Textos do Dr.
Alexandre Laboreiro.
Cultura e emancipação
«A cultura assusta
muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um
povo escravo».
António Lobo Antunes
Diz-nos Victor de Sá que sem cultura, o homem não adquire a
compreensão dos fenómenos que observa, quer os verificados no mundo natural, ou
no mundo social; e não adquire aquela consciência de si próprio que, realçando
as suas qualidades individuais, melhor o integra no conjunto social em que vive
mergulhado. Não pode, portanto, ter uma consciência esclarecida dos seus
direitos e dos seus deveres; e, em consequência, está, ao menos potencialmente,
feudalizado, dependente das direcções a que outros o sujeitem. É um vassalo,
não um cidadão.
Ora, a Democracia implica uma integral valorização do homem-indivíduo
e do conjunto material e social que o envolve. E esse grau de civilização,
buscado não apenas para alguns indivíduos, mas para todos conjuntamente, exige
de todos, por sua vez, um esforço, que será tão melhor compreendido e mais
fecundo, quanto o individuo estiver mais perfeitamente consciencializado dos
fins que procura alcançar e dos meios de que dispõe.
Democracia sem cultura é um paradoxo que atraiçoa a essência
da democracia, e apenas arregimenta indivíduos dependentes dos potentados que economicamente
os subjugam.
A cultura não é, porém, apenas a aprendizagem dum processo
técnico, como também falsamente, em geral, se tem considerado. Cultura não
implica tão somente um homem saber do seu ofício. Este é um aspecto - e
necessário, e importante - da cultura que todo o indivíduo deve possuir:
um bom doutor de leis ou um matemático, como um desvelado agricultor ou um
mecânico adestrado, têm necessariamente de conhecer as regras e os quês dos
seus ofícios, para neles serem exímios e estarem perfeitamente habilitados a
resolver os problemas e dificuldades da sua profissão. E, sendo bons
profissionais, cumprem já um dos necessários deveres da cidadania: contribuir
para o trabalho colectivo da sociedade.
Mas, ser bom profissional sem ser bom cidadão, consciente, é
apenas dispor de boas armas na luta pela vida, na concorrência individual dos
homens que se regem pelo princípio do mais forte. Isso, conduz a uma
exarcebação do que cada indivíduo tem de si de egoísta, tornando-se
indiferente, quando não hostil, à felicidade e prosperidade dos outros homens.
Ora, o egoísmo sobreleva os traços mais indignos do carácter humano, rouba-lhe
a capacidade de compreender os interesses do meio que o cerca, alimenta-lhe os
sentimentos de fatuidade e de auto-suficiência que o colocam em guerra aberta
com o próximo. O egoísmo com o seu inerente individualismo, não pode ser a
marca da democracia.
Por sua vez, Bento de Jesus Caraça perfila a Cultura como um
meio e um fim. Encarando as sociedades organizadas, tal como actualmente se
encontram, pergunta-se: “quem deve ser o detentor da Cultura?”. A massa geral
da humanidade, ou uma parte dela? Por outras palavras: deve a obra do
aperfeiçoamento ser realizada por todos ou apenas por um grupo? Por todos os
homens ou apenas por um grupo ou elite que terá por função tornar acessíveis à
massa geral da Humanidade os resultados das conquistas culturais? E Bento de
Jesus Caraça responde, condenando a detenção da Cultura e da produção cultural,
como monopólio de uma elite. Para ele, deve promover-se a cultura de todos e
isso é possível porque ela não é inacessível à massa: o ser humano é
indefinidamente aperfeiçoável e a cultura é exactamente a condição
indispensável desse aperfeiçoamento progressivo e constante. Para Bento de Jesus
Caraça, deve ser dada a cada Homem, a consciência integral da sua própria
dignidade. Em todos os homens, existe a mesma parcela de dignidade,
simplesmente nalguns está de tal modo adormecida que chegam a dar a impressão
de serem inferiores, gerando os sentimentos da humilhação: e a humilhação do
homem perante o homem é imoral.
