A antiga
casa da almotaçaria e de ver-o-peso
A
possibilidade de definir, em última instância, os preços através do mecanismo
da almotaçaria constituiu uma arma politico-económica de alcance muito mais
vasto do que a simples defesa do consumidor e da regularidade dos mercados.
Nesse sentido, foi motivo de intenso debate entre administrações municipais,
produtores, consumidores, poder régio e seus representantes. Na sequência do acordo
alcançado, D. Afonso III publica em 26 de Dezembro de 1263 a Lei da Almotaçaria,
uma medida que visa fixar os preços.
Em
Portugal, o mais antigo regimento de almotaçaria que se conhece está inserido
numa recompilação de posturas municipais de Lisboa dos séculos XIII e XIV. O
documento apresenta, logo no seu início, a definição do âmbito de competências
dos almotacés.
A
estes oficiais camarários, competia fiscalizar os pesos e medidas, taxar o
preço dos géneros, e tratar da distribuição dos mantimentos em ocasiões de
escassez.
As
“Ordenações Afonsinas”, uma das primeiras colectâneas de lei da era moderna,
promulgadas durante o reinado de D. Afonso V, estipulavam aos almotacés as
seguintes tarefas: mandar apregoar aos mesteirais e regateiras que deviam ter à
venda os mantimentos, guardar as posturas dos concelhos, mostrar as medidas de
pão, vinho e azeite, evitar que os rendeiros fizessem avença com as partes,
multar as infracções, por almotaceria no pescado chegado à praça, examinar as
balanças, percorrer a vila ou cidade para evitar esterqueiras e entupimento de
canos e servidões de águas, cuidar da limpeza das ruas, etc. Não hesitavam em
condenar algum vendeiro “em cinco tostões por não ter ramo verde” sobre a porta
do seu estabelecimento, quando vendia bebidas alcoólicas.
Formavam,
pois, a polícia do comércio interno dos municípios. Todavia foram diversas, no
decorrer dos tempos, as variantes dos direitos, atribuições e modos efectivos
dos almotacés, os quais também divergiam de concelho para concelho.
Formavam
os proveitos dos almotacés uma quota-parte das multas e dos géneros, carne e
pescado vendidos a retalho. No caso de desleixo no serviço deviam pagar as
coimas aplicadas aos transgressores. Como sinal de jurisdição usavam varas
marcadas com as armas régias. Davam audiências, como os juízes, na “casinha”
(nome próprio da casa do seu serviço), em certos dias, para os multados ou
penhorados livrarem seus penhores. Verificadas as transgressões, apreendiam os
géneros e vendiam-nos pelas taxas marcadas, cabendo certos emolumentos aos
escrivães e meirinhos; aplicavam nos pelourinhos os castigos ordenados.
Em
Lisboa e em 1545, Gomes Guterres, por ter roubado no peso, foi posto na picota
com a balança ao pescoço.
Ainda
no que respeita às relações comerciais, muitas vezes, os almotacés, serviam de
mediadores nos conflitos, entre artesões e consumidores dos seus produtos, e
serviços.
A
almotaçaria foi um dos mais tradicionais ofícios da administração pública, mais
concretamente das câmaras municipais. Profundamente marcados, pelas
civilizações islâmicas, os almotacés foram os grandes responsáveis por uma
tríade de atribuições relacionadas ao mercado, ao construtivo e às questões
sanitárias de vilas e cidades, sendo nomeados pelas Câmaras Municipais.
Pelo
decreto de 3 de Dezembro de 1832, ficaram extintos os cargos de almotacés e a
almotaceria.
