quarta-feira, 21 de outubro de 2015

VASCULHAR O PASSADO - Rubrica mensal de Augusto Mesquita

                            A antiga casa da almotaçaria e de ver-o-peso

            A possibilidade de definir, em última instância, os preços através do mecanismo da almotaçaria constituiu uma arma politico-económica de alcance muito mais vasto do que a simples defesa do consumidor e da regularidade dos mercados. Nesse sentido, foi motivo de intenso debate entre administrações municipais, produtores, consumidores, poder régio e seus representantes. Na sequência do acordo alcançado, D. Afonso III publica em 26 de Dezembro de 1263 a Lei da Almotaçaria, uma medida que visa fixar os preços.
            Em Portugal, o mais antigo regimento de almotaçaria que se conhece está inserido numa recompilação de posturas municipais de Lisboa dos séculos XIII e XIV. O documento apresenta, logo no seu início, a definição do âmbito de competências dos almotacés.
            A estes oficiais camarários, competia fiscalizar os pesos e medidas, taxar o preço dos géneros, e tratar da distribuição dos mantimentos em ocasiões de escassez.
            As “Ordenações Afonsinas”, uma das primeiras colectâneas de lei da era moderna, promulgadas durante o reinado de D. Afonso V, estipulavam aos almotacés as seguintes tarefas: mandar apregoar aos mesteirais e regateiras que deviam ter à venda os mantimentos, guardar as posturas dos concelhos, mostrar as medidas de pão, vinho e azeite, evitar que os rendeiros fizessem avença com as partes, multar as infracções, por almotaceria no pescado chegado à praça, examinar as balanças, percorrer a vila ou cidade para evitar esterqueiras e entupimento de canos e servidões de águas, cuidar da limpeza das ruas, etc. Não hesitavam em condenar algum vendeiro “em cinco tostões por não ter ramo verde” sobre a porta do seu estabelecimento, quando vendia bebidas alcoólicas.
            Formavam, pois, a polícia do comércio interno dos municípios. Todavia foram diversas, no decorrer dos tempos, as variantes dos direitos, atribuições e modos efectivos dos almotacés, os quais também divergiam de concelho para concelho.
            Formavam os proveitos dos almotacés uma quota-parte das multas e dos géneros, carne e pescado vendidos a retalho. No caso de desleixo no serviço deviam pagar as coimas aplicadas aos transgressores. Como sinal de jurisdição usavam varas marcadas com as armas régias. Davam audiências, como os juízes, na “casinha” (nome próprio da casa do seu serviço), em certos dias, para os multados ou penhorados livrarem seus penhores. Verificadas as transgressões, apreendiam os géneros e vendiam-nos pelas taxas marcadas, cabendo certos emolumentos aos escrivães e meirinhos; aplicavam nos pelourinhos os castigos ordenados.
            Em Lisboa e em 1545, Gomes Guterres, por ter roubado no peso, foi posto na picota com a balança ao pescoço.
            Ainda no que respeita às relações comerciais, muitas vezes, os almotacés, serviam de mediadores nos conflitos, entre artesões e consumidores dos seus produtos, e serviços.
            A almotaçaria foi um dos mais tradicionais ofícios da administração pública, mais concretamente das câmaras municipais. Profundamente marcados, pelas civilizações islâmicas, os almotacés foram os grandes responsáveis por uma tríade de atribuições relacionadas ao mercado, ao construtivo e às questões sanitárias de vilas e cidades, sendo nomeados pelas Câmaras Municipais.
            Pelo decreto de 3 de Dezembro de 1832, ficaram extintos os cargos de almotacés e a almotaceria.
            No que se refere aos pesos e medidas, de acordo com documentação existente no Museu Nacional Machado de Castro, o desenvolvimento das trocas comerciais exigiu mais rigor, cedo conduzindo à invenção de unidades-padrão. No 4.º milénio a.C. os egípcios já possuíam um sistema ponderal. No entanto, em todos os tempos e lugares, a história regista diversas formas de resistência à adopção de um sistema universal, em sinal da afirmação das tradições locais ou do poder de alguns nobres. Assim se explica a gravação em portas de muralhas, igrejas e residências senhoriais, dos diferentes padrões aí utilizados. A grande diversidade de pesos e medidas e os diferentes nomes porque eram conhecidos, de região para região, suscitaram várias tentativas régias para uniformizarem os padrões a nível nacional. No reinado de D. Pedro I, as Cortes de Elvas, de 1361, decidiram que a “alna” seria a medida para os panos, o “côvado” para distâncias, e o “almude” para o vinho. Com D. João II é adoptado o marco de Colónia para padrão de peso. As reformas de D. Manuel I, D. Sebastião e D. João VI irão mais longe, ao dotarem cada concelho com uma colecção de medidas padrão.