E a grande revolução na promoção e difusão cultural,
encontramo-la (em sequência da invenção da Imprensa), no Iluminismo. E sobre o
Iluminismo, dir-nos-ia Kant: «As Luzes são o sair do Homem da menoridade de que
ele próprio é responsável. A menoridade é a incapacidade de se servir do seu
entendimento sem outro que o dirija. O homem é responsável por essa menoridade,
se a sua causa não está ligada a uma falta de entendimento, mas a uma falta de
decisão e de coragem para o usar fora de uma decisão alheia. Sapere aude! Tem a
coragem de te servires do teu próprio entendimento. Eis a divisa das Luzes».
E salientemos que o elemento medular deste processo, cuja
força motriz reside na liberdade, é a coragem de pensar por si mesmo. E, neste
cômputo, o que é um homem culto? Consideramos aquele que tem consciência da sua
posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence; aquele que tem
consciência da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência
como ser humano; aquele que faz do aperfeiçoamento do seu ser interior a
preocupação máxima e fim último de vida.
A aquisição de Cultura implica, e significa, uma elevação
constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um
desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais,
consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e
artístico; significará, numa palavra, “a conquista da liberdade”.
E a autonomia das ideias, se atendermos à História do Homem,
revela-nos quanto sofreu ao afirmar-se, com verdadeiro arauto da Cultura, o
intelectual cuja arma é apenas o Pensamento.
Registarei apenas dois episódios, dentro, ambos, da Cultura
Portuguesa:
- Em pleno século
XIX, numa carta que Alexandre Herculano escreve a Garrett, constata o
Historiador: «Esses patuscos que todos nós conhecemos e que sem uma única
virtude, sem uma única ideia elevada ou generosa, figuram nesta terra pelos
dois títulos com que nela se faz fortuna: por tolos no mundo das ideias e por
velhacos no mundo da vida prática»;
- Em 1920, em
entrevista ao “Diário de Notícias”, denuncia Aquilino Ribeiro: «Nos bastidores
do regime quem dá cartas é o traficante sem grandes letras e o cacique com
muitos votos. Apenas o partido unionista oferecia uma platibanda ao
intelectual, contando que fosse unionista, dizia-nos há pouco alguém... A moral
vai desaparecendo de todo da sociedade portuguesa. A guerra superou os
derradeiros e teimosos fumos de respeito pelo semelhante e pelo que na terra
tem ar de eterno e venerável. A moral corrente (veja os açambarcadores, os
merceeiros, os novos-ricos) é a do enriquecer seja como for e cifra-se neste
mandamento: passa por cima do teu semelhante com sapatos de brocha e não te importes
de o esmagar, contanto que passes».
Certamente inspirado nas ideias democráticas de Aquilino,
Garrett e Herculano, um livrinho (que estou relendo) insiste na preocupação de
valorizar a difusão da Leitura - salientando: é lendo que se obtém grande parte
das informações consideradas indispensáveis, tanto ao cumprimento das funções
profissionais, e sociais, como nas pequenas tarefas do dia-a-dia; é através da
leitura que somos confrontados com ideias e mundividências que enriquecem o
nosso património cultural e nos ajudam a reflectir e a consolidar opiniões; bem
como, igualmente, é no livro e na leitura que encontramos, por vezes, um espaço
lúdico e de evasão, que abre as portas a uma dimensão tão importante no homem,
como é o da imaginação e criatividade.
Acto de Leitura que, no fim de contas, se deve integrar no
propósito de promover a Cultura - enquanto bem social que se deve reivindicar
para a colectividade inteira, porque só com ela pode a humanidade tomar
consciência de si própria, ditando a todo o momento, a tonalidade geral da
orientação às elites parciais.
Publicação autorizada pelo Autor
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