LUGAR À CULTURA –
Baseado em Textos do Dr. Alexandre Laboreiro.
A propósito de um livro
No intuito de caracterizar a desenfreada invasão da
literatura “kitsch”, nos tempos modernos, Francisco Louçã (in “Os Burgueses”)
acentua: «Este triângulo entre informação, entretenimento e publicidade é o
exemplo mais moderno do consumo estético de massas e das indústrias culturais,
a comunicação do nosso tempo, pois exprime a mercantilização radical das formas
culturais e de comunicação. Curiosamente, este modo mercantil, para se afirmar,
precisa de conflito, de jogo, de contra posição, de histórias. A banalidade
encantatória deve ser disputada no enorme estádio da opinião pública».
Por sua vez, em pleno séc. XIX, Alexandre Herculano
denunciava: «Em geral, os cultores das letras não saem das classes poderosas e
abastadas; e em Portugal ainda hoje, o escritor mais benquisto do público e
mais laborioso não obterá uma fortuna independente só à custa das suas
vigílias. Daqui resulta que os bons engenhos, os quais nestes últimos tempos a
nossa terra tem indubitavelmente produzido, são forçados ou a viverem na
atmosfera mirradora do mundo político, ou a exercitarem cargos públicos, que
lhes consomem o tempo e acanham por fim as faculdades do entendimento. É assim que
a literatura deste século, tem perdido em profundeza o que vai ganhando em
brilho e em extensão».
Ora, precisamente no espaço temporal entre Francisco Louçã e
Alexandre Herculano, mais propriamente em 1920, deparamos com um desabafo de
Aquilino Ribeiro (numa entrevista ao Diário de Notícias) em que denunciava:
«Nos bastidores do regime quem dá cartas é o traficante sem grandes letras e o
cacique com muitos votos. Apenas o partido unionista oferecia uma platibanda ao
intelectual, contando que fosse unionista, dizia-nos há pouco alguém... A moral
vai desaparecendo de todo da sociedade portuguesa... a moral corrente (veja os
açambarcadores, os novos-ricos ) é a do enriquecer seja como for e cifra-se
neste mandamento: passa por cima do teu semelhante com sapato de brocha e não
te importes de o esmagar, contanto que passes».
Ora, a Moral e a Cultura de uma sociedade estão
intrinsecamente ligadas à Educação. Assim, Raul Gomes (in “Educação e
Humanismo”) admite que a primeira das condições que devemos buscar como
promotoras do desenvolvimento é um sistema de ensino adequado. Isto é,
extensivo à dimensão de todo um povo, intensivo na exigência de seriedade e
trabalho, progressivo na abertura ao pleno aproveitamento das capacidades,
correctivo dos defeitos herdados de mentalidade e feitio, científico na atitude
informadora do currículo, respeitado como principal força da Nação: que nos conduza a uma
universalização humanista.
Porém, sentindoo forte individualismo, acompanhado, por vezes, de uma exclusão social, o Papa
Francisco alerta o Mundo inconsciente para os deveres sociais que não
cumpre -
esquecendo-se os prevaricadores que todos os Homens são irmãos em
espécie, vivendo na Terra enquanto casa comum. Mas aponta o Papa Francisco: «O
grande risco do mundo actual, com a sua múltipla e avassaladora oferta de
consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e
mesquinho, de busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência
isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de
haver espaço para os outros, já não
entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria
do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e
permanente, que correm também os crentes. Muitos caem nele, transformando-se em
pessoas ressentidas, queixosas, sem vida. Esta não é a escolha de uma vida
digna e plena. Este não é o desígnio que Deus tem para nós, esta não é a vida
no Espírito que jorra do coração de Cristo ressuscitado».
Ora, um dos acontecimentos mais determinantes do
conhecimento e convivência dos Homens entre si (numa intercontinentalidade a
nível económico, é certo, mas também social, humanístico, cultural, científico,
religioso) seria despoletado pelos Descobrimentos e Expansão Ultramarina dos
Portugueses - que permitiriam um relacionamento, e osmose,
entre seres humanos de “muitas e desvairadas gentes”: com tal impacto no
processo da História Humana, que levaria alguns Historiadores a considerar as
nossas Descobertas como o início da História Moderna. Descobrimentos em que «O
mar deixa de ser o limite. Todos os anos, aos milhares, navegantes portugueses
sulcam o Atlântico nas armadas e nos navios de comércio. Descobrem e
cartografam, usam os ventos e as correntes marítimas; aprenderam pelas estrelas
o lugar e a rota dos navios; registam o valor das mercadorias; usam intérpretes
africanos, caçam e resgatam escravos. Levam a cruz pintada nas velas, mas
podiam cair sobre a presa como o albatroz. Trocam gestos, cerimónias, roupas, vocábulos.
Experimentam as armas e os corpos. O barco é o veículo, a casa, a fortaleza, o
templo, a oficina, o armazém, o porta escravos, o porta navios, o caixão.
Trespassado por setas ervadas, Nuno Tristão ainda subiu ao convés.
Sepultaram-no no mar» - asiu António Borges Coelho, a Expansão
Marítima Portuguesa, no livro “Largada das Naus”.
E a dinâmica económica, social, científica, cultural, vivida
em Lisboa, é de tal ordem que se imporia a necessidade de reformular a
Assistência Médica na Cidade - tal a intensificação da vida na capital do
Império. Tanto D. João II, como a Rainha D. Leonor, desencadeariam propósitos
no sentido de criar um Hospital Central em que o acto médico-assistencial
revestisse uma função pública e prática (embora não perdesse o cunho cristão da
máxima de S. Martinho de Dume «não aproveita a esmola tanto aos que a recebem
como aos quem a dão», isto é, vendo no acto médico-assistencial um testemunho
de prática caritativa). Nasceria assim a criação do Hospital de Todos os Santos
(levando à extinção de cerca de 70 pequenos hospitais da região de Lisboa - que,
contudo, não tinham a função de um hospital como hoje o concebemos).
E é precisamente, a “História da Criação do Hospital de
Todos os Santos”, que a Drª Anastásia Mestrinho Salgado desenvolve no seu
recente Trabalho Historiográfico -
conduzindo-nos ao mundo da Assistência da Idade Média (mentalidades,
superstições, crenças, religiosidades, costumes), passando ao séc. XV e ao Séc.
XVI - épocas com um novo fôlego
científico (face ao desenvolvimento da ciência e ao nascimento de diferentes
mentalidades): Hospital de Todos os Santos que constituiria o fulcro de uma
expansão médico-assistencial para a Índia, Brasil e Japão (enquanto centro de
apoio à política de expansão económica de que Portugal constituia um dos mais
importantes alicerces a nível europeu).
Diga-se que, sendo Lisboa uma das
placas giratórias dos mareantes, comerciantes , soldados, viajantes, que
sulcavam o Atlântico - estaria sujeita à
transmissão de doenças (que necessitariam de assistência à luz da modernidade:
e assim procederam os nossos Reis, Rainhas, Médicos, Cientistas, Enfermeiros e
Congregações Religiosas - como os
Jesuítas).
O livro da Drª Anastásia Mestrinho Salgado, para além da
mais-valia historiográfica, ao ser muito bem fundamentado, revela um léxico de
alto valor literário (convidando à leitura progressiva) revestindo assim uma
mais-valia científica.
A Drª Anastásia Mestrinho Salgado é natural do Ciborro
(Montemor-o-Novo), autora de vários trabalhos científicos no âmbito da História
, Sociologia e Pedagogia, foi docente da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa. Proferiu várias Conferências, como participou activamente em diversos
Colóquios e Simpósios.
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