sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

MEMÓRIAS CURTAS – Uma vez por mês o Prof,. Vitor Guita traz-nos à memória, recordações do passado.

O Festival de Sopas que ocorreu recentemente em Montemor abriu-nos o apetite para irmos até aos arrabaldes. O poder mágico dos cheiros e sabores que saiam dos pratos e panelas fez com que a nossa lembrança voasse até às antigas quintas, hortas e pomares que existiam à volta da urbe. Embora poucas, algumas sobrevivem ainda activas. Tempos houve em que, de muitas delas, saiam diariamente para o mercado carroças carregadas de fruta e hortaliças.
Há cerca de duzentos anos, o nosso conterrâneo Joaquim José Varela, escrevia na sua Memória Estatística:
“ Fez a natureza em Montemor o Novo hum paraíso, dando-lhe as mais bellas quintas e pomares cheios de fertilíssimas arvores, que, produzindo deliciosos fructos, pela sua abundancia e variedade, regalão e saboreão não só os seus habitantes, mas também muitos outros povos em huma grande parte do anno”
Depois de elogiar a abundancia e a excelência dos frutos, o nosso autor tecia duras criticas aqueles que, por desleixo, iam deixando perder algumas das mais apreciadas variedades. Segundo J.J.Varela, existiam certos proprietários que se esqueciam que o arvoredo, tal como os animais, também vai acusando cansaço natura, havendo quem desprezasse a plantação, a poda e a enxertia das árvores que davam tão deliciosos frutos.
A dada altura, demos connosco a imaginar o que diria agora o ilustre montemorense, se visse o estado em que se encontra boa parte Ds hortas e vergéis.
Para o discurso não ficar tão pessimista, acreditamos que J.J. Varela ficaria certamente agradado, se tivesse conhecimento da algumas boas praticas que ainda vão por aí tendo lugar.
Com a ajuda de alguns amigos, demo-nos ao trabalho de começar a enumerar as antigas quintas e hortas no termo de Montemor. A tarefa afigurou-se interminável, tantas eram as pequenas propriedades. Assim de relance, só em redor do cabeço de N. Srª da Conceição, vieram à baila vários nomes: Bonecos, Carregais, Bomba, Santo António, Pomar S. João de Deus, Nabas, Colhereiras de Baixo, Asneira, Fialha, Graciosa…
Boa parte desses espaços eram lugares idílicos, de ambiente salutar, onde fomos habituados, quando +eramos miúdos, a ir passear aos Domingos. Acrescente-se que, lá em casa, havia a fezada de que a mancha de pinheiros situada atrás da Quinta da Asneira era uma boa terapia para a tosse convulsa.
Hortas e Quintas eram sítios de grande beleza: umas na sua simplicidade; outras mais aristocráticas, de indiscutível valor arquitetónico. Cada uma delas possuía uma ou mais fontes e também tanques, de onde jorrava a água para a rega. Habitualmente praticava-se a “rega por pé”, em que a água corria por gravidade até aos canteiros cultivados. Era o hortelão que se encarregava de direcionar a água através de regos feitos à enxada, fazendo-a chegar até às plantas. Outras vezes, recorria-se a noras, movidas por animais. Grande parte delas encontram-se abandonadas. Ainda conseguimos porém adivinhar o cantar da água a correr, o ruído das rodas, o vaivém dos alcatruzes. Quanto aos animais, geralmente muares ou asininos, imaginamo-los a andar à volta do engenho, horas a fio, num ritmo repetitivo, monótono. Depois de um breve intervalo, lá continuavam eles, ás voltas, de olhos vendados, ainda assim não fosse o trabalho parar por alguma distração.
Além das quintas e das hortas em redor da antiga vila, não havia monte em que os caseiros não fizessem também o seu hortejo. Dali saia boa parte do sustento da família. Depois de uma semana de labuta, muitas das horas de Domingo eram passadas a trabalhar de roda das batatas e das couves.
Existiam também casas agrícolas que tinham um hortelão a tempo inteiro.
