A Indústria da Cultura
«Hoje, mais do que nunca, os homens cultos têm o dever de semear
dúvidas em vez de colher certezas».
(Filósofo italiano)
Na sua obra de análise
da cultura dos nossos tempos («Sobre a Indústria da Cultura»), Theodor W.
Adorno constata: «No carácter propagandístico da cultura, perece aquilo que a
distingue da vida prática. A aparência estética converteu-se em brilho
endossado pelos anúncios publicitários aos produtos anunciados que o absorvem;
contudo, aquele elemento de autonomia, que a filosofia designa justamente por
aparência estética, deixa de existir.
Por toda a parte se esbate a fronteira com a realidade empírica. Mas há muito
que se tem vindo a efectuar um sólido trabalho preparatório nesse sentido. Desde
a era industrial que está na moda uma arte formadora de mentalidades que pactua
com a reificação, ao imputar
ao desencantamento do mundo, ao
prosaísmo, até mesmo à tacanhez espiritual, uma poesia própria, alimentada pela
ética do trabalho». Ora, é nesta mesma
linha de pensamento que Pierre Bourdieu denuncia os efeitos da concentração
editorial de livros (em França), mostrando-se apreensivo com o facto do campo
editorial estar a seguir o modelo de todos os outros sectores produtivos e a
tornar-se uma indústria do «entertainment».
O mesmo refere António
Guerreiro (in «Expresso»), recentemente; diz-nos ele: «Quem visita a
actual Feira do Livro e não sente
repulsa pelo populismo editorial dominante, ou tem um enorme poder de
atravessar, imune, uma paisagem de destroços, ou perdeu a capacidade de
reconhecer a violência que sobre ele é exercida. Quando, há mais de duas
décadas, na linguagem dos «média»
surgia a noção de «indústria de
conteúdos», estávamos ainda longe de
imaginar que a actividade editorial ia alcançar esse estádio último de
fetichismo na mercadoria. A concentração não é apenas uma condição empresarial:
é um método e um «habitus». Por isso, a sua lógica difundiu-se e não se resume
aos grupos editoriais. Um populismo literário e editorial implantou as suas
regras e todas as fases de produção de um livro, desde a origem à
comercialização. A velha questão kantiana «O que é um livro» precisa de ser
reformulada, porque o Iluminismo não podia prever que os livros se tornassem inimigos
de um ideal de socialização da cultura e emancipação. Nem previa que muitos que
os escrevem, editam e, de alguma forma fazem parte da cadeia se tornassem
cúmplices de uma barbárie que condiciona ferozmente o espaço púbico literário.
Aproximamo-nos da situação em que os géneros literários são absorvidos pelos
géneros editoriais, e tudo o que não segue esta regra tem uma existência
clandestina. Assim, assistimos ao emergir das telenovelas, enquanto
instrumentos poderosos para a criação de uma cultura de massas, porque com base
no realismo e verosimilhança, cria uma sequência e um protocolo específico de
comunicação: os telespectadores já sabem as regras da narração, esperam os
momentos de emoção e descompressão, sabem que há uma moral na história e que os
seus protagonistas preferidos triunfarão: género televisivo que, em parte,
assenta na novela «kitsch», publicada em folhetos nos anos 30 do século
passado: género de literatura tão divulgada, enquanto sistema de poder no
controle de massas - o mesmo sucedendo com as fotonovelas (o
«Corin Tellado») ou com as «revistas do coração» (como a revista «Maria»). O
triângulo entre informação, entretenimento e publicidade é o exemplo mais
moderno do consumo estético de massas e das indústrias culturais, a comunicação
do nosso tempo, pois exprime a mercantilização radical das formas culturais e
de comunicação. Curiosamente, esse modo mercantil, para se afirmar, precisa de
conflito, de jogo, de contraposição, de histórias. A banalidade encantatória
deve ser disputada no enorme estádio da opinião pública.
Porém, diz-nos C. S.