No
que se refere aos pesos e medidas, de acordo com documentação existente no
Museu Nacional Machado de Castro, o desenvolvimento das trocas comerciais
exigiu mais rigor, cedo conduzindo à invenção de unidades-padrão. No 4.º
milénio a.C. os egípcios já possuíam um sistema ponderal. No entanto, em todos
os tempos e lugares, a história regista diversas formas de resistência à
adopção de um sistema universal, em sinal da afirmação das tradições locais ou
do poder de alguns nobres. Assim se explica a gravação em portas de muralhas,
igrejas e residências senhoriais, dos diferentes padrões aí utilizados. A
grande diversidade de pesos e medidas e os diferentes nomes porque eram
conhecidos, de região para região, suscitaram várias tentativas régias para
uniformizarem os padrões a nível nacional. No reinado de D. Pedro I, as Cortes
de Elvas, de 1361, decidiram que a “alna” seria a medida para os panos, o
“côvado” para distâncias, e o “almude” para o vinho. Com D. João II é adoptado
o marco de Colónia para padrão de peso. As reformas de D. Manuel I, D.
Sebastião e D. João VI irão mais longe, ao dotarem cada concelho com uma
colecção de medidas padrão.
Para
o controle das medidas padrão e das balanças, existia uma prática de aferição.
Este trabalho era desenvolvido pelo almotacé. No entanto é com a lei da
almotaçaria de D. Afonso III de 26 de Dezembro de 1253 que todos os concelhos
passam a ter o seu almotacé. A partir de 1868 a aferição ou afilamento dos pesos e
medidas é entregue às câmaras municipais. Uma das práticas usadas era marcar
com punções (instrumentos de metal que servem para furar ou gravar), aquando da
aferição, as peças que não estivessem em conformidade com a unidade padrão.
A
Reforma Manuelina (1499) tentou pôr termo à desigualdade e confusão dos pesos e
medidas que continuava a vigorar em Portugal. Para simplificar as trocas comerciais
definiram-se os múltiplos, os submúltiplos e os seus valores em relação à unidade
padrão.
A
nomenciatura e os produtos a que cada uma das medidas de capacidade se
destinava são assim definidos: para os cereais e o azeite – “o alqueire”, o
“meio alqueire” e a “quarta; para o vinho – o “almude”, o “meio almude”, a
“canada”, a “meia canada”, o “quartilho” e o “meio quartilho”.
Para
a regulamentação dos pesos, D. Manuel I mandou fundir um conjunto de pesos em
bronze que se encaixavam uns nos outros e cuja caixa tinha uma asa para
facilitar o transporte. Na tampa aparecem o escudo real português e a esfera
armilar manuelina. O rei mandou dotar os concelhos com os novos padrões de
peso, não acontecendo o mesmo relativamente às unidades de volume de secos e
líquidos.
No
reinado de D. Sebastião (1575) era ainda grande a divergência de medidas de
capacidade. Para as unificar, o rei mandou distribuir, pelos concelhos, padrões
das unidades de volume. Estes são de bronze e apresentam as armas reais,
tendo-se adoptado o padrão de medidas de Lisboa. As medidas para líquidos como
o vinho e o azeite são: os “almudes” (unidade fundamental), a “canada”, a “meia
canada”, o “quartilho” e o “meio quartilho”. Ao contrário do que acontecia no
reinado de D. Manuel I, deixou de ser tolerado o uso de medidas locais.
Desde
a fundação da nacionalidade que os reis usavam a palavra “alqueire” para
designar a medida fundamental de sólidos. Embora extinto pelo Decreto de 1852, a força da tradição é
tão grande no que se refere a esta unidade que ainda hoje o “alqueire” serve de
medida de transacção nos meios rurais. Além disso, quando alguém apresenta um
comportamento extravagante, desviado dos padrões socialmente considerados
normais, diz-se que “não tem os alqueires bem medidos”. A nomenciatura das
medidas para secos que passa a vigorar com D. Sebastião é a seguinte: “fanga”
(equivalente a 4 alqueires, “alqueire” (unidade fundamental), “meio alqueire”,
“quarta” e oitava”.
