Homenagem
do Al Tejo a Domingos Maria Peças
CINEMA
e EDUCAÇÃO, por Henrique Lopes
OS MAIAS, CENAS DA VIDA ROMÂNTICA (João
Botelho, 2014, 133min)
Depois
de ter dado vida cinematográfica a uma das obras nucleares da literatura
portuguesa, o “Livro de Desassossego” de Fernando Pessoa, ou melhor, do seu
guarda-livros Bernardo Soares, seu heterónimo, o realizador João Botelho (um
dos mais importantes realizadores portugueses dos últimos 40 anos) volta a
surpreender-nos com uma nova adaptação para o cinema de uma outra obra central
da nossa literatura, “Os Maias” de Eça de Queirós. Foi este filme que no dia 11
de dezembro do ano transato foi projetado no cine-teatro Curvo Semedo para uma
plateia de professores e estudantes, integrado numa digressão nacional do
mesmo, garantindo assim o serviço público (o filme teve o apoio do Ministério
da Cultura/ Instituto do Cinema e do Audiovisual, da Câmara Municipal de Lisboa
e do Montepio).
Este
é o primeiro filme de época de João Botelho, e que descreve a vida de três
gerações dos Maias (séc. XIX). Mas é sobretudo na última, que se centra o filme
(passados pouco mais de uma dezena de minutos, já estamos na geração de Carlos
da Maia) e na história de incesto da família. Segundo João Botelho no site oficial do filme, a obra escrita “pelo
genial Eça de Queiroz, grande, melodramático, divertido e melancólico, aponta
um destino sem remédio, tanto para a família Maia como para Portugal”. É esse o
paralelismo que podemos fazer com o Portugal de hoje, aparentemente também ele
sem remédio e com a bancarrota à espreita. A realização desta obra
cinematográfica é sobretudo um ato de coragem, dado que fazer a adaptação deste
monumento literário e, estar à sua altura não é coisa fácil, tendo também em
consideração que o orçamento disponível não consentia grandes aventuras.
Para
contornar este constrangimento, Botelho utilizou o artifício, rodando os
exteriores em estúdio, empregando telas de grandes dimensões, as quais foram pintadas
pelo artista plástico João Queiroz. Não se pense que os cenários pintados sejam
uma coisa inédita no cinema atual, basta lembrar o notável “A Inglesa e o
Duque” (2001) do francês Eric Rohmer.
Mas
não foi só aqui que Botelho poupou habilmente no orçamento. Notável a forma
como utiliza o som fora de campo, num potenciar de recursos onde convoca a
imaginação do espetador. Tomemos como exemplo o espetáculo de ópera no teatro:
ouvimos a música, vimos os camarotes cheios de espetadores, alguns de binóculos,
senhoras com leques, sorrisos, olhares, ouvimos e vimos os aplausos no fim, mas
nunca vimos quem interpreta a ópera. O mesmo acontece com a sequência no
hipódromo, ouvimos a música de uma banda filarmónica em off e simultaneamente vimos os atores a passearem pelo local (com o
cenário pintado de bancadas e pessoas para dar a aparência de uma multidão a
assistir).
Mas se esta obra cinematográfica é por um
lado, uma feliz adaptação de João Botelho da obra homónima de Eça, por outro
lado, mostra-nos algumas das suas principais e estruturantes referências
(realizadores e obras) do universo cinematográfico do seu realizador. Relembro
algumas: a) as cenas de carruagem a lembrarem as de “Madame de…” (1953) de Max
Ophüls; b) os cenários pintados (e já vamos a eles mais em pormenor) a
lembrarem os que ilustravam as paisagens da fabulosa viagem de comboio do filme
“Carta de uma Desconhecida” (1948) também de Ophüls, nomeadamente aquando
do beijo prolongado entre Pedro da Maia e Maria; c) as cenas passadas no teatro
a evocarem “Sentimento” (1954) de Luchino Visconti ou a saída desesperada para
a rua de Maria Eduarda (a lembrar Alida Valli no citado filme de Visconti)
depois da partida de Carlos da Maia; d) as reuniões familiares a lembrarem “O
Leopardo” (1963) também de Visconti e, e) o cruzamento de olhares e os
encontros entre Carlos da Maia e Maria Eduarda a remeterem-nos de imediato para
o “Inocente” (1976) ainda de Visconti. Percebe-se assim, claramente, a
importância de Max Ophüls e Luchino Visconti na estética e na narrativa do
cinema de João Botelho.
Atrevo-me a ir mais
longe, o filme da vida de João Botelho é o sublime “A Grande Esperança” (1939)
de John Ford. Excluindo o genérico inicial, os dez primeiros minutos de filme
são a preto e branco (um notável preto e branco diga-se desde já). Após a cena
da morte de Pedro da Maia, nos braços do Pai e que o narrador (o mesmo que no
início do genérico do filme nos apresenta o filme e que está presente todo o
filme, nos informa da intenção de Afonso da Maia fechar para sempre a casa de
Benfica após a morte do filho e partir com o neto Carlos Eduardo e todos os
criados para a Quinta de Santa Olávia no Douro). É aqui que no filme que se faz
a transição do preto e branco para a cor, num belíssimo plano sequência sobre
as plantas em água, numa clara mudança do rumo dos acontecimentos, tal como a
transição que Ford utilizou em “A Grande Esperança” a anunciar naquele, a
tragédia e a mudança do rumo dos acontecimentos. Sabe-se que Ford é seu
realizador preferido e a aquela, a obra que Botelho considera o cume da arte
cinematográfica.
Merecem
realce no filme de Botelho: o belíssimo genérico de abertura, as excelentes
interpretações de Graciano Dias (como Carlos da Maia), Maria Flor (como Maria
Eduarda e um dos mais belos rostos que passou pelo cinema português dos últimos
anos), o histórico João Perry (como Afonso da Maia) e sobretudo Pedro Inês
(como João da Ega), a notável imagem de João Ribeiro e montagem de João Braz,
os magníficos quadros de João Queiroz, a realização segura de
Botelho e sobretudo uma eficaz direção de atores, claramente um dos trunfos do
filme.
Em
suma, “Os Maias, cenas da vida romântica”, não sendo uma obra-prima é um muito
bom filme de João Botelho, que engrandece o cinema português, o seu realizador
e dá uma nova e renovada visibilidade à obra-prima de Eça de Queiroz. Com
outros meios, Botelho teria com certeza tido a oportunidade de ir ainda mais
longe na adaptação desta monumental obra literária. O reconhecimento do
público, que fez dele um dos mais vistos no ano que passou, é uma prova de que
vale a pena adaptar obras importantes do nosso universo literário. Uma questão
importante a estudar num contexto mais específico, é a relação deste género de
obras com a educação. Dito de outro modo, em que medida a visão deste modelo de
filmes pode ou não ajudar os alunos a compreenderem melhor as obras literárias que
estão adaptadas ao cinema e que façam parte do currículo escolar e por um
outro, se podem funcionar como fonte de motivação, sem não esquecer, se os
docentes encontram nestes objetos fílmicos, ferramentas vantajosas para as suas
práticas letivas. Quatro estrelas em cinco.
Henrique Lopes
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