O Futuro d
Liberdade
«O
homem não pode fazer-se sem sofrer; pois é ao mesmo tempo o mármore e o
escultor»
Lexis Carrel
(Cirurgião e Filósofo francês – 1873/1944
Vivemos na era democrática. No decorrer do passado século, o
mundo foi vincado por uma tendência singular: a ascensão da democracia. Em
1900, em um único país se revestia pelo que consideramos Democracia: ou seja,
um país de governo constituído através de eleições – em que participassem todos
os cidadãos adultos com direito a voto. Hoje, 119 países fazem-no,
correspondendo a 62% de todos os países do mundo. O que era, então, uma prática
singular de uma mão-cheia de países em redor do Atlântico Norte, tornar-se-ia a
forma referencial de governo, em todo o mundo.
As monarquias caíram em desuso, o fascismo e o comunismo
tombariam definitivamente em descrédito, mesmo a teocracia islâmica não atrai
hoje, senão um exíguo número de fanáticos. Para grande parte do mundo, a
Democracia é a única fonte de legitimidade política que subsiste. Anote-se que,
mesmo ditadores como o egípcio Hosni Mubarak ou o zimbabuano Robert Mogabe se
deram ao trabalho de organizar eleições (de “fachada”, diga-se) com caracter
nacional – que ganhariam de forma habilidosa. Porem, sempre que os inimigos da
Democracia se apropriam da sua retórica, e imitam os seus rituais, somos a
concluir que a Democracia está ganhando a guerra.
Vivemos na era democrática num sentido ainda mais amplo (a
Democracia “enquanto governo do povo”; ou pelo menos, o do maior número,
estamos a constatar a mudança – do poder para baixo – enquanto pronuncio de uma
“democratização” – não só na politica, mas igualmente económica, social e
cultural): as hierarquias quebram-se, os sistemas fechados abrem-se, e a
pressão das massas é agora o principal motor da mudança social – registando-se
uma evolução da democracia: de uma forma de governo, para um estilo de vida.
No plano económico, para além da globalização do
conhecimento (que disseminaria bem-estar) atingir-se-ia uma abundancia para
centena de milhões de pessoas na sociedade industrial – transformando o
consumo, a poupança e o investimento em fenómeno de massas: o poder económico,
que fora dantes controlado por pequenos grupos de empresários, banqueiros e
burocratas, teve de se descentralizar para baixo – verificando-se que as
companhias (empresas) e os Estados, procuram favores não junto dos ricos e das
elites, mas junto do grande número que forma a classe média.
No plano da Cultura, assiste-se a uma democratização. O que
era em tempos classificado como “alta cultura”, ou cultura erudita, continua a florescer,
seguramente, mas como um produto de nicho de mercado, para os mais velhos. Já
não no centro da vida cultural das sociedades, que é hoje marcado e dominado
pela música pop, pelas músicas de sucesso do cinema, do disco, dos programas de
televisão e rádio – as grandes audiências: afinal as referências comuns a toda
a gente. Na verdade a revolução democrática – que cruza a sociedade- mudou
mesmo a nossa definição de Cultura. Assim, deparamos o caso de por exemplo, o
reconhecimento público de um solista de outros tempos era o dos que gostavam
dela: porem o critério do aplauso público, hoje, é quantos gostam dela. E, com
esta bitola, Madonna vencerá sempre Jessye Norman. A quantidade tornou-se
equivalente a qualidade. E variados factores estão na base desta mudança
espectacular (ligada a uma “vaga democrática”); a evolução tecnológica, o
surgimento de uma classe média em ascensão, o colapso dos sistemas e ideologias
alternativas que se propunham organizar a sociedade – para alem do emergir
(politico, económico, cultural e social) dos Estados Unidos da América – país
politico e culturalmente democrático, um país “potencia”, que pela economia,
cultura, politica, pela actividade do lazer faria influenciar a vida e História
do mundo (sobretudo o mundo ocidental).
É lugar-comum afirmar que durante os frenéticos nos 90 (do
passado século) a tecnologia e a informação foram democratizadas. Efectivamente
a tecnologia ajudaria a reforçar a centralização e a hierarquia – no passado;
teve um efeito centralizador dando a uma pessoa (ou grupo) a oportunidade de
chegar mais facilmente ao resto da sociedade. Daí que – em caso de “ golpes de
Estado”, a primeira acção dos golpistas era o controlo da Rádio e Televisão.
