terça-feira, 29 de dezembro de 2015

MEMÓRIAS CURTAS

 Uma vez por mês o Prof,. Vitor Guita traz-nos à memória, recordações do passado.

Estas nossas arborescentes Memórias do mês de Dezembro hão-de ramificar em várias direcções, mas o tronco principal do discurso aponta para as oliveiras, em particular para essas árvores centenárias ou mesmo milenares que ainda povoam a paisagem. Algumas delas vivem à porta da nossa cidade. Já lá iremos.
Durante a infância e parte da adolescência, a época natalícia trazia momentos de grande júbilo, fervor e muita excitação. Era a construção do presépio, a Missa do Galo, a família toda junta ma noite da consoada, o caminhar, manhã cedinho, até à chaminé para a abertura das prendas misteriosamente deixadas pelo Pai Natal ou pelo Deus Menino.
Um dos momentos mais empolgantes, com um certo sabor a aventura, acontecia quando, sozinhos ou em grupo, íamos até ao campo, de alcofa usada e faca velha na mão, à procura do musgo mais farfalhudo e das bagas que salpicavam de vermelho os maciços de verdura.
O musgo procurávamo-lo frequentemente nas barreiras sombrias e húmidas ou nos muros dos caminhos velhos. Porém, as maiores mantas eram tiradas, como quem esfola um animal, nas grandes lajes atapetadas de verde, nos troncos de azinho ou nos das velhíssimas oliveiras.
Sempre nos fascinaram os rugosos e retorcidos troncos das oliveiras. Ainda hoje, gostamos de olhar para eles e adivinhar-lhes formas animalescas esculpidas em granito pelo tempo. Quando ocos, trazem-nos à lembrança o cavername de uma embarcação naufragada ou o interior soturno de um templo medieval.
Mas, deixemo-nos de fantasias e desçamos, por instantes, á terra. Num desss derradeiros dias de Outono, um amigo nosso, profundamente conhecedor das coisas do campo, disponibilizou-se para nos acompanhar, a fim de observarmos algumas das oliveiras monumentais que ainda é possível encontrar nos velhos e desalinhados olivais à volta de Montemor: Rondámos a zona do Abadinho e outras terras de olival.


