terça-feira, 28 de abril de 2015

MEMÓRIAS CURTAS - Rubrica mensal de Vitor Guita

Abril frio e molhado enche o celeiro e farta o gado.
Em Abril, águas mil.

Milhentos são os ditados populares a propósito do quarto mês do nosso calendário. São também plurais as explicações para a origem da palavra Abril. Para uns, tem raiz latina; para outros, o nome provem do grego. Seja como for tudo aponta para a ideia de fecundidade, do desabrochar das flores, do despertar da natureza.
Estas e outras reflexões foram-nos assaltando o espírito, enquanto viajávamos estrada fora,, a caminho do Ciborro, conquistados pelo delicioso borrego que se come naquelas paragens.
Ao atravessarmos o Cortiço, a atenção desviou-se, durante brevíssimos instantes, para os hortejos à beira da estrada. Logo a seguir, o olhar espraiou-se pela planura de Benalfange, onde existiu, em tempos, um campo de aviação.
Depois das curvas da Repoula, a passagem por S. Geraldo fez saltar cá para fora um rol de lembranças. Tentamos identificar antigos lugares de comércio, que eram popularmente conhecidos por Venda do Cacilhas e venda do Chico Russo.
Também o belo campanário da Igreja caiada de branco e azul foi pretexto para recordarmos a Festada Santíssima Trindade, que tinha lugar na estação primaveril. Os festejos constavam de alvorada, chegada dos músicos, recolha e venda de fogaças e, como não podia deixar de ser, a tradicional Missa. A tarde era habitualmente preenchida com torneio de tiro aos pratos, concerto, cavalhadas e, a terminar, um animado baile. Um dia inteiro de festa!
A bênção do gado era um dos momentos mais aguardados deste dia festivo, que o tornava diferente de muitos outros. Num estrado improvisado, o Sr. Prior benzia rebanhos de vacas, cabras, ovelhas, porcos, também alguns equinos, que desfilavam por entre longas filas de gente. Uma verdadeira manga humana.
Os lavradores faziam questão de apresentar o gado bem tratado, lustroso. Alguns animais transportavam ao pescoço vistosos chocalhos e outros tipos de ornamentos. Acontecia por vezes instalar-se a confusão. Os bovinos, apertados entre cordões de gente, irrompiam em correria desordenada, de tal modo que o Sr. Padre mal tinha tempo de benzer e aspergir a água benta sobre os animais. Também as obstinadas ovelhas decidiam fazer das suas, começando a andar às voltas no meio daquele ambiente estranho. O rodopio só terminava quando o pastor agarrava na ovelha cabresteira, que arrastava consigo todo o rebanho.
Entrámos por fim no Ciborro. Eram horas de almoço. Em vez de nos deixarmos dominar, de imediato, pela gula do borrego, passámos em revista alguns lugares associados a lembranças da adolescência e da juventude. Umas mais marcantes que outras, mas todas fazendo parte do imenso e labiríntico edifício da memória.
De súbito, veio-nos a recordação de umas esplendidas botas caneleiras que tivemos, talhadas pelas mãos do mestre António Bento. Sonhos da juventude! Vestir um casaco cortado pelo distinto alfaiate de Montemor, Joaquim Marques, e calçar umas botas com o toque inconfundível do mestre Bento do Ciborro!