Tudo tinha a sua época. Em Agosto, por exemplo, faziam-se os alfobres, de preferência nos minguantes. O saber da experiência feita dos mais antigos dizia-lhes que as plantas espigavam menos se os viveiros fossem feitos naquele mês do ano.
Já que estamos em princípio de Dezembro, a partir de agora é tempo de começar a pensar em semear alhos, favas, ervilhas. No Natal já os alhos deviam apresentar bico de pardal, e faval semeado por altura de N. Srª da Conceição dava, pr certo, favas até ao chão.
Com o entusiasmo das hortas esquecíamo-nos de dizer que um dos amigos com quem estivemos a falar é o João Picanço. Muitos tratam-no por Picanço Hortelão. A alcunha fica-lhe a matar, já que é dos poucos, que teimosamente, se dedicam à horticultura para abastecimento publico. São ensinamentos que lhe ficaram dos tempos de gaiato. Ele e o irmão eram frequentemente convocados para ajudar o pai, também ele horticultor e vendedor no mercado. Escola de pai, escolas de filhos.
Com a mecanização hoje tudo é diferente. Nas hortas antigas, o trabalho era feito essencialmente à enxada. Cavava-se a terra à manta, raspando as ervas e enterrando-as para servirem de fertilizante. Outras vezes a terra era cavada ao montujo, juntando e deixando expostos ao sol pequenos montículos em forma de cone. Depois de cavada e nivelada a terra, armava-se a horta. Tudo era geometricamente dividido em tabuadas que, por sua vez, eram seccionadas em canteiros, onde iriam crescer as tenras alfaces, as largas e repolhudas couves e outras verduras.
Num tempo em que não se fazia uso de pesticidas, insecticidas e outras químicas, inventavam-se os mais diversos estratagemas para proteger as plantas e fertilizar as terras. Uns pediam aos pastores para deixarem dormir as ovelhas, durante uns quantos dias, no espaço a cultivar. Outros deitavam cinza com fartura por cima dos alhos; outros ainda espalhavam cabelo ou utilizavam guita molhada em óleo de peixe frito para repelir os coelhos. Também os espantalhos feitos de penas e cortiça, ou as garrafas vazias eram truques utilizados para espantar a passarada.
Muitos vezes eram os próprios animais que ajudavam a manter o equilíbrio natural, protegendo as culturas. As simpatiquíssimas joaninhas, por exemplo, mostravam-se tremendamente eficazes na caça ao piolho e outros parasitas. Devido ao abandono das árvores de fruta e eventualmente por outras razões, desapareceu uma imensidade de pássaros que desempenhavam um papel importante no equilíbrio natural. Nas hortas e pomares era frequente verem-se cachapins, papa-figos, mejengros, felosas, melros… Hoje encontrar alguns destes pássaros é quase uma miragem. O mesmo sucede nas grandes lavouras, em que deixamos de ver as arvéloas, as calhandras, os trigueirões, que iam esvoaçando e poisando atrás da charruada.
Não nos deixemos embalar, porém, pela bondade desinteressante dos cândidos passarinhos. Cabiam-lhes sempre os melhores frutos e ai do viveiro ou do canteiro onde assentasse um bando vadio de pardais.
Das palavras que trocamos com João Picanço, ficámos com a idéia que o hortelão, ainda gostaria de ver recuperada a tradição das hortas à antiga, cobertas de produtos hortícolas mas também onde pudessem grassar as árvores de fruto. E tudo, sem agredir tanto a natureza.
Já que estamos em maré de sonhar, terminamos com uma nota literária.
Vários foram os poetas e prosadores que se inspiraram nas hortas para compor alguns dos seus mais belos textos. Foi assim por exemplo com Cesário Verde, com Fernando Pessoa ou mais recentemente com Nuno Júdice.
Vamos deixá-lo, estimado leitor, com uma quadra de um poeta algarvio, que achámos curiosa e que é inspirada no vaivém dos alcatruzes:

“Por me veres em baixo agora,
Não me negues a tua estima.
Os alcatruzes da nora
Nem sempre andam por cima.”


Até um dia destes


Vitor Guita
Extraída Mensário “folha de Montemor” Novembro 2015. Reprodução autorizada pelo Autor





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