Ali para os lados do Terrado, o nosso parceiro de caminhada chamou-nos a atenção para um desses extraordinários exemplares, que, apesar dos muitos anos, impressiona pelo seu porte e pela beleza do tronco. Detivemo-nos, durante algum tempo, a contemplar a velha oliveira. À medida que nos fomos aproximando, crescia a sensação de estarmos perante uma dessas maravilhas da natureza. Ao longo dos séculos, o tronco principal foi apodrecendo, abrindo, e foi como se a oliveira se desmembrasse em três ou quatro tortuosas peras, de onde se ergueram pernadas que deram novos ramos.
Chegámo-nos mais perto do tronco para admirá-lo por dentro, como que espreita Aa porta de uma gruta ou um casebre. Se houvesse ali imagens, o presépio seria perfeito.
O amigo que nos acompanhava explicou-nos, entretanto, que as oliveiras tem a invejável capacidade de à medida que morrem por dentro conseguirem renovar-se por fora. Ajudou-nos, depois, a identificar as bolsas que se formam nos troncos das árvores e os veios de madeira mais nova que as percorrem de alto a baixo, por onde circula a seiva que lhes garante a duradoura existência. Com o passar do tempo, as dilatações e as contrações provocadas pelo calor, pelo frio e pelas chuvadas, fazem com que os troncos se retorçam e apodreçam, sem nunca desistirem de rejuvenescer, como quem aspira à eternidade.
A dada altura veio-nos à lembrança a famosa Fenix, aquela fantástica e mítica ave que, segundo os antigos, vivia muitos séculos e, depois de queimada, era capaz de renascer das próprias cinzas, tornando-se num símbolo da imortalidade.
Perdem-se no tempo as referências á oliveira. A árvore aparece associada a lendas e mitos, a rituais religiosos e manifestações artísticas, a tradições e usos medicinais ou culinários.
Segundo a Bíblia, as oliveiras já existiam no tempo de Adão e Eva. Consta também que Noé, depois de ter enviado uma pomba branca para saber se as águas do dilúvio já tinham baixado, exultou de alegria quando viu a ave regressar com um ramo de oliveira no bico. Era sinal de que o mundo iria sobreviver. Nas primeiras quatro plantações que fez, Noé escolheu a oliveira, a figueira, a vinha e o trigo.
Igualmente na Grécia antiga e no Egipto já se falava desta generosa e respeitada árvore. Segundo a lenda Grega, os deuses Posidon e Atena entraram em conflito. Para resolver o diferendo, o tribunal dos deuses decidiu dar razão àquele que contribuísse com a melhor obra para a humanidade. Atena, deusa da sabedoria, fez nascer da terra uma oliveira e ganhou a causa.
Recorde-se ainda, que os vencedores dos jogos tinham direito a coroas de louro e de oliveira. Mas se é verdade que, nas civilizações clássicas, a oliveira surge associada às ideias de vitória, força, longevidade, é como símbolo da concórdia, da tolerância e de paz que actualmente ganha mais força, sobretudo quando aparece ligada à imagem da pomba. Tais motivos constituíram fonte de inspiração para Pablo Picasso e para outros artistas contemporâneos.
Se formos até à península itálica, conta-se que Rómulo e Remo viram a luz do dia, pela primeira vez, debaixo dos ramos de uma oliveira.
Quanto à origem da árvore, estudiosos defendem que a oliveira é oriunda da Ásia Menor, tendo-se estendido a toda a zona mediterrânica. Fenícios, gregos, romanos, árabes deram preciosos contributos para a difusão e cultura desta espécie.
Em Portugal, estão identificados vários exemplares com mais de um milénio e alguns que ultrapassam 2.000 anos. Para rodear algumas destas árvores são precisos vários homens de braços abertos. Se o critério de medição da idade for este, é possível afirmar que a nossa oliveira pode muito bem ter testemunhado a presença de vários reis em Montemor, assistindo à invasão das tropas francesas, à queda da Monarquia, à implantação da Republica e a revoluções mais recentes.
Com toda a certeza, a antiga oliveira viu de perto a construção e encerramento da via- férrea. Quantas memórias não guardará a velha árvore?! Ela, e outras semelhantes foram, por certo, abrigo de pastores e deram sombra a outra gente. Ao longo de tantos anos, quantos episódios não terá ela testemunhado, quantas azeitonas e azeite não terá dado, quantas famílias não terá alumiado?!...Pensando bem, a árvore imponente que vimos diante de nós poderá ter nascido de um minúsculo caroço de azeitona deixado ao acaso por um tordo ou estorninho. Depois de nascer e crescer bravia, foi sendo podada, enxertada, tratada pelo homem, até se transformar lentamente em oliveira mansa.
Hoje em dia nos modernos olivais, tudo é mais alinhado, normalizado, porventura mais rendível. Também mais artificial.
Infelizmente as velhas oliveiras vão-se perdendo, votadas à incúria dos homens. Algumas abafam-nas as silvas. Outras aguentam barbaridades de quem, sem consciência, lhes amputa os troncos para se aquecer ou lhes apanha, sem dó nem piedade os frutos. Em breves instantes, lá se vão séculos ou milénios de História.
Paira por vezes a ideia de que os povos do sul não têm o mesmo respeito nem professam a mesma religião pelas árvores, tal como fazem na Europa do Norte. Não queremos acreditar nisso
Fica aqui uma palavra de Esperança
Vitor Guita
Extraída Mensário “folha de Montemor” Dezembro 2015. Reprodução autorizada pelo Autor

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