            Para o controle das medidas padrão e das balanças, existia uma prática de aferição. Este trabalho era desenvolvido pelo almotacé. No entanto é com a lei da almotaçaria de D. Afonso III de 26 de Dezembro de 1253 que todos os concelhos passam a ter o seu almotacé. A partir de 1868 a aferição ou afilamento dos pesos e medidas é entregue às câmaras municipais. Uma das práticas usadas era marcar com punções (instrumentos de metal que servem para furar ou gravar), aquando da aferição, as peças que não estivessem em conformidade com a unidade padrão.
            A Reforma Manuelina (1499) tentou pôr termo à desigualdade e confusão dos pesos e medidas que continuava a vigorar em Portugal. Para simplificar as trocas comerciais definiram-se os múltiplos, os submúltiplos e os seus valores em relação à unidade padrão.
            A nomenciatura e os produtos a que cada uma das medidas de capacidade se destinava são assim definidos: para os cereais e o azeite – “o alqueire”, o “meio alqueire” e a “quarta; para o vinho – o “almude”, o “meio almude”, a “canada”, a “meia canada”, o “quartilho” e o “meio quartilho”.
            Para a regulamentação dos pesos, D. Manuel I mandou fundir um conjunto de pesos em bronze que se encaixavam uns nos outros e cuja caixa tinha uma asa para facilitar o transporte. Na tampa aparecem o escudo real português e a esfera armilar manuelina. O rei mandou dotar os concelhos com os novos padrões de peso, não acontecendo o mesmo relativamente às unidades de volume de secos e líquidos.
            No reinado de D. Sebastião (1575) era ainda grande a divergência de medidas de capacidade. Para as unificar, o rei mandou distribuir, pelos concelhos, padrões das unidades de volume. Estes são de bronze e apresentam as armas reais, tendo-se adoptado o padrão de medidas de Lisboa. As medidas para líquidos como o vinho e o azeite são: os “almudes” (unidade fundamental), a “canada”, a “meia canada”, o “quartilho” e o “meio quartilho”. Ao contrário do que acontecia no reinado de D. Manuel I, deixou de ser tolerado o uso de medidas locais.
            Desde a fundação da nacionalidade que os reis usavam a palavra “alqueire” para designar a medida fundamental de sólidos. Embora extinto pelo Decreto de 1852, a força da tradição é tão grande no que se refere a esta unidade que ainda hoje o “alqueire” serve de medida de transacção nos meios rurais. Além disso, quando alguém apresenta um comportamento extravagante, desviado dos padrões socialmente considerados normais, diz-se que “não tem os alqueires bem medidos”. A nomenciatura das medidas para secos que passa a vigorar com D. Sebastião é a seguinte: “fanga” (equivalente a 4 alqueires, “alqueire” (unidade fundamental), “meio alqueire”, “quarta” e oitava”.
            Em 1812, a reforma do sistema dos pesos e medidas nacionais, foi pensada pela Academia Real das Ciências de Lisboa. Dois anos mais tarde, D. João VI promulga um sistema métrico decimal, no essencial semelhante ao “métre” francês, mas que por razões politicas (o recente trauma provocado pelas invasões Napoleónicas) levou à manutenção de uma terminologia de origem portuguesa, designada por “mão-travessa”. As diferentes unidades passaram a designar-se por: “mão-travessa” = 1/10 metro; “canada” = litro; “libra” = quilograma. Deste modo, em 1814, D. João VI manda executar no Arsenal do Exército trezentos conjuntos de padrões de pesos e medidas.
            Universalidade e simplicidade foram os dois princípios que norteavam o sistema métrico decimal. A primeira condição verificava-se quando todos os países do Mundo adoptassem esta medida padrão, enquanto a simplicidade ocorria naturalmente, já que todo o sistema se baseava numa só unidade: “o metro”. A concepção do sistema métrico ocorreu em França no ano de 1791. Ao longo do século seguinte, muitos países adoptaram-no, mas os de influência anglo-saxónica conservaram em paralelo, o sistema inglês. Em Portugal, o Sistema Métrico Decimal só veio a ser adoptado por decreto de Dezembro de 1852, utilizando a nomenclatura francesa: “metro”, “litro” “quilograma”.
            O sistema métrico decimal entrou definitivamente em Portugal em 1926, pois até aí, tiveram em paralelo os dois sistemas, (antigo e decimal), por isso ainda hoje ouvimos falar de arráteis, côvados, varas, canadas, etc.
            Até meados do século XX, a aferição de pesos e medidas coube às Câmaras Municipais. Em 1986 foi criado o Instituto de Qualidade, cuja Direcção de Metrologia passou a ter a seu cargo o controlo dos pesos e medidas em todo o País.
            A Casa da Almotaçaria e de Ver-o-Peso de Montemor-o-Novo, situada na antiga Praça do Arrabalde, actualmente, designada Cândido dos Reis, mantém os alçados do período da reforma de 1743, de cunhais guarnecidos por ornatos de alvenaria, portadas rasgadas e janela central, adulteradas, sendo esta sobrepujada por cubo cronografado de 1574 (?). Lateralmente, em obra de estuque relevado, vêem-se os escudos das armas da cidade de Montemor-o-Novo, com a cruz do reino, estes sem coroa, que foi raspada depois de 1910, heráldica de domínio municipal com características barrocas do século XVIII. O edifício tem telhado de quatro águas.

