segunda-feira, 13 de junho de 2016

LUGAR À CULTURA

                                Textos do Dr. Alexandre Laboreiro.

                                    Cultura e emancipação
 «A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo escravo».
 António Lobo Antunes

Diz-nos Victor de Sá que sem cultura, o homem não adquire a compreensão dos fenómenos que observa, quer os verificados no mundo natural, ou no mundo social; e não adquire aquela consciência de si próprio que, realçando as suas qualidades individuais, melhor o integra no conjunto social em que vive mergulhado. Não pode, portanto, ter uma consciência esclarecida dos seus direitos e dos seus deveres; e, em consequência, está, ao menos potencialmente, feudalizado, dependente das direcções a que outros o sujeitem. É um vassalo, não um cidadão.
Ora, a Democracia implica uma integral valorização do homem-indivíduo e do conjunto material e social que o envolve. E esse grau de civilização, buscado não apenas para alguns indivíduos, mas para todos conjuntamente, exige de todos, por sua vez, um esforço, que será tão melhor compreendido e mais fecundo, quanto o individuo estiver mais perfeitamente consciencializado dos fins que procura alcançar e dos meios de que dispõe.
Democracia sem cultura é um paradoxo que atraiçoa a essência da democracia, e apenas arregimenta indivíduos dependentes dos potentados que economicamente os subjugam.
A cultura não é, porém, apenas a aprendizagem dum processo técnico, como também falsamente, em geral, se tem considerado. Cultura não implica tão somente um homem saber do seu ofício. Este é um aspecto  -  e necessário, e importante  -  da cultura que todo o indivíduo deve possuir: um bom doutor de leis ou um matemático, como um desvelado agricultor ou um mecânico adestrado, têm necessariamente de conhecer as regras e os quês dos seus ofícios, para neles serem exímios e estarem perfeitamente habilitados a resolver os problemas e dificuldades da sua profissão. E, sendo bons profissionais, cumprem já um dos necessários deveres da cidadania: contribuir para o trabalho colectivo da sociedade.
Mas, ser bom profissional sem ser bom cidadão, consciente, é apenas dispor de boas armas na luta pela vida, na concorrência individual dos homens que se regem pelo princípio do mais forte. Isso, conduz a uma exarcebação do que cada indivíduo tem de si de egoísta, tornando-se indiferente, quando não hostil, à felicidade e prosperidade dos outros homens. Ora, o egoísmo sobreleva os traços mais indignos do carácter humano, rouba-lhe a capacidade de compreender os interesses do meio que o cerca, alimenta-lhe os sentimentos de fatuidade e de auto-suficiência que o colocam em guerra aberta com o próximo. O egoísmo com o seu inerente individualismo, não pode ser a marca da democracia.
Por sua vez, Bento de Jesus Caraça perfila a Cultura como um meio e um fim. Encarando as sociedades organizadas, tal como actualmente se encontram, pergunta-se: “quem deve ser o detentor da Cultura?”. A massa geral da humanidade, ou uma parte dela? Por outras palavras: deve a obra do aperfeiçoamento ser realizada por todos ou apenas por um grupo? Por todos os homens ou apenas por um grupo ou elite que terá por função tornar acessíveis à massa geral da Humanidade os resultados das conquistas culturais? E Bento de Jesus Caraça responde, condenando a detenção da Cultura e da produção cultural, como monopólio de uma elite. Para ele, deve promover-se a cultura de todos e isso é possível porque ela não é inacessível à massa: o ser humano é indefinidamente aperfeiçoável e a cultura é exactamente a condição indispensável desse aperfeiçoamento progressivo e constante. Para Bento de Jesus Caraça, deve ser dada a cada Homem, a consciência integral da sua própria dignidade. Em todos os homens, existe a mesma parcela de dignidade, simplesmente nalguns está de tal modo adormecida que chegam a dar a impressão de serem inferiores, gerando os sentimentos da humilhação: e a humilhação do homem perante o homem é imoral.  
E a grande revolução na promoção e difusão cultural, encontramo-la (em sequência da invenção da Imprensa), no Iluminismo. E sobre o Iluminismo, dir-nos-ia Kant: «As Luzes são o sair do Homem da menoridade de que ele próprio é responsável. A menoridade é a incapacidade de se servir do seu entendimento sem outro que o dirija. O homem é responsável por essa menoridade, se a sua causa não está ligada a uma falta de entendimento, mas a uma falta de decisão e de coragem para o usar fora de uma decisão alheia. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento. Eis a divisa das Luzes».
E salientemos que o elemento medular deste processo, cuja força motriz reside na liberdade, é a coragem de pensar por si mesmo. E, neste cômputo, o que é um homem culto? Consideramos aquele que tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence; aquele que tem consciência da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência como ser humano; aquele que faz do aperfeiçoamento do seu ser interior a preocupação máxima e fim último de vida.
A aquisição de Cultura implica, e significa, uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico; significará, numa palavra, “a conquista da liberdade”.
E a autonomia das ideias, se atendermos à História do Homem, revela-nos quanto sofreu ao afirmar-se, com verdadeiro arauto da Cultura, o intelectual cuja arma é apenas o Pensamento.
Registarei apenas dois episódios, dentro, ambos, da Cultura Portuguesa:
-  Em pleno século XIX, numa carta que Alexandre Herculano escreve a Garrett, constata o Historiador: «Esses patuscos que todos nós conhecemos e que sem uma única virtude, sem uma única ideia elevada ou generosa, figuram nesta terra pelos dois títulos com que nela se faz fortuna: por tolos no mundo das ideias e por velhacos no mundo da vida prática»;
-  Em 1920, em entrevista ao “Diário de Notícias”, denuncia Aquilino Ribeiro: «Nos bastidores do regime quem dá cartas é o traficante sem grandes letras e o cacique com muitos votos. Apenas o partido unionista oferecia uma platibanda ao intelectual, contando que fosse unionista, dizia-nos há pouco alguém... A moral vai desaparecendo de todo da sociedade portuguesa. A guerra superou os derradeiros e teimosos fumos de respeito pelo semelhante e pelo que na terra tem ar de eterno e venerável. A moral corrente (veja os açambarcadores, os merceeiros, os novos-ricos) é a do enriquecer seja como for e cifra-se neste mandamento: passa por cima do teu semelhante com sapatos de brocha e não te importes de o esmagar, contanto que passes».
Certamente inspirado nas ideias democráticas de Aquilino, Garrett e Herculano, um livrinho (que estou relendo) insiste na preocupação de valorizar a difusão da Leitura  -  salientando: é lendo que se obtém grande parte das informações consideradas indispensáveis, tanto ao cumprimento das funções profissionais, e sociais, como nas pequenas tarefas do dia-a-dia; é através da leitura que somos confrontados com ideias e mundividências que enriquecem o nosso património cultural e nos ajudam a reflectir e a consolidar opiniões; bem como, igualmente, é no livro e na leitura que encontramos, por vezes, um espaço lúdico e de evasão, que abre as portas a uma dimensão tão importante no homem, como é o da imaginação e criatividade.
Acto de Leitura que, no fim de contas, se deve integrar no propósito de promover a Cultura  -  enquanto bem social que se deve reivindicar para a colectividade inteira, porque só com ela pode a humanidade tomar consciência de si própria, ditando a todo o momento, a tonalidade geral da orientação às elites parciais.
 José Alexandre Laboreiro   
Publicação autorizada pelo Autor  



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