Estas nossas arborescentes Memórias do mês de Dezembro
hão-de ramificar em várias direcções, mas o tronco principal do discurso aponta
para as oliveiras, em particular para essas árvores centenárias ou mesmo
milenares que ainda povoam a paisagem. Algumas delas vivem à porta da nossa
cidade. Já lá iremos.
Durante a infância e parte da adolescência, a época
natalícia trazia momentos de grande júbilo, fervor e muita excitação. Era a
construção do presépio, a Missa do Galo, a família toda junta ma noite da
consoada, o caminhar, manhã cedinho, até à chaminé para a abertura das prendas
misteriosamente deixadas pelo Pai Natal ou pelo Deus Menino.
Um dos momentos mais empolgantes, com um certo sabor a
aventura, acontecia quando, sozinhos ou em grupo, íamos até ao campo, de alcofa
usada e faca velha na mão, à procura do musgo mais farfalhudo e das bagas que
salpicavam de vermelho os maciços de verdura.
O musgo procurávamo-lo frequentemente nas barreiras sombrias
e húmidas ou nos muros dos caminhos velhos. Porém, as maiores mantas eram
tiradas, como quem esfola um animal, nas grandes lajes atapetadas de verde, nos
troncos de azinho ou nos das velhíssimas oliveiras.
Sempre nos fascinaram os rugosos e retorcidos troncos das
oliveiras. Ainda hoje, gostamos de olhar para eles e adivinhar-lhes formas
animalescas esculpidas em granito pelo tempo. Quando ocos, trazem-nos à
lembrança o cavername de uma embarcação naufragada ou o interior soturno de um
templo medieval.
Mas, deixemo-nos de fantasias e desçamos, por instantes, á
terra. Num desss derradeiros dias de Outono, um amigo nosso, profundamente
conhecedor das coisas do campo, disponibilizou-se para nos acompanhar, a fim de
observarmos algumas das oliveiras monumentais que ainda é possível encontrar
nos velhos e desalinhados olivais à volta de Montemor: Rondámos a zona do
Abadinho e outras terras de olival.
Ali para os lados do Terrado, o nosso parceiro de caminhada
chamou-nos a atenção para um desses extraordinários exemplares, que, apesar dos
muitos anos, impressiona pelo seu porte e pela beleza do tronco. Detivemo-nos,
durante algum tempo, a contemplar a velha oliveira. À medida que nos fomos
aproximando, crescia a sensação de estarmos perante uma dessas maravilhas da
natureza. Ao longo dos séculos, o tronco principal foi apodrecendo, abrindo, e
foi como se a oliveira se desmembrasse em três ou quatro tortuosas peras, de
onde se ergueram pernadas que deram novos ramos.
Chegámo-nos mais perto do tronco para admirá-lo por dentro,
como que espreita Aa porta de uma gruta ou um casebre. Se houvesse ali imagens,
o presépio seria perfeito.
O amigo que nos acompanhava explicou-nos, entretanto, que as
oliveiras tem a invejável capacidade de à medida que morrem por dentro
conseguirem renovar-se por fora. Ajudou-nos, depois, a identificar as bolsas
que se formam nos troncos das árvores e os veios de madeira mais nova que as
percorrem de alto a baixo, por onde circula a seiva que lhes garante a
duradoura existência. Com o passar do tempo, as dilatações e as contrações
provocadas pelo calor, pelo frio e pelas chuvadas, fazem com que os troncos se
retorçam e apodreçam, sem nunca desistirem de rejuvenescer, como quem aspira à
eternidade.
A dada altura veio-nos à lembrança a famosa Fenix, aquela
fantástica e mítica ave que, segundo os antigos, vivia muitos séculos e, depois
de queimada, era capaz de renascer das próprias cinzas, tornando-se num símbolo
da imortalidade.
Perdem-se no tempo as referências á oliveira. A árvore
aparece associada a lendas e mitos, a rituais religiosos e manifestações
artísticas, a tradições e usos medicinais ou culinários.
