O Festival de Sopas que ocorreu recentemente em Montemor
abriu-nos o apetite para irmos até aos arrabaldes. O poder mágico dos cheiros e
sabores que saiam dos pratos e panelas fez com que a nossa lembrança voasse até
às antigas quintas, hortas e pomares que existiam à volta da urbe. Embora
poucas, algumas sobrevivem ainda activas. Tempos houve em que, de muitas delas,
saiam diariamente para o mercado carroças carregadas de fruta e hortaliças.
Há cerca de duzentos anos, o nosso conterrâneo Joaquim José
Varela, escrevia na sua Memória Estatística:
“ Fez a natureza em
Montemor o Novo hum paraíso, dando-lhe as mais bellas quintas e pomares cheios
de fertilíssimas arvores, que, produzindo deliciosos fructos, pela sua
abundancia e variedade, regalão e saboreão não só os seus habitantes, mas
também muitos outros povos em huma grande parte do anno”
Depois de elogiar a abundancia e a excelência dos frutos, o
nosso autor tecia duras criticas aqueles que, por desleixo, iam deixando perder
algumas das mais apreciadas variedades. Segundo J.J.Varela, existiam certos
proprietários que se esqueciam que o arvoredo, tal como os animais, também vai
acusando cansaço natura, havendo quem desprezasse a plantação, a poda e a
enxertia das árvores que davam tão deliciosos frutos.
A dada altura, demos connosco a imaginar o que diria agora o
ilustre montemorense, se visse o estado em que se encontra boa parte Ds hortas
e vergéis.
Para o discurso não ficar tão pessimista, acreditamos que
J.J. Varela ficaria certamente agradado, se tivesse conhecimento da algumas
boas praticas que ainda vão por aí tendo lugar.
Com a ajuda de alguns amigos, demo-nos ao trabalho de
começar a enumerar as antigas quintas e hortas no termo de Montemor. A tarefa
afigurou-se interminável, tantas eram as pequenas propriedades. Assim de
relance, só em redor do cabeço de N. Srª da Conceição, vieram à baila vários
nomes: Bonecos, Carregais, Bomba, Santo António, Pomar S. João de Deus, Nabas,
Colhereiras de Baixo, Asneira, Fialha, Graciosa…
Boa parte desses espaços eram lugares idílicos, de ambiente
salutar, onde fomos habituados, quando +eramos miúdos, a ir passear aos
Domingos. Acrescente-se que, lá em casa, havia a fezada de que a mancha de
pinheiros situada atrás da Quinta da Asneira era uma boa terapia para a tosse
convulsa.
Hortas e Quintas eram sítios de grande beleza: umas na sua
simplicidade; outras mais aristocráticas, de indiscutível valor arquitetónico.
Cada uma delas possuía uma ou mais fontes e também tanques, de onde jorrava a
água para a rega. Habitualmente praticava-se a “rega por pé”, em que a água
corria por gravidade até aos canteiros cultivados. Era o hortelão que se
encarregava de direcionar a água através de regos feitos à enxada, fazendo-a
chegar até às plantas. Outras vezes, recorria-se a noras, movidas por animais.
Grande parte delas encontram-se abandonadas. Ainda conseguimos porém adivinhar
o cantar da água a correr, o ruído das rodas, o vaivém dos alcatruzes. Quanto
aos animais, geralmente muares ou asininos, imaginamo-los a andar à volta do
engenho, horas a fio, num ritmo repetitivo, monótono. Depois de um breve
intervalo, lá continuavam eles, ás voltas, de olhos vendados, ainda assim não
fosse o trabalho parar por alguma distração.
Além das quintas e das hortas em redor da antiga vila, não
havia monte em que os caseiros não fizessem também o seu hortejo. Dali saia boa
parte do sustento da família. Depois de uma semana de labuta, muitas das horas
de Domingo eram passadas a trabalhar de roda das batatas e das couves.
Existiam também casas agrícolas que tinham um hortelão a
tempo inteiro.
Tudo tinha a sua época. Em Agosto, por exemplo, faziam-se os alfobres, de preferência nos minguantes. O saber da experiência feita dos mais antigos dizia-lhes que as plantas espigavam menos se os viveiros fossem feitos naquele mês do ano.