 Mais do que apego aos bens terrenos ou outra qualquer venialidade, era a sensação de pudermos usufruir de autênticas obras de arte.
A recordação do mestre sapateiro teria ficado por ali, se não fosse a conversa que tivemos, posteriormente, com seu filho e nosso velho amigo Carlos Bento. O interesse cresceu à medida que o diálogo foi decorrendo e fomos conhecendo outras facetas daquele ilustre ciborrense.
Disse-nos o Carlos que sempre ouviu dizer, lá em casa, que os seus antepassados vieram de Valada, zona de Nisa, muito provavelmente nos finais do sec. XIX. O avô José Bento teria sido mesmo um dos primeiros homens a vir para aqui, numa fase em que os Condes de Valenças decidiram avançar com o aforamento e venda de terrenos.
Recorde-se que a aldeia do Ciborro começou a nascer por volta de 1900.
O pai, António Bento, já nasceu no povoado, tendo passado algum tempo em Nisa, ainda muito novo, onde aprendeu o ofício que o tornou famoso.
Instalado definitivamente no Ciborro, onde montou negócio e constituiu família, o sapateiro exerceu a sua actividade em diferentes lugares da aldeia, A loja/oficina fixar-se-ia, por longos anos, na avenida nacional, já na saída para Mora.
A actividade era muito diversificada. Ora vejamos: sapataria e fabrico de calçado manual; ferragens e drogaria; quinquilharia, camisaria e chapelaria. Como se isto não bastasse, António Bento cortava e fornecia vidros para a construção civil e foi agente de companhias de seguros. Alem disso, os médicos incumbiam-no de fazer as vezes de enfermeiro, dando injecções; aplicando pensos e outros cuidados de saúde.
No seu espaço de trabalho, o conhecido sapateiro tinha um balcão alto, onde cortava as peles escolhidas criteriosamente: calfe, vitela, ensebada, carneira… Viam-se também máquinas de cise calçado e uma mesa de trabalho, onde assentava e guardava as medidas dos clientes e outra papelada. Num dos lados, existia um armário com livros. Mestre Bento tinha grande paixão pela leitura. Sempre que havia oportunidade, fazia uma pausa no trabalho para ler livros e jornais. Batia-lhe gente à porta para vender grandes clássicos da literatura, e foi seguramente um dos frequentadores mais assíduos da Biblioteca itinerante da Gulbenkian. Recebia ainda diariamente, pelo correio, o jornal Republica. As notícias, como se pode depreender, eram atrasadas, o que não impedia de devorar o jornal sempre com a mesma avidez. Se achava um assunto considerado de especial interesse, lia-o em voz alta, muitas vezes à frente dos oficiais e ajudantes que laboravam na oficina, sentados em círculo. O local de trabalho transformava-se frequentemente em espaço de tertúlia. A instrução podia ser pouca, mas falava-se de desporto, de cantigas e cantores, por vezes de política, de tudo um pouco…
No tempo em que a luz electrica ainda não tinha chegado à aldeia, leitura e trabalho eram feitos à luz do petromax.
António Bento gostava de inovar, de aperfeiçoar. Nunca dizia que não a um cliente que queria um salto assim ou um cano de bota de outra maneira.
A fama do calçado fabricado na ficina do Bento do Ciborro ia passando de boca em boca. Vinham ali equitadors, cavaleiros tauromáquicos, os filhos da Condessa de Valenças. Apresentava-se gente de todo o lado. Faziam-se ali os mais diversos tipos de calçado: botas de montar, à inglesa, de elástico, as cobiçadas botas com salto de prateleira. Fabricavam-se também sapatos e botas de atanado, especialmente para quem andava na lida do campo. Produziam-se grandes quantidades deste calçado, algum dele enviado para Lavre, Pegões e outros destinos. O trabalho era muito. Não havia horários.
Na oficina, trabalhava um número considerável de oficiais e aprendizes de sapateiro, chegando a rondar a dezena. Eram eles que, depois de cortadas as peles, juntas as peças e escolhidas as formas pelo patrão, pregavam, coziam as viras, faziam o enchimento, batiam e punham as solas e realizava muitas outras tarefas até chegar ao acabamento. Também eles tinham a sua cota-parte na fama que a casa ganhou.
Já que falámos, atrás, da lida do campo, é bom dizer que, António Bento tinha grande apego à terra. Raro era o dia em que, antes de ir para a oficina, não passasse pelo foro, um terreno de cultivo de onde saíam os mais diversos produtos. Alturas havia em que o pessoal sapateiro ajudava nas tarefas do campo.
Guardámos para o fim dois ou três aspectos peculiares, que ajudam a retratar este dinâmico e prestigiado ciborrense. Em terra de acordeonistas e outros virtuosos músicos, António Bento tinha uma predilecção especial  pela música, nomeadamente como ouvinte de fado de Coimbra. O nosso amigo Carlos confessou-nos que ganhou esse mesmo gosto por influência do pai. Desde muito cedo, começou a ouvir falar do António Menano e de outros grandes intérpretes da canção coimbrã.
O teatro foi também uma das áreas da vivência cultural do Ciborro a que o mestre sapateiro se dedicou. Depois de Francisco Padrão e Agostinho Faca, foi a vez de António Bento liderar, durante algum tempo, o grupo cénico. A população do Ciborro assistia com entusiasmo ás representações teatrais. Pela aldeia, costumavam passar grupos intenerantes, mas do que os habitantes gostavam era de serem eles próprios actores das suas peças preferidas. No período liderado por António Bento e por Jerónimo Carapinha foram representadas peças de Ramada Curto e outras obras proibidas pela censura.
O gosto pela música e pelo teatro estava enraizado nas gentes do Ciborro. Outras gerações de amadores, particularmente no tempo de Anastácia Mestrinho Salgado, atingiram elevado nível, quer no âmbito do teatro quer no do folclore.
Não é possível em tão curto espaço, esgotar o que foi a actividade desta bela aldeia, nem tão pouco fazer aqui a sua história. Também não era esse o nosso objectivo. Procuramos, acima de tudo, fixar-nos na figura de mestre António Bento, o homem que fez as botas que mais nos encheram de orgulho.
Muito fica por dizer, mas é tempo de acabar,
Ah! Esquecemo-nos de um pormenor. O borrego estava uma delícia!
Até à próxima
Vitor Guita
Publicado in “Montemorense” Abril 2015 – transcrição autorizada pelo Autor

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