segunda-feira, 21 de março de 2016

LUGAR À CULTURA – Baseado em Textos do Dr. Alexandre Laboreiro.

                                                 

                                    A Indústria da Cultura


 «Hoje, mais do que nunca, os homens cultos têm o dever de semear dúvidas em vez de colher certezas».
 Norberto Bobbio
(Filósofo italiano)

Na sua obra de análise da cultura dos nossos tempos («Sobre a Indústria da Cultura»), Theodor W. Adorno constata: «No carácter propagandístico da cultura, perece aquilo que a distingue da vida prática. A aparência estética converteu-se em brilho endossado pelos anúncios publicitários aos produtos anunciados que o absorvem; contudo, aquele elemento de autonomia, que a filosofia designa justamente por aparência  estética, deixa de existir. Por toda a parte se esbate a fronteira com a realidade empírica. Mas há muito que se tem vindo a efectuar um sólido trabalho preparatório nesse sentido. Desde a era industrial que está na moda uma arte formadora de mentalidades que pactua com a reificação, ao imputar                    ao  desencantamento do mundo, ao prosaísmo, até mesmo à tacanhez espiritual, uma poesia própria, alimentada pela ética do trabalho». Ora, é nesta  mesma linha de pensamento que Pierre Bourdieu denuncia os efeitos da concentração editorial de livros (em França), mostrando-se apreensivo com o facto do campo editorial estar a seguir o modelo de todos os outros sectores produtivos e a tornar-se uma indústria do «entertainment».
O mesmo refere António Guerreiro (in «Expresso»), recentemente; diz-nos ele: «Quem visita a actual  Feira do Livro e não sente repulsa pelo populismo editorial dominante, ou tem um enorme poder de atravessar, imune, uma paisagem de destroços, ou perdeu a capacidade de reconhecer a violência que sobre ele é exercida. Quando, há mais de duas décadas, na linguagem dos  «média» surgia  a noção de «indústria de conteúdos»,  estávamos ainda longe de imaginar que a actividade editorial ia alcançar esse estádio último de fetichismo na mercadoria. A concentração não é apenas uma condição empresarial: é um método e um «habitus». Por isso, a sua lógica difundiu-se e não se resume aos grupos editoriais. Um populismo literário e editorial implantou as suas regras e todas as fases de produção de um livro, desde a origem à comercialização. A velha questão kantiana «O que é um livro» precisa de ser reformulada, porque o Iluminismo não podia prever que os livros se tornassem inimigos de um ideal de socialização da cultura e emancipação. Nem previa que muitos que os escrevem, editam e, de alguma forma fazem parte da cadeia se tornassem cúmplices de uma barbárie que condiciona ferozmente o espaço púbico literário. Aproximamo-nos da situação em que os géneros literários são absorvidos pelos géneros editoriais, e tudo o que não segue esta regra tem uma existência clandestina. Assim, assistimos ao emergir das telenovelas, enquanto instrumentos poderosos para a criação de uma cultura de massas, porque com base no realismo e verosimilhança, cria uma sequência e um protocolo específico de comunicação: os telespectadores já sabem as regras da narração, esperam os momentos de emoção e descompressão, sabem que há uma moral na história e que os seus protagonistas preferidos triunfarão: género televisivo que, em parte, assenta na novela «kitsch», publicada em folhetos nos anos 30 do século passado: género de literatura tão divulgada, enquanto sistema de poder no controle de massas  -  o mesmo sucedendo com as fotonovelas (o «Corin Tellado») ou com as «revistas do coração» (como a revista «Maria»). O triângulo entre informação, entretenimento e publicidade é o exemplo mais moderno do consumo estético de massas e das indústrias culturais, a comunicação do nosso tempo, pois exprime a mercantilização radical das formas culturais e de comunicação. Curiosamente, esse modo mercantil, para se afirmar, precisa de conflito, de jogo, de contraposição, de histórias. A banalidade encantatória deve ser disputada no enorme estádio da opinião pública.