Segundo a Bíblia, as oliveiras já existiam no tempo de Adão
e Eva. Consta também que Noé, depois de ter enviado uma pomba branca para saber
se as águas do dilúvio já tinham baixado, exultou de alegria quando viu a ave
regressar com um ramo de oliveira no bico. Era sinal de que o mundo iria
sobreviver. Nas primeiras quatro plantações que fez, Noé escolheu a oliveira, a
figueira, a vinha e o trigo.
Igualmente na Grécia antiga e no Egipto já se falava desta
generosa e respeitada árvore. Segundo a lenda Grega, os deuses Posidon e Atena
entraram em conflito. Para resolver o diferendo, o tribunal dos deuses decidiu
dar razão àquele que contribuísse com a melhor obra para a humanidade. Atena,
deusa da sabedoria, fez nascer da terra uma oliveira e ganhou a causa.
Recorde-se ainda, que os vencedores dos jogos tinham direito
a coroas de louro e de oliveira. Mas se é verdade que, nas civilizações
clássicas, a oliveira surge associada às ideias de vitória, força, longevidade,
é como símbolo da concórdia, da tolerância e de paz que actualmente ganha mais
força, sobretudo quando aparece ligada à imagem da pomba. Tais motivos
constituíram fonte de inspiração para Pablo Picasso e para outros artistas
contemporâneos.
Se formos até à península itálica, conta-se que Rómulo e
Remo viram a luz do dia, pela primeira vez, debaixo dos ramos de uma oliveira.
Quanto à origem da árvore, estudiosos defendem que a
oliveira é oriunda da Ásia Menor, tendo-se estendido a toda a zona
mediterrânica. Fenícios, gregos, romanos, árabes deram preciosos contributos
para a difusão e cultura desta espécie.
Em Portugal, estão identificados vários exemplares com mais
de um milénio e alguns que ultrapassam 2.000 anos. Para rodear algumas destas
árvores são precisos vários homens de braços abertos. Se o critério de medição
da idade for este, é possível afirmar que a nossa oliveira pode muito bem ter
testemunhado a presença de vários reis em Montemor, assistindo à invasão das
tropas francesas, à queda da Monarquia, à implantação da Republica e a
revoluções mais recentes.
Com toda a certeza, a
antiga oliveira viu de perto a construção e encerramento da via- férrea.
Quantas memórias não guardará a velha árvore?! Ela, e outras semelhantes foram,
por certo, abrigo de pastores e deram sombra a outra gente. Ao longo de tantos
anos, quantos episódios não terá ela testemunhado, quantas azeitonas e azeite
não terá dado, quantas famílias não terá alumiado?!...Pensando bem, a árvore
imponente que vimos diante de nós poderá ter nascido de um minúsculo caroço de
azeitona deixado ao acaso por um tordo ou estorninho. Depois de nascer e
crescer bravia, foi sendo podada, enxertada, tratada pelo homem, até se
transformar lentamente em oliveira mansa.
Hoje em dia nos modernos olivais, tudo é mais alinhado,
normalizado, porventura mais rendível. Também mais artificial.
Infelizmente as velhas oliveiras vão-se perdendo, votadas à
incúria dos homens. Algumas abafam-nas as silvas. Outras aguentam barbaridades
de quem, sem consciência, lhes amputa os troncos para se aquecer ou lhes
apanha, sem dó nem piedade os frutos. Em breves instantes, lá se vão séculos ou
milénios de História.
Paira por vezes a ideia de que os povos do sul não têm o
mesmo respeito nem professam a mesma religião pelas árvores, tal como fazem na
Europa do Norte. Não queremos acreditar nisso
Fica aqui uma palavra de Esperança
Vitor Guita
Extraída Mensário “folha de Montemor”
Dezembro 2015. Reprodução autorizada pelo Autor
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