Porém, com a difusão dos canais de Rádio e Televisão, nos tempos de hoje, na
escala dos milhares, tornou-se impossível um controle centralizado –
facilitando a contestação. Efectivamente a democratização das tecnologias de
informação significa que quase toda a gente pode chegar a tudo tal como as
Armas de Destruição Maciça. Sabemos hoje que Osama bin Laden estava a trabalhar
num verdadeiro programa de fabrico de armas biológicas, durante os anos 90 do
século XX. Mas o que é mais surpreendente é que a informação científica e os
manuais encontrados nas casas clandestinas da Al Queda, em Cabul, não eram
segredos roubados aos laboratórios governamentais; foram documentos imprimidos,
a partir da Internet. Chama-se a isto a “democratização da violência”. A
democratização da violência é uma das facetas fundamentais e aterradoras do
mundo de hoje. Durante seculos, o Estado teve o monopólio do uso legítimo da
força da sociedade. Esta desigualdade de poder entre Estado e o cidadão criou a
ordem social e faz parte do cimento que manteve a civilização contemporânea
coesa. Mas durante as últimas décadas a vantagem do Estado enfraqueceu. Agora,
pequenos grupos de indivíduos organizados podem praticar crimes hediondos. E se
o terrorismo é a maior ameaça à autoridade do Estado, esta também tem sido
minada por outros factores.
Consideramos a Democracia o mais sublime sistema de
organização social entre os Homens – como definiu António Sérgio, « o regime em
que são fiscalizados os governos pelos representantes da opinião publica, e em
que os representantes da opinião publica votam as bases da legislação (sob um
conjunto de garantias rigorosamente determinadas) buscando, por aqueles meios,
a possível igualização de todos os membros da sociedade (a aproximação da
sociedade sem classes)».
Porem, quem dará realidade a essa Democracia? - Poder-nos-emos
interrogar. Sérgio (in “democracia”) responde-nos: «O cidadão (de caracter) e
de espirito critico, que consegue dominar os seus próprios nervos e que sabe
opor aos variados poderes (pelos seus juízos) uma resistência pacífica,
obstinada, lucida (a verdadeira reforma da sociedade não depende só de um
remédio mecânico a ela aplicado de uma vez para sempre: tem de estribar-se
simultaneamente numa acção moral de todos os dias. O socialismo eterno e mais
profundo é o de caracter ético e idealista, como Antero de Quental no-lo
pregou».
Sempre em busca de soluções mecânicas, muitos se resumem à
ideia simplista de extinguir o analfabetismo, de ensinar a ler a todo o povo.
Tarefa (essa) não só inútil, mas digamos até de contraproducente, quando
considerada como essencial. Ensine-se a ler, claríssimo está: mas façamo-lo
tão-só como mero instrumento de verdadeira obra educativa, que é a realização
da cultura critica, da disciplina do homem pelo seu próprio intelecto, da
concentração do espírito e da “mesura” ética, da lucidez, da objectividade, do
movimento centrípeto, - em suma da “vontade geral” no ânimo de cada um de nós -
diz-nos ainda Sérgio.
Porem, se a construção da Democracia assenta na acção cívica
de cada cidadão, há que construir o “cidadão” – que passará pelo dever – por
parte dos poderes públicos – de fomentar e promover o potencial público dos
cidadãos (que passa pela Educação e Cultura); o tal propósito, refere-nos o
Papa João XXIII (in Pacem in Terris); «Hoje em dia crê-se que o bem comum
consiste sobretudo no respeito aos direitos e deveres da pessoa humana.
Oriente-se pois, o empenho dos poderes públicos, sobretudo no sentido de que
esses direitos sejam reconhecidos, respeitados, harmonizados, tutelados e
promovidos, tornando-se assim mais fácil o cumprimento dos respectivos
deveres».
Construção da Pessoa e da Sociedade – mediante a formação do
corpo e do espírito – que se impõe sejam pensados e operados em Liberdade e
Consciência cabais.
José Alexandre Laboreiro – Professor
In “O Montemorense” – Transcrição permitida pelo Autor
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