Porém, diz-nos C. S. Lewis (in «A Experiência de  Ler»): «O devoto da Cultura é, como pessoa, muito mais válido que o ambicioso por posição social. Lê, tal como visita galerias de arte ou assiste a concertos, não para se tornar bem-visto, mas para se melhorar a si próprio, desenvolver as suas potencialidades, enfim, tornar-se um ser humano mais completo. É sincero e pode ser modesto. Em vez de ir a compasso do que lhe dita a moda, mais provável é que se atenha exclusivamente aos autores consagrados, de todos os períodos e nações, ao melhor que se pensou e disse no mundo». É que o livro ainda constitui um dos instrumentos, por excelência, mais utilizados na afirmação e divulgação da Cultura. Precisamente, devido a este facto, Frederico Mayor (Director Geral da UNESCO) referir-se-ia ao livro  -  no Congresso da União Internacional de Editores, em Londres -  da seguinte forma: «Quando lemos, quando vemos televisão, quando ouvimos rádio, o nosso espírito funciona de forma distinta e interage de modo especial com a página impressa. Por esse motivo, os livros oferecem um enquadramento único para as maneiras de ver e entender o mundo de hoje». 
Marcel Proust refere que neste gosto e neste divertimento de ler, a preferência dos grandes escritores muito depressa se encaminha para os livros de autores antigos. Mesmo aqueles que se afiguravam aos seus contemporâneos os mais «românticos», não liam senão os clássicos. Quando Victor Hugo em conversa fala das suas leituras, são os nomes de Molière, Horácio, Ovídio, Regnard, que aparecem mais frequentemente. Afonso Daudet, o menos livresco dos escritores, cuja obra plena de modernidade e de vida parece ter rejeitado toda a herança clássica, lia, citava, comentava incessantemente Pascal, Montaigne, Diderot, Tácito.
«A nossa luta é baseada na nossa cultura, porque a cultura é fruto da história e ela é uma força»  -  afirmaria Amilcar Cabral; daí, o depender, de cada um de nós (indivíduos), a construção da História e da Cultura (colectivo) da nossa sociedade: sendo o colectivo dependente das vontades e iniciativas de cada qual, enquanto células do todo social. Assim, tudo começa em cada um de nós. José Luís Peixoto (in «Em teu ventre») regista: «Entender os outros não é tarefa que comece nos outros. O início somos sempre nós próprios, a pessoa em que acordámos nesse dia. Entender os outros é uma tarefa que nunca nos dispensa. Ser os outros é uma ilusão. Quando estamos lá, a ver aquilo que os outros vêem, a sentir na pele a aragem que outros sentem, somos sempre nós próprios, são os nossos olhos, é a nossa pele. Não somos nós a sermos os outros, somos nós a sermos nós. Nós nunca somos os outros. Podemos entendê-los, que é o mesmo que dizer: podemos acreditar que os entendemos. Os outros até podem garantir que estamos a entendê-los. Mas essa será sempre uma fé. Aquilo que entendemos está fechado em nós. Aquilo que procuramos entender está fechado nos outros». Desta forma, depende de cada cidadão (eivado dos seus atributos cívicos) a construção da sua Cultura pessoal, da sua Cultura Local, a edificação da Cultura do seu País -   Cultura assente na sua auto-formação, bem como alicerçada numa Educação de base  (enquanto bem imprescindível na construção de todo o Ser Humano); afinal, a esse respeito, defende Raul Gomes  (in «Educação e Humanismo»): «Daqui se poderá concluir que os caminhos que levam ao humanismo concreto passam pela  educação. Não pela velha  educação de inspiração clássica, baseada na separação entre as actividades manuais  e intelectuais e na distinção social entre classes dirigentes e classes auxiliares, mas por um novo tipo de educação baseado na associação íntima entre a  mão e o cérebro, entre a prática e a teoria científica, mediante a qual todos os homens  possam receber a formação necessária à plena realização das suas capacidades e aspirações, dentro, evidentemente, dos limites impostos por uma estrutura económica baseada na justiça social». Uma Educação que cultive o Homem no sentido da participação na realização do bem colectivo, passando igualmente pelo estímulo à capacidade de sonhar (enquanto catapulta do progresso e do aperfeiçoamento). Ou não confessaria Pepetela, ao receber o Prémio Camões, que «É para sonhar e fazer sonhar que eu escrevo»?

José Alexandre Laboreiro 
Publicado em Janeiro 2016 na “Folha de Montemor:”. Transcrição autorizada pelo Autor


1 comentário:

Anónimo disse...

Um testo muito bem organizado e bem escolhido para falar de cultura. Parabéns ao autor e a quem o divulgou. Conheço e estudei alguns dos autores aqui citados. Gosto muito de ler. Aqui temos um testo com frases muito interessantes e que dá para reflectir sobre a cultura, o livro, a humanidade e até o humanismo, ou a falta dele, que temos hoje.
Obrigada por este bocadinho de boa leitura.
Maria Mira