quarta-feira, 11 de maio de 2016

LUGAR À CULTURA

             Baseado em Textos do Dr. Alexandre Laboreiro.

                                    Portuguesas com História
                              Natália Correia
«Onde não chega a espada da lei, chega o chicote da sátira»
 Alexander Pushkin
(Romancista e Poeta russo  -  1799/1837)

E, na verdade, Natália Correia  -  possuidora de um temperamento irreverente, e de certo modo rebelde  -  faria frente, enquanto aluna contestatária, nos movimentos estudantis, ao conservadorismo dos professores  -  lutando de uma forma firme, contra os sistemas impostos. Efectivamente, Natália  gostava de chocar, de surpreender, de baralhar, inclusive as crianças, como os filhos da escritora Fernanda de Castro, a quem dizia sempre a mesma frase: «Sinto o corpo enlanguescido por volúpias siderais»  -  quando visitava a casa da escritora  -  olhando-os  de forma  a deixá-los pensar que era uma bruxa.
Porém, a manifestação do seu espírito imbuído  pelo valor da independência, encontramo-lo sobretudo no debate de Natália Correia com o deputado João Morgado, durante uma sessão da Assembleia  da República (enquanto Natália intervinha como deputada do PSD) *. Discutia-se a legalização do aborto, pela primeira vez: acto que Natália defendia, enquanto Morgado penalizava (considerando este o acto sexual como, unicamente um intuito com vista à concepção). Em réplica a João Morgado, Natália concebe, no momento (num ápice) um poema que satiriza Morgado de tal forma, que   -  dado serem tantas e tão fortes os gargalhadas dos deputados em todo o hemiciclo  -  a sessão da Assembleia teria  de ser interrompida.
Açoriana da Ilha de S. Miguel, Natália deixou a ilha, aos onze anos, e rumou a Lisboa, para estudar. Mas, na escola pouco estudou. Fez da vida aquilo que poucas contemporâneas suas se puderam gabar: tornar-se uma das grandes figuras do século XX português.
Romancista, poetisa, boémia, dramaturga, ensaísta, deputada, proprietária de uma loja de antiguidades, dona de um bar. Natália, com as suas echarpes, longas boquilhas, e um grande talento oratório, distinguiu-se pela inteligência e pela obra. Casada quatro vezes, nunca teve filhos. Quando menina, queria ser poetisa, detective e dona de um casino clandestino. «Eu pareço entusiástica, exuberante, mas é só por fora. É a minha forma de me libertar das tensões que as pessoas mordem dentro de si. Interiormente, tenho a imobilidade de um ídolo oriental. Mas não sou fria. Sou até um ser profundamente afectivo»  -  diz-nos ela de si própria.
Sobre Natália Correia, dir-nos-ia (in “Uma outra memória”) o poeta e escritor Manuel Alegre: «Natália Correia era um poeta. “Uma máquina de passar vidro colorido”, diria Mário Cesariny de Vasconcelos e ela por certo teria gostado. “Hierática cromática socrática”,  “uma vestal iluminada”, ou “uma deusa rangendo”, como a cantou José Carlos Ary dos Santos no retrato que dela fez com versos e metáforas. Creio, aliás, que ela era a grande metáfora de si mesma. Onde ela estava, estava sempre o inesperado, a hipérbole, o fogo secreto dos mistérios originais. Metade harmonia, metade dissonância. Como a própria poesia. Havia nela aquele duende de que fala Lorca, o duende que ama a tentação do poço e mora na ferida, porque, ao contrário do anjo e da musa, “que se escapam com violino e compasso”, o duende fere, e na cura desta ferida que não cicatriza nunca está o insólito, a invenção da obra poética. Natália, que sempre vi “enduendada” trazia essa ferida. E dela é que nascia a sua rosa. Talvez por isso eu lhe chamei “Senhora da Rosa”. Porque a sua rosa era uma rosa de esperança, mas era também, uma rosa trágica. Uma rosa de amor e morte, de um poeta que não aceitava a ditadura do Mundo e pressentia as facas matadoras com que pouco a pouco os poetas são assassinados. Porque não se pense que Natália morreu de morte natural. Há muitas formas de matar um poeta. Uma delas é a indiferença, outra o silêncio, outra ainda a omissão. Por todas elas Natália foi assassinada. E também, como pude testemunhar, pela degradação desse tempo que lentamente a consumia. Mataram-na as notícias do Mundo. E as notícias que ela esperava sobre os seus livros, e que nos últimos tempos não chegavam a ser publicados. Feriu-a, talvez mais que as perseguições sofridas durante a Ditadura, a sua exclusão da antologia da poesia portuguesa organizada para a Europália, da qual outros poetas foram igualmente riscados, por critérios muito pouco estéticos e literários, que dificilmente poderão deixar de ser interpretados como uma forma de discriminação e censura. Com a agravante de se tratar de uma Antologia organizada e financiada pelo Estado Democrático que Natália e os outros de certo modo também ajudaram a construir. Sim, há muitas formas de matar um poeta. Mas, há também os que crescem da sua própria morte. Como Natália, a do “país emerso”, a do “Sol das noites”, e do “luar dos dias”  -  a Natália que de si mesmo diria: “Não sou daqui. Mamei em peitos oceânicos //  Minha mãe era ninfa meu pai chuva de lava  //  Mestiça de onda e de enxofres vulcânicos  //  Sou de mim mesma pomba húmida e brava.” Por tudo isto, ela é uma ausência que dói, até fisicamente: falta Natália, falta a voz, falta o gesto, falta o que nela havia de bruxa, de nigromante, sibila, às vezes de deusa a passear entre os mortais.»
É que, na lembrança, Natália nos deixaria gravados, a par de um invulgar estofo cultural, um saber de fácil relacionamento social  -  que faria de Natália um privilegiado centro difusor do Conhecimento, do Saber Pensar, da construção de uma Personalidade, enquanto acção catalítica no enriquecimento da Cidadania. Formação do espírito que, na maioria das vezes, surgia perpassado pelo humor, pelo chiste, pela sátira: uma constante na personalidade de Natália  -  que, por natureza, sabia  -  a rir  -  criticar a soberba, a vaidade, a opulência, a mistificação, a opressão: no intuito de uma participação (através da poesia, do romance, do ensaio, do Teatro, da Conferência) na feitura duma Democracia autêntica, porque aculturada e assumida.

José Alexandre Laboreiro   
 In «Montemorense» Abril 2016. Autorizada transcrição pelo Autor    

                                           *  "O acto sexual é para ter filhos - diz ele"


Já que o coito — diz Morgado —
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;

e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.

Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou — parca ração! —

uma vez. E se a função
faz o órgão — diz o ditado —
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.

Natália Correia em resposta a João Morgado, deputado da bancada parlamentar do CDS,
no debate sobre a legalização do aborto, no dia 3 de Abril de 1982.
                     



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