            Com a transferência dos serviços de aferição para o edifício dos Paços do Concelho, este imóvel, serviu de mercado do peixe e sede da Junta de Freguesia de Nossa Senhora da Vila. Actualmente, é sede da Montemormel - Associação de Apicultores do Concelho de Montemor-o-Novo.

Augusto Mesquita
Cronica mensal publicada na “Folha de Montemor” Outubro 2015. Transcrição autorizada pelo Autor


Nota do Editor: Ao ler esta Memória do Passado, escrita pelo meu amigo Mesquita, acudiu-me de imediato à memória  o nome de um grande Alandroalense, que em prol da sua terra deu tudo para o engrandecimento da mesma. Já há largos anos nos deixou fisicamente, mas o seu trabalho, a sua disponibilidade em prol do bem fazer não mais será esquecida.
Tive o privilégio de o ter como amigo e de com ele muito conviver. A sua vida profissional foi precisamente a de «ver o peso» - aferidor.
Serás sempre lembrado Juvenal Augusto Roma (Nai)


3 comentários:

Anónimo disse...

Bem recordado, Companheiro.
Lembro-me dele mesmo no exercício da sua profissão.
No estabelecimento dos meus pais havia uma balança cujo chumbo estava repleto de marcas e ele marcava as suas por cima das já existentes,sempre com uma alegria contaminante, Sempre bem disposto.
Helder

Anónimo disse...

Tanto tempo e tanto trabalho para se chegar a que as medidas e os pesos viessem a ser uniformes...

E depois? Parecia que se tinha atingido a perfeição...

E o que temos hoje? Dois pesos e duas medidas para quase tudo.

Anónimo disse...

Dois pesos e duas medidas porque ALGUNS assim conspurcaram a sociedade em que vivemos.

Os Capitães de Abril PRETENDERAM alicerçar uma sociedade sem dois pesos e sem duas medidas, em bom dizer UMA SOCIEDADE EQUILIBRADA PARA TODOS.

Questione-mo-nos então sobre os causadores e sobre os termos da tormenta em que nos obrigam a navegar. INGLÓRIAMENTE.

M.F.A.