Baseado em Textos do
Dr. Alexandre Laboreiro.
Portuguesas com História
Natália Correia
«Onde não chega a espada da lei, chega o chicote da sátira»
(Romancista e Poeta
russo -
1799/1837)
E, na verdade, Natália Correia -
possuidora de um temperamento irreverente, e de certo modo rebelde -
faria frente, enquanto aluna contestatária, nos movimentos estudantis,
ao conservadorismo dos professores
- lutando de uma forma firme,
contra os sistemas impostos. Efectivamente, Natália gostava de chocar, de surpreender, de
baralhar, inclusive as crianças, como os filhos da escritora Fernanda de
Castro, a quem dizia sempre a mesma frase: «Sinto o corpo enlanguescido por
volúpias siderais» - quando visitava a casa da escritora -
olhando-os de forma a deixá-los pensar que era uma bruxa.
Porém, a manifestação do seu espírito imbuído pelo valor da independência, encontramo-lo
sobretudo no debate de Natália Correia com o deputado João Morgado, durante uma
sessão da Assembleia da República
(enquanto Natália intervinha como deputada do PSD) *. Discutia-se a legalização
do aborto, pela primeira vez: acto que Natália defendia, enquanto Morgado
penalizava (considerando este o acto sexual como, unicamente um intuito com
vista à concepção). Em réplica a João Morgado, Natália concebe, no momento (num
ápice) um poema que satiriza Morgado de tal forma, que -
dado serem tantas e tão fortes os gargalhadas dos deputados em todo o
hemiciclo - a sessão da Assembleia teria de ser interrompida.
Açoriana da Ilha de S. Miguel, Natália deixou a ilha, aos
onze anos, e rumou a Lisboa, para estudar. Mas, na escola pouco estudou. Fez da
vida aquilo que poucas contemporâneas suas se puderam gabar: tornar-se uma das
grandes figuras do século XX português.
Romancista, poetisa, boémia, dramaturga, ensaísta, deputada,
proprietária de uma loja de antiguidades, dona de um bar. Natália, com as suas
echarpes, longas boquilhas, e um grande talento oratório, distinguiu-se pela
inteligência e pela obra. Casada quatro vezes, nunca teve filhos. Quando
menina, queria ser poetisa, detective e dona de um casino clandestino. «Eu
pareço entusiástica, exuberante, mas é só por fora. É a minha forma de me
libertar das tensões que as pessoas mordem dentro de si. Interiormente, tenho a
imobilidade de um ídolo oriental. Mas não sou fria. Sou até um ser
profundamente afectivo» - diz-nos ela de si própria.
Sobre Natália Correia, dir-nos-ia (in “Uma outra memória”) o
poeta e escritor Manuel Alegre: «Natália Correia era um poeta. “Uma máquina de
passar vidro colorido”, diria Mário Cesariny de Vasconcelos e ela por certo
teria gostado. “Hierática cromática socrática”,
“uma vestal iluminada”, ou “uma deusa rangendo”, como a cantou José
Carlos Ary dos Santos no retrato que dela fez com versos e metáforas. Creio,
aliás, que ela era a grande metáfora de si mesma. Onde ela estava, estava
sempre o inesperado, a hipérbole, o fogo secreto dos mistérios originais.
Metade harmonia, metade dissonância. Como a própria poesia. Havia nela aquele
duende de que fala Lorca, o duende que ama a tentação do poço e mora na ferida,
porque, ao contrário do anjo e da musa, “que se escapam com violino e
compasso”, o duende fere, e na cura desta ferida que não cicatriza nunca está o
insólito, a invenção da obra poética. Natália, que sempre vi “enduendada”
trazia essa ferida. E dela é que nascia a sua rosa. Talvez por isso eu lhe
chamei “Senhora da Rosa”. Porque a sua rosa era uma rosa de esperança, mas era
também, uma rosa trágica. Uma rosa de amor e morte, de um poeta que não
aceitava a ditadura do Mundo e pressentia as facas matadoras com que pouco a
pouco os poetas são assassinados. Porque não se pense que Natália morreu de
morte natural. Há muitas formas de matar um poeta. Uma delas é a indiferença,
outra o silêncio, outra ainda a omissão. Por todas elas Natália foi
assassinada. E também, como pude testemunhar, pela degradação desse tempo que
lentamente a consumia. Mataram-na as notícias do Mundo. E as notícias que ela
esperava sobre os seus livros, e que nos últimos tempos não chegavam a ser
publicados. Feriu-a, talvez mais que as perseguições sofridas durante a
Ditadura, a sua exclusão da antologia da poesia portuguesa organizada para a
Europália, da qual outros poetas foram igualmente riscados, por critérios muito
pouco estéticos e literários, que dificilmente poderão deixar de ser
interpretados como uma forma de discriminação e censura. Com a agravante de se
tratar de uma Antologia organizada e financiada pelo Estado Democrático que
Natália e os outros de certo modo também ajudaram a construir. Sim, há muitas
formas de matar um poeta. Mas, há também os que crescem da sua própria morte.
Como Natália, a do “país emerso”, a do “Sol das noites”, e do “luar dos
dias” -
a Natália que de si mesmo diria: “Não sou daqui. Mamei em peitos
oceânicos // Minha mãe era ninfa meu pai
chuva de lava // Mestiça de onda e de enxofres vulcânicos // Sou
de mim mesma pomba húmida e brava.” Por tudo isto, ela é uma ausência que dói,
até fisicamente: falta Natália, falta a voz, falta o gesto, falta o que nela
havia de bruxa, de nigromante, sibila, às vezes de deusa a passear entre os
mortais.»
É que, na lembrança, Natália nos deixaria gravados, a par de
um invulgar estofo cultural, um saber de fácil relacionamento social - que
faria de Natália um privilegiado centro difusor do Conhecimento, do Saber
Pensar, da construção de uma Personalidade, enquanto acção catalítica no
enriquecimento da Cidadania. Formação do espírito que, na maioria das vezes,
surgia perpassado pelo humor, pelo chiste, pela sátira: uma constante na
personalidade de Natália - que, por natureza, sabia - a
rir -
criticar a soberba, a vaidade, a opulência, a mistificação, a opressão:
no intuito de uma participação (através da poesia, do romance, do ensaio, do
Teatro, da Conferência) na feitura duma Democracia autêntica, porque aculturada
e assumida.
José Alexandre Laboreiro
In «Montemorense» Abril 2016. Autorizada transcrição pelo Autor
* "O acto sexual é para ter filhos - diz ele"
* "O acto sexual é para ter filhos - diz ele"
Já que o coito — diz Morgado —
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou — parca ração! —
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou — parca ração! —
uma vez. E se a função
faz o órgão — diz o ditado —
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.
faz o órgão — diz o ditado —
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.
Natália Correia em resposta a João Morgado, deputado da bancada parlamentar do CDS,
no debate sobre a legalização do aborto, no dia 3 de Abril de 1982.
no debate sobre a legalização do aborto, no dia 3 de Abril de 1982.
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