, regressam a Portugal. Maria Judite isola-se a ler e a pintar, e a escrever (sempre com talento). Porém, Portugal desgoverna-se: caminhando num pensamento único, autoritário, persecutório dos que defendiam a liberdade de pensamento.
Eram assim Urbano e Maria Judite  -  que, enfrentando as agruras das amarras do regime, sofrem o preço da luta pela liberdade de pensar. Maria Judite fechava-se, horas seguidas, a pintar, a ler, a escrever  -  na criação de histórias de gente comum, de gente que  costumava observar nos transportes públicos.
«Havia entre nós um grande amor e carinho»  -  confidenciaria Urbano Tavares Rodrigues, aos oitenta e três anos, a José Carlos de Vasconcelos em entrevista para o “Jornal de Letras” Urbano e Maria Judite são ferozmente perseguidos (Urbano apoiara, em 1958, a candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República). Urbano é proibido de leccionar, preso e maltratado, torturado diversas vezes. É frequentemente perseguido.
Maria Judite apoiava-o, pensava como ele, sofrendo pelo marido  -  visitando-o na prisão. Porém, o seu temperamento de introversão leva-a a não poder vivenciar a mesma atitude: detestava multidões, nem sequer gostava de dar aulas. Comunicava, sim, ideias e pensamentos, opiniões e testemunhos  -  com publicação de seus livros, com participação nos jornais, com artigos e ensaios, quer com a direcção do Suplemento “Mulher” do “Diário de Lisboa”.
Com a “Revolução dos Cravos”, abre-se uma possibilidade de justiça a Maria Judite e Urbano: Urbano, agora com sessenta anos, faz o Doutoramento e é readmitido no Ensino do seu País.
No dia 19 de Fevereiro de 1998, Maria Judite telefona a uma amiga, dizendo-lhe que no dia seguinte, ela e o marido iriam passar a tarde com ela. Mas, não apareceram à hora marcada, nem depois; é Isabel, a filha (que igualmente seria escritora) que telefona à amiga da mãe   -  a dar-lhe a infausta notícia: Maria Judite não sobrevivera a um acidente vascular cerebral.
Maria Judite de Carvalho, para além de “Tanta Gente, Mariana”, escreveria igualmente  -  entre outros  -  “A Flor Que Havia na Água Parada” (poesia), a peça de Teatro “Havemos de Rir”, para além dos Ensaios jornalísticos, e do livro “Diários de Emília Bravo”.
As suas obras estão traduzidas em alemão, italiano, checo, francês e espanhol.
 José Alexandre Laboreiro

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