Terça, 13 Outubro 2015
Enquanto andam pelas
casas e pelos corredores da Democracia a decidir quem há-de fazer o quê para
governar o País nos próximos quatro anos – que foi para isso que nos chamaram a
nós, cidadãos eleitores, às urnas –, vou falar hoje de meritocracia.
Parece-me ser este o mais temível
sistema de opção e escolha que, no patamar abaixo da hierarquia que põe no topo
a eleição democrática pelo voto, poderia ser considerado, com bondade, o
garante para o sucesso da atuação dos eleitos, ou em sistemas mais fechados e menos
públicos, dos escolhidos. Devolver-se-ia à escolha, e às eleições, o papel de
uma atividade que me é tão cara: a avaliação. (Os meus alunos sabem bem o que
para mim significa – em trabalho, em estímulo, em aprendizagem, para mim e para
eles – isto da avaliação, mas adiante.)
Digo temível, isto da
meritocracia, porque impõe princípios que visam eliminar as falhas, os erros,
os experimentalismos, os jeitosos, num caminho para a eliminação dos possíveis
telhados de vidro de quem é escolhido, já que se as “saraivadas” podem ocorrer
por circunstâncias exteriores, quem com elas leva deve conseguir resistir-lhes.
Afinal o jogo do poder, em qualquer nível, mede forças, ainda que forças de
campos tão díspares como a real e frágil condição humana, a capacidade de
trabalho, os limites de resistência e, último mas não menos importante porque
se pode confundir com muitas outras características muito mais relevantes para
se ser candidato à escolha pelo mérito, a vontade.
É muito curioso o que
se pode ler lá pelo meio, na entrada da mais popular enciclopédia
contemporânea, falo da Wikipedia naturalmente, com todas as reservas que só o
nomeá-la suscita ao mundo académico, e que diz alguma coisinha a propósito da
associação que vos faço de eleições, e respetivas consequências, e da
meritocracia. Diz-se, e mesmo desconhecendo o ou a responsável por tal
observação tendo a concordar, que numa «democracia representativa, onde o poder
está, teoricamente, nas mãos dos representantes eleitos, elementos
meritocráticos incluem o uso de consultorias especializadas para ajudar na
formulação de políticas, e um serviço civil, meritocrático, para
implementá-los.» E tocando no que considero ser o cerne da questão, acrescenta:
«O problema perene na defesa da meritocracia é definir, exatamente, o que cada
um entende por "mérito". Além disso, um sistema que se diga
meritocrático e não o seja na prática será um mero discurso para mascarar
privilégios e justificar indicações a cargos públicos.» Eu sei que é a
Wikipedia! Mas precisamente porque é a Wikipedia e dá a volta ao mundo, retira
qualquer interesse particular no nosso caso, o português e caseiro estado do
momento presente.
O Vergílio Ferreira,
que muito escreveu, quer em ficção quer em ensaio e reflexão, mais sobre os
méritos e desméritos dos insondáveis comportamentos do indivíduo ao longo da
vida e perante as realidades que a definem, faz no seu diário, entre 1984-85,
uma paródia a um adágio popular que estende ao comportamento coletivo, em
sociedade portanto, o que considero um retrato de quem, nos quais me incluo,
começa a descrer de alguma vez ver acontecer em tempo de poder assistir a
implantação da meritocracia como princípio orientador. Escreveu ele que «Num
mundo de cegos quem tem um olho é aleijado.» Felizmente, digo eu, que as muito
minhas descrenças não me impedem de acreditar nas gerações futuras e ir
tentando abrir alguns olhos no tempo que a mim me resta.
Até para a semana.
Cláudia Sousa Pereira
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