Em
1812, a
reforma do sistema dos pesos e medidas nacionais, foi pensada pela Academia
Real das Ciências de Lisboa. Dois anos mais tarde, D. João VI promulga um
sistema métrico decimal, no essencial semelhante ao “métre” francês, mas que
por razões politicas (o recente trauma provocado pelas invasões Napoleónicas)
levou à manutenção de uma terminologia de origem portuguesa, designada por
“mão-travessa”. As diferentes unidades passaram a designar-se por:
“mão-travessa” = 1/10 metro; “canada” = litro; “libra” = quilograma. Deste
modo, em 1814, D. João VI manda executar no Arsenal do Exército trezentos
conjuntos de padrões de pesos e medidas.
Universalidade
e simplicidade foram os dois princípios que norteavam o sistema métrico
decimal. A primeira condição verificava-se quando todos os países do Mundo
adoptassem esta medida padrão, enquanto a simplicidade ocorria naturalmente, já
que todo o sistema se baseava numa só unidade: “o metro”. A concepção do
sistema métrico ocorreu em França no ano de 1791. Ao longo do século seguinte,
muitos países adoptaram-no, mas os de influência anglo-saxónica conservaram em
paralelo, o sistema inglês. Em Portugal, o Sistema Métrico Decimal só veio a
ser adoptado por decreto de Dezembro de 1852, utilizando a nomenclatura
francesa: “metro”, “litro” “quilograma”.
O
sistema métrico decimal entrou definitivamente em Portugal em 1926, pois até
aí, tiveram em paralelo os dois sistemas, (antigo e decimal), por isso ainda
hoje ouvimos falar de arráteis, côvados, varas, canadas, etc.
Até
meados do século XX, a aferição de pesos e medidas coube às Câmaras Municipais.
Em 1986 foi criado o Instituto de Qualidade, cuja Direcção de Metrologia passou
a ter a seu cargo o controlo dos pesos e medidas em todo o País.
A
Casa da Almotaçaria e de Ver-o-Peso de Montemor-o-Novo, situada na antiga Praça
do Arrabalde, actualmente, designada Cândido dos Reis, mantém os alçados do
período da reforma de 1743, de cunhais guarnecidos por ornatos de alvenaria,
portadas rasgadas e janela central, adulteradas, sendo esta sobrepujada por
cubo cronografado de 1574 (?). Lateralmente, em obra de estuque relevado,
vêem-se os escudos das armas da cidade de Montemor-o-Novo, com a cruz do reino,
estes sem coroa, que foi raspada depois de 1910, heráldica de domínio municipal
com características barrocas do século XVIII. O edifício tem telhado de quatro
águas.
Com
a transferência dos serviços de aferição para o edifício dos Paços do Concelho,
este imóvel, serviu de mercado do peixe e sede da Junta de Freguesia de Nossa
Senhora da Vila. Actualmente, é sede da Montemormel - Associação de Apicultores
do Concelho de Montemor-o-Novo.
Augusto Mesquita
Cronica mensal publicada na
“Folha de Montemor” Outubro 2015. Transcrição autorizada pelo Autor
3 comentários:
Bem recordado, Companheiro.
Lembro-me dele mesmo no exercício da sua profissão.
No estabelecimento dos meus pais havia uma balança cujo chumbo estava repleto de marcas e ele marcava as suas por cima das já existentes,sempre com uma alegria contaminante, Sempre bem disposto.
Helder
Tanto tempo e tanto trabalho para se chegar a que as medidas e os pesos viessem a ser uniformes...
E depois? Parecia que se tinha atingido a perfeição...
E o que temos hoje? Dois pesos e duas medidas para quase tudo.
Dois pesos e duas medidas porque ALGUNS assim conspurcaram a sociedade em que vivemos.
Os Capitães de Abril PRETENDERAM alicerçar uma sociedade sem dois pesos e sem duas medidas, em bom dizer UMA SOCIEDADE EQUILIBRADA PARA TODOS.
Questione-mo-nos então sobre os causadores e sobre os termos da tormenta em que nos obrigam a navegar. INGLÓRIAMENTE.
M.F.A.
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