Tudo tinha a sua época. Em Agosto, por exemplo, faziam-se os alfobres, de preferência nos minguantes. O saber da experiência feita dos mais antigos dizia-lhes que as plantas espigavam menos se os viveiros fossem feitos naquele mês do ano.
Já que estamos em princípio de Dezembro, a partir de agora é
tempo de começar a pensar em semear alhos, favas, ervilhas. No Natal já os
alhos deviam apresentar bico de pardal, e faval semeado por altura de N. Srª da
Conceição dava, pr certo, favas até ao chão.
Com o entusiasmo das hortas esquecíamo-nos de dizer que um
dos amigos com quem estivemos a falar é o João Picanço. Muitos tratam-no por
Picanço Hortelão. A alcunha fica-lhe a matar, já que é dos poucos, que
teimosamente, se dedicam à horticultura para abastecimento publico. São
ensinamentos que lhe ficaram dos tempos de gaiato. Ele e o irmão eram
frequentemente convocados para ajudar o pai, também ele horticultor e vendedor
no mercado. Escola de pai, escolas de filhos.
Com a mecanização hoje tudo é diferente. Nas hortas antigas,
o trabalho era feito essencialmente à enxada. Cavava-se a terra à manta,
raspando as ervas e enterrando-as para servirem de fertilizante. Outras vezes a
terra era cavada ao montujo, juntando e deixando expostos ao sol pequenos
montículos em forma de cone. Depois de cavada e nivelada a terra, armava-se a
horta. Tudo era geometricamente dividido em tabuadas que, por sua vez, eram
seccionadas em canteiros, onde iriam crescer as tenras alfaces, as largas e repolhudas
couves e outras verduras.
Num tempo em que não se fazia uso de pesticidas,
insecticidas e outras químicas, inventavam-se os mais diversos estratagemas
para proteger as plantas e fertilizar as terras. Uns pediam aos pastores para
deixarem dormir as ovelhas, durante uns quantos dias, no espaço a cultivar.
Outros deitavam cinza com fartura por cima dos alhos; outros ainda espalhavam
cabelo ou utilizavam guita molhada em óleo de peixe frito para repelir os
coelhos. Também os espantalhos feitos de penas e cortiça, ou as garrafas vazias
eram truques utilizados para espantar a passarada.
Muitos vezes eram os próprios animais que ajudavam a manter
o equilíbrio natural, protegendo as culturas. As simpatiquíssimas joaninhas,
por exemplo, mostravam-se tremendamente eficazes na caça ao piolho e outros
parasitas. Devido ao abandono das árvores de fruta e eventualmente por outras
razões, desapareceu uma imensidade de pássaros que desempenhavam um papel
importante no equilíbrio natural. Nas hortas e pomares era frequente verem-se
cachapins, papa-figos, mejengros, felosas, melros… Hoje encontrar alguns destes
pássaros é quase uma miragem. O mesmo sucede nas grandes lavouras, em que
deixamos de ver as arvéloas, as calhandras, os trigueirões, que iam esvoaçando
e poisando atrás da charruada.
Não nos deixemos embalar, porém, pela bondade
desinteressante dos cândidos passarinhos. Cabiam-lhes sempre os melhores frutos
e ai do viveiro ou do canteiro onde assentasse um bando vadio de pardais.
Das palavras que trocamos com João Picanço, ficámos com a
idéia que o hortelão, ainda gostaria de ver recuperada a tradição das hortas à
antiga, cobertas de produtos hortícolas mas também onde pudessem grassar as
árvores de fruto. E tudo, sem agredir tanto a natureza.
Já que estamos em maré de sonhar, terminamos com uma nota
literária.
Vários foram os poetas e prosadores que se inspiraram nas
hortas para compor alguns dos seus mais belos textos. Foi assim por exemplo com
Cesário Verde, com Fernando Pessoa ou mais recentemente com Nuno Júdice.
Vamos deixá-lo, estimado leitor, com uma quadra de um poeta
algarvio, que achámos curiosa e que é inspirada no vaivém dos alcatruzes:
“Por me veres em baixo
agora,
Não me negues a tua
estima.
Os alcatruzes da nora
Nem sempre andam por
cima.”
Até um dia destes
Vitor Guita
Extraída Mensário “folha de Montemor”
Novembro 2015. Reprodução autorizada pelo Autor
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