Lewis (in «A Experiência de Ler»): «O
devoto da Cultura é, como pessoa, muito mais válido que o ambicioso por posição
social. Lê, tal como visita galerias de arte ou assiste a concertos, não para
se tornar bem-visto, mas para se melhorar a si próprio, desenvolver as suas
potencialidades, enfim, tornar-se um ser humano mais completo. É sincero e pode
ser modesto. Em vez de ir a compasso do que lhe dita a moda, mais provável é
que se atenha exclusivamente aos autores consagrados, de todos os períodos e
nações, ao melhor que se pensou e disse no mundo». É que o livro ainda
constitui um dos instrumentos, por excelência, mais utilizados na afirmação e
divulgação da Cultura. Precisamente, devido a este facto, Frederico Mayor
(Director Geral da UNESCO) referir-se-ia ao livro - no
Congresso da União Internacional de Editores, em Londres - da seguinte forma: «Quando lemos, quando
vemos televisão, quando ouvimos rádio, o nosso espírito funciona de forma distinta
e interage de modo especial com a página impressa. Por esse motivo, os livros
oferecem um enquadramento único para as maneiras de ver e entender o mundo de
hoje».
Marcel Proust refere que
neste gosto e neste divertimento de ler, a preferência dos grandes escritores
muito depressa se encaminha para os livros de autores antigos. Mesmo aqueles
que se afiguravam aos seus contemporâneos os mais «românticos», não liam senão
os clássicos. Quando Victor Hugo em conversa fala das suas leituras, são os nomes
de Molière, Horácio, Ovídio, Regnard, que aparecem mais frequentemente. Afonso
Daudet, o menos livresco dos escritores, cuja obra plena de modernidade e de
vida parece ter rejeitado toda a herança clássica, lia, citava, comentava
incessantemente Pascal, Montaigne, Diderot, Tácito.
«A nossa luta é baseada
na nossa cultura, porque a cultura é fruto da história e ela é uma força» -
afirmaria Amilcar Cabral; daí, o depender, de cada um de nós
(indivíduos), a construção da História e da Cultura (colectivo) da nossa
sociedade: sendo o colectivo dependente das vontades e iniciativas de cada
qual, enquanto células do todo social. Assim, tudo começa em cada um de nós.
José Luís Peixoto (in «Em teu ventre») regista: «Entender os outros não é
tarefa que comece nos outros. O início somos sempre nós próprios, a pessoa em
que acordámos nesse dia. Entender os outros é uma tarefa que nunca nos
dispensa. Ser os outros é uma ilusão. Quando estamos lá, a ver aquilo que os
outros vêem, a sentir na pele a aragem que outros sentem, somos sempre nós
próprios, são os nossos olhos, é a nossa pele. Não somos nós a sermos os
outros, somos nós a sermos nós. Nós nunca somos os outros. Podemos entendê-los,
que é o mesmo que dizer: podemos acreditar que os entendemos. Os outros até podem
garantir que estamos a entendê-los. Mas essa será sempre uma fé. Aquilo que
entendemos está fechado em nós. Aquilo que procuramos entender está fechado nos
outros». Desta forma, depende de cada cidadão (eivado dos seus atributos
cívicos) a construção da sua Cultura pessoal, da sua Cultura Local, a
edificação da Cultura do seu País -
Cultura assente na sua auto-formação, bem como alicerçada numa Educação
de base (enquanto bem imprescindível na
construção de todo o Ser Humano); afinal, a esse respeito, defende Raul
Gomes (in «Educação e Humanismo»):
«Daqui se poderá concluir que os caminhos que levam ao humanismo concreto
passam pela educação. Não pela velha educação de inspiração clássica, baseada na
separação entre as actividades manuais e
intelectuais e na distinção social entre classes dirigentes e classes
auxiliares, mas por um novo tipo de educação baseado na associação íntima entre
a mão e o cérebro, entre a prática e a
teoria científica, mediante a qual todos os homens possam receber a formação necessária à plena
realização das suas capacidades e aspirações, dentro, evidentemente, dos
limites impostos por uma estrutura económica baseada na justiça social». Uma
Educação que cultive o Homem no sentido da participação na realização do bem
colectivo, passando igualmente pelo estímulo à capacidade de sonhar (enquanto
catapulta do progresso e do aperfeiçoamento). Ou não confessaria Pepetela, ao
receber o Prémio Camões, que «É para sonhar e fazer sonhar que eu escrevo»?
José Alexandre Laboreiro
Publicado em Janeiro
2016 na “Folha de Montemor:”. Transcrição autorizada pelo Autor
1 comentário:
Um testo muito bem organizado e bem escolhido para falar de cultura. Parabéns ao autor e a quem o divulgou. Conheço e estudei alguns dos autores aqui citados. Gosto muito de ler. Aqui temos um testo com frases muito interessantes e que dá para reflectir sobre a cultura, o livro, a humanidade e até o humanismo, ou a falta dele, que temos hoje.
Obrigada por este bocadinho de boa leitura.
